Aproveitando uma reunião que tive de manhã, fiquei na tarde do sábado passado no Porto a fazer umas fotografias e recolher algumas notas para um passeio químico nesta cidade magnífica que, devo dizer, não conhecia muito bem.
Existia, à partida, bastante ousadia neste meu empreendimento, pois não sou um conhecedor do Porto. No entanto, com a ajuda de alguns livros, em especial os de Germano Silva, assim como da internet e de um mapa, planeei uma visita bastante ambiciosa que se revelou mais curta nas distâncias do que pensei à partida, mas que foi muito mais demorada, porque não segui o plano de forma estrita.
As referências químicas históricas mais conhecidas do Porto são a Academia Politécnica do Porto, criada em 1837, a qual está na origem da actual Faculdade de Ciências da Universidade do Porto, e o Professor Ferreira da Silva que foi o primeiro presidente da Sociedade Portuguesa de Química. Por serem essas as referências mais seguras deixei-as para o fim do passeio, mas, infelizmente, anoiteceu rapidamente e acabei por não ter fotografias do antigo edifício da Academia Politécnica, onde fica actualmente a Reitoria da Universidade do Porto e Museus de Ciência e de História Natural, nem do livraria Lello e Jardim da Cordoaria, onde existem muitos pontos químicos de interesse.
Por acaso, comecei o passeio pelo antigo Edifício do Frigorífico do Peixe, um edifíco agora em obras, ao lado do actual Museu do Carro Eléctrico. O primeiro edifício evoca a industrialização da conservação pelo frio. A química da conservação pelo frio, que nem todas as pessoas sabe como funciona, e o desenvolvimento dos processos de conservação e da produção de frio e gelo são aqui um bom tema químico. Também a própria água, que é um líquido com um comportamento excepcional, com o Douro mesmo ali à frente, não pode deixar de ser referida.
O Museu do Carro Eléctrico foi em tempos uma central termoeléctrica. Uma forma moderna de produzir electricidade que hoje estamos a abandonar, mas que tem a sua história. Se tivesse seguido na direcção da ponte da Arrábida chegaria à Rua do Ouro na qual se situava o gasómetro (de que li ainda haver vestígios), o qual evoca uma forma de iluminação pública há muito esquecida.
Poderia ter seguido pela Rua da Restauração na direcção à antiga fábrica das cervejas Leão, mas segui pela Rua de Monchique, junto ao rio. Por aqui, mais à fente, ficava o Convento de Monchique imortalizado no "Amor de Perdição" de Camilo Castelo Branco e que vem a propósito para a evocação da química do amor. Fica também algures por aqui, o cais do Bicalho, onde terá havido uma fundição. A química envolvida na produção de ferro e aço assim como a evolução dessa tecnologia tem muitas histórias interessantes. Mais à frente ficava a fábrica de loiça de Massarelos que não localizei bem, mas que parece situar-se (onde se vê uma antiga chaminé) já no Cais da Pedras. Ficava também aqui, talvez em tempos diferentes, a fábrica de açúcar da RAR, indústria que ainda existe mas noutro local. Ficou neste local a RAR Imobiliária e algumas histórias para contar sobre o açúcar. Aqui fotografei um carro eléctrico e só a ver a fotografia notei um antigo letreiro de uma fábrica de toldos e oleados. Trata-se uns materiais que hoje em dia quase não ligamos mas que têm um interessante história química desde as primeiras experiências mal-cheirosas ao modernos polímeros.
Mais à frente fica o Museu do Vinho do Porto. Quanta química há no vinho, e no vinho do Porto em particular! Real e metafórica. Os tratamentos das vinhas tradicionais e modernos, as análises químicas, as moléculas e reacções químicas envolvidas, as glórias e misérias do etanol, tanta coisa que há para contar! Não tive tempo de entrar, mas fotografei uma das montras com alfaias e outros instrumentos. Mais à frente uma antiga fábrica com a data de 1942, a investigar melhor. Para cima (e é mesmo a pique pelas Escadas das Sereias ou Calçada de Monchique, onde ficava o convento referido acima) fica a Banderinha da Saúde cheia de histórias que Germano Silva evoca. Memórias dos tempos em que as doenças eram um risco difícil de entender e evitar.
Subi pelas escadas e segui pela Rua da Bandeirinha até ao Largo do Viriato e desci a Rua da Restauração. Dei logo com o Laboratório Médico do Prof. Alberto Aguiar (A. Aguiar é a inscrição no ferro forjado que só notei na fotografia), o qual é agora um escritório de advogados. Alberto Aguiar, professor catedrático da Faculdade de Medicina do Porto, teve aqui um laboratório que embora tivesse como fulcro a medicina, esteve muito ligado à química. É o próprio Alberto Aguiar que evoca essa ligação da química à medicina no Porto na sua tese de doutoramento que dedica, em particular, a Ferreira da Silva e Ricardo Jorge, e numa sua obra em que analisa essa relação de 1775 a 1925. Não conhecia este laboratório, nem fazia parte dos meus planos a sua localização. Foi uma descoberta que me surpreendeu e que só pude compreender ao analisar as fotografias e ao pesquisar o nome do Laboratório.
Mais abaixo passamos pelo Bairro Ignez, agora uma residência de estudantes, em frente a uma escarpa rica em vegatação, no cimo da qual fica o jardim do Palácio de Cristal (onde não tive tempo de ir). Depois da curva aparece a antiga fábrica de cervejas Leão da Companhia União Fabril Portuense (CUFP), a qual é referida em outras localizações, aparentemente todas correctas, mas em tempos diferentes. Esta fábrica esteve aqui de 1909 aos anos 1930 e está agora em Leça do Balio: faz parte da Central de Cervejas. Uma óptima oportunidade para evocar a química da cerveja.
Acabei por voltar a passar no mesmo caminho, mas agora fiz o cais das pedras por dentro e fotografei uma enorme argola metálica. Um exemplo de como a corrosão pode ser retardada apenas por todos os seus pontos estarem em contacto com o ar.
Seguindo para Miragaia, Germano Silva conta a história dos anarquistas que em 1916 fizeram explodir um conjunto de casas, enquanto faziam nitroglicerina. Aparentemente ainda lá está o buraco, mas há vários buracos e por isso não o consegui identificar (para isso irei precisar de ajuda quase de certeza). De qualquer forma, este é um pretexto para referir os explosivos e a sua química e segurança. E já agora o Aqulino Ribeiro de Um escritor Confessa-se.
Um pouco por acaso subi pela Rua do Comércio do Porto. Aqui há memórias de alguns processos e comércios tradicionais, mas o que mais me prendeu foram as cores em contraste com a luz do lado do rio. Mais à frente aparece o Instituto dos Vinhos do Douro e Porto e virei para o lado do Mercado Ferreira Borges. A cobertura do ferro com tintas vermelhas conhecidas por zarcão tem aqui a sua história. Ao lado na Praça do Infante, duas Gingko biloba. Serão macho ou fêmea? Se forem fêmeas a química é
terrível, literalmente! Mais abaixo, em frente à igreja de S. Francisco,
há outra que vi mais tarde.
O Porto é, e provavelmente sempre foi (veja-se, por exemplo, o que escreveu Link no final do século XVIII no seu famoso livro sobre Portugal), uma cidade muito limpa e organizada. Mesmo as árvores têm os seus próprios locais.
Subi a Rua de Mouzinho da Silveira, uma rua relativamente nova, rasgada na cidade medieval. Procurava a centenária loja Sementeira que encontrei facilmente. Mas encontrei também outras lojas pitorescas, uma delas com uma placa com química: sulfato de cobre. Virei para Rua das Flores que está em obras e fui até à Rua dos Caldeireiros, memória do trabalho do ferro. Entretanto, acabei por me esquecer do Largo de S. Domingues onde queria fotografar a famosa publicidade com o termómetro das tintas Stephens. A evolução da química e técnica de escrever é fantástica: das tintas de sais de ferro e ácido gálico de origem natural às esferográficas com tintas sintéticas, chegando às canetas de felto e agora de gel, há um conjunto de aspectos químicos e físicos a descobrir.
Passando para o outro lado da rua, entrei pela Rua do Souto e travessa do Souto (mas não chegei a ir à Rua de Pelames) e virei para a Rua Escura, verdadeiras ruas medievais do Porto antigo. Havia, segundo Germano Silva, nesta zona um forno de cal e resta no nome da rua a memória do tratamento das peles. Segui para o Largo Pedro Vitorino, local onde se venderam em tempos tripas e falhei a fonte de S. Miguel-o-Anjo com o seu gradeamento de ferro e estátua em pedra de Ançã e segui para o Largo do Colégio. Foi aqui que no início do século XIX esteve aquartelado o Regimento Académico de que Almeida Garrett fazia parte. Contrariamente ao que supus, de forma ingénua, não foi aqui que Camilo veio ouvir música quando estava com pouca vontade de estudar química para o exame que tinha no dia seguinte. O "quartel general" referido por Camilo Castelo Branco fica bastante mais acima.
Desci a Rua de Santana que não tem arco há muito tempo e continuei pela Rua dos Mercadores. Estava a escurecer e cheguei ao túnel, onde entrei. Quanto barulho no seu interior! Um problema de acústica interessante. Do outro lado os painéis da Ribeira Negra e os pilares da antiga ponte pênsil. Poderia ter seguido junto ao rio, mas (fiz uma má escolha e) voltei pelo túnel. Visitei a igreja de S. Nicolau, fui à Ribeira tentar encontrar a memória dos banhos públicos, o postigo do carvão e o muro do bacalhoeiros. Voltei a subir a Rua Mouzinho da Silveira a meditar sobre outro Mouzinho: Luis Mouzinho de Albuquerque que também esteve no Porto nas lutas liberais, mas que foi também professor de Química em Lisboa. Cheguei a S. Bento e fui ver e fotografar os azulejos. Segui para os Clérigos e passei na parte de baixo da Praça da Liberdade. Está lá a estátua de D. Pedro IV junto da qual terá havido, no final do século XIX, lugar reservado para a gente fina, num certo S. João, assistir ao fogo de artifício criado por um "certo químico" (temos de verificar quem era). O povo não gostou e ocupou os lugares da gente fina!
Era já noite cerrada, só havia luz aceitável na zona comercial moderna. A antiga Cadeia da Relação, o Jardim da Cordoaria, a Academia Politécnica, as lojas pitorescas que há por ali até ao Bolhão ficam para outra altura.
Biblografia (a completar)
Marina Graça e Helena Pimentel, Seis Percursos pelo Porto (Afrontamento, 2002)
Germano Silva, Porto: viagem ao Passado (Porto Editora, 2013)
Germano Silva, Porto: história e Memória (Porto Editora, 2011)
Germano Silva, artigos variados na revista Visão.
[versão peliminar de 19 de Novembro de 2013, com algumas alterações de 23 de Novembro]
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