A química surpreendente de duas flores amarelas

Fim de semana de Páscoa na Serra da Estela. Dois tipos de flores amarelas chamaram-me a atenção e, depois de alguma pesquisa, verifiquei que também têm histórias químicas para contar.   Começo pela celidónia menor (Ranunculus ficaria) também conhecida por erva das hemorróidas entre outros nomes. Esta foi a flor que mais me surpreendeu, não só pela sua presença abundante, como pelos vários aspectos químicos envolvidos. Por exemplo, os cosméticos Yves-Rocher tiveram a sua origem em 1959 com um creme para as hemorróidas contendo um extracto desta planta. Esse creme ainda hoje é produzido (provavelemente com outra formulação), mas agora é vendido para pernas cansadas!
No que concerne ao uso da planta para fins medicinais, mais uma vez é preciso atenção aos riscos dos compostos naturais. Na wikipedia é citado um artigo em que esta planta é referida como tendo causado um tipo de hepatite. Para isso poderá ter contribuido o consumo da erva fresca que é mais tóxica.
Embora não pretenda abordar nestes textos, aspectos muito técnicos, a razão pela qual a planta fresca é especialmente tóxica é uma questão química simultaneamente simples e irresistível.  Na planta existe um composto, a ranunculina, que por maceração e através de reacções enzimáticas conduz à formação de protoanemonina. Esta molécula, em solução aquosa, rapidamente polimeriza, originando a molécula dimérica chamada anemonina e outros polímeros de protoanemonina. Ora, estes produtos são menos tóxicos do que a ranunculina e a protoanemonina.
Em geral, as reacção de ciclo-adição nas quais duas ligações duplas originam um anel quadrado de ligações simples só podem ocorrer por acção da luz. Mas neste caso, a reacção é espontânea, originando, além da anemonina, outros polímeros. Inicialmente, parecia haver evidência química de que a estrutura  da anemonina seria “cara com cara” dos oxigénios, ou seja cis, o que, embora tenha sido aceite e explicado com base em várias teorias, parecia relativamente estranho. Essa molécula tem um plano de simetria perpendicular ao quadrado (os químicos dizem que é uma molécula Cs). Verificou-se mais tarde que a estrutura correcta era trans, com os oxigénios em posições opostas. A molécula resultante tem uma simetria especial perpendicularmente a esse quadrado central (se for rodada 180 graus fica igual, os químicos dizem que é uma molécula com simetria C2). Sabemos actualmente, com base em cálculos teóricos, que o primeiro caso é um isómero que tem energia muito mais elevada.

Cada um dos carbonos do quadrado ligados aos anéis está por sua vez ligado a substituintes diferentes. Assim, estes carbonos são designados assimétricos e temos duas possibilidades de estruturas diferentes para cada um dos isómeros em que uma corresponde à imagem no espelho da outra (como a mão esquerda e direita). É fácil imaginar as imagem no espelho não sobreponíveis destes dois isómeros. A formação de isómeros com os anéis em vértices opostos do quadrado também não parece ser favorecida, mas teoricamente estes podem ser até mais estáveis. Tudo isto é mais perceptível com os desenhos das estuturas que apresentarei mais tarde...
Junto a alguns exemplares de celidónia menor estavam várias plantas de celidónia maior (Chelidonium majus) também conhecida por erva das verrugas, que, na altura da Páscoa, se encontrava sem as características flores amarelas, mas é facilmente identificável pela seiva amarela escura. É também uma planta tóxica, com alguns usos tradicionais externos conhecidos, mas mais uma vez, todo o cuidado é pouco...

Uma outra planta cujo amarelo me chamou a atenção foi a que mais tarde identifiquei como sinos dourados (Forsythia x intermedia), um arbusto em que nunca havia reparado, mas que é impossível não nos fascinar. E foi por análise química e bioquímica deste arbusto que pela primeira vez se confirmou a actuação de uma proteína que cataliza uma síntese assimétrica (que produz apenas um isómero com actividade óptica de vários possíveis).

A química e alguns insectos que se encontram na rua (ou não)

O escaravelho vermelho é uma praga das palmeiras. As suas larvas alimentam-se dos rebentos da palmeira, escavando túneis que levam à morte da árvore. Vi o exemplar da foto perto da entrada da minha casa e, depois de alguma hesitação, resolvi ajudar a salvar uma palmeira...

O comportamento deste escaravelho mostra-nos claramente que a natureza não é boa nem má: a natureza é como é... Claro que podemos alegar que as palmeiras também não seriam daqui, mas isso é razão para as condenarmos à morte? Além disso, há regiões de onde as palmeiras são originárias onde também estão ameaçadas.

Para combater este escaravelho, além das quarentenas e destruição das árvores, são usados insecticidas mais ou menos sofisticados e também tratamentos biológicos com nemátodos que os parasitam. Em qualquer dos casos, para os controlar e vigiar, são usadas armadilhas com feromonas. Essas feromonas que são, em termos de estrutura molecular, relativamente simples, são obtidas de forma sintética. A identificação dessas feromonas, assim como a sua síntese envolveu bastante trabalho químico que passa quase despercebido a quem fala de armadilhas para estes insectos (ou para outros) sem pensar de onde apareceram. É que mesmo que fosse prático apanhar ou criar os insectos e matá-los para obter as feromonas, estas ainda teriam de ser separadas de todos os outros compostos.

Assim, mesmo que um tratamento de origem biológica seja o mais adequado para o controlo de insectos, não podemos passar sem a química para muitos outros aspectos fundamentais do seu controlo.

Além disso, é também a química que permite identificar a estrutura e propriedades de alguns dos insecticidas que podem ser usados em agricultura biológica, como a azadiractina extraída das amargoseiras, um tipo de árvore bastante comum em Coimbra (ver a foto aqui ao lado), junto das quais quase não há mosquitos pois os seus óleos são larvicidas. Ou das piretrinas, a partir das quais foram desenvolvidos vários insecticidas sintéticos como a permetrina. Ou a rotenona, que embora seja de origem natural acabou por ser abandonada como insecticida e é agora classificada como toxina. É que, como bem sabemos, nem tudo o que é natural é saudável e seguros.

E, se no caso dos escaravelhos vermelhos, os nématodos são os bons da fita, no caso do escaravelho longicórnio já não o são. Estes nemátodos infectam e levam à morte os pinheiros em larga escala, sendo necessário recorrer a quarentenas, insecticidas e nematicidas de origem química e sintética. E, enquanto as palmeiras têm tido muitoa atenção mediática, o problema do nemátodo do pinheiro, que é muito mais grave em termos económicos, tem tido muito menos atenção.

Voltando agora a voar nas asas do escaravelho vermelho, proponho uma viagem imaginária à Ilha da Páscoa. Como é bem sabido, nesta ilhas todas as árvores (palmeiras) despareceram rapidamente no decurso de alguns séculos. Há várias teorias sobre isso, a maior parte delas baseadas no excesso de uso humano, sendo a mais famosa e dramática a de que a madeira foi usada para transportar os misteriosos ídolos gigantescos. Uma outra teoria baseada em pragas de ratos parece estar posta de parte, mas num curto diálogo que mantive com especialistas na história da Ilha da Páscoa, estes não puseram de parte a possibilidade de terem ocorrido pragas de escaravelhos vermelhos embora não seja possível, aparentemente, encontrar registos paleoquímicos que ajudem a demonstrar essa possibilidade...

 É também muito fácil encontrar insectos em flores, em particular as cantáridas. Deste insecto extraía-se um remédio antigo a cantárida usado com fins vesicantes (empregue de forma tópica para moluscos e verrugas), afrodisíacos e diuréticos. Na verdade, além de ser um medicamento muito perigoso se tomado de forma interna, a sua acção como afrodisíaco é bastante discutível.

Na literatura há um grande número de referências a este medicamento e aos insectos que lhe davam origem. Saliento, em particular, o final do romance "Madame Bovary" de Flaubert, em que o voo destes insectos acompanha a morte de Charles.

Um insecto que não podemos encontrar na rua são os bichos da seda. De facto, estes estão de tal forma domesticados que não resistiriam muito tempo numa das amoreiras que temos na cidade. Ainda não há muito tempo era usual encontrar estas árvores ripadas de folhas até à altura onde uma pessoa podia chegar. A moda dos bichos da seda para as crianças parece ter passado, mas a produção da seda ainda é uma actividade económica importante, mesmo em Portugal. O gosto exclusivo que estes bichos têm pelas folhas de amoreira é devido essencialmente a uma molécula identificada há relativamente pouco tempo, mas a combinação de compostos poderá também ter influência nessa escolha.

Muitos outras lagartas, como é bem conhecido, têm dietas muito específicas e exclusivas de algumas plantas. Isso, como não poderia deixar de ser tem uma explicação química, baseada numa molécula ou grupo de moléculas.