Passeio Químico em Tomar

[Fui bastantes vezes a Tomar, mas tenho passado lá sempre pouco tempo ou só tenho estado à noite. No entanto, juntando as várias fotografias que tinha, e, também porque vou a Tomar dar uma palestra no final do mês de abril de 2024, aproveito para refletir sobre algumas coisas que vi. Entretanto, dei conta de que quase todas as fotografias que tinha foram tiradas durante a noite. Logo que possa substituo-as.]  

Tomar é uma cidade com antigos e novos atrativos. A enciclopédia Portuguesa-Brasileira dedica-lhe inúmeras páginas, dando muita relevância aos monumentos. De facto, um dos ícones mais conhecidos da cidade é a Janela Manuelina do Convento de Cristo. Mas Tomar tem muito mais atrativos. Não só assumiu a herança dos templários, como também apresenta muitas inovações, que em boa parte envolvem a proximidade do Instituto Politécnico de Tomar.    

José-Augusto França (1922-2021) nasceu em Tomar e escreveu alguns trabalhos sobre a cidade. Podemos visitar o Centro de Arte Contemporânea do Museu Municipal, que tem cerca de duzentas obras que este colecionou durante a sua atividade, em particular relacionadas com os movimentos artísticos portugueses, mas eu ainda não tive tempo para ir lá.

Embora já tenha ido várias vezes ao Convento de Cristo, não tenho fotografias. Entretanto, a última vez que fui a Tomar fotografei a entrada da Igreja da Misericórdia. Fico sempre surpreendido com o que se pode fazer com a pedra. Durante milénios a humanidade só tinha disponíveis basicamente cinco tipos de materiais: minerais (rochas e metais), vegetais (fibras, etc.), animais (couro, ossos, etc.), cerâmicos e vidros. Os polímeros, para além dos avanços que proporcionaram em relação a estes tipos tradicionais, vieram alargar muito as possibilidades só no século XX. Agora causam problemas, mas permitiram alargar muito as possibilidade e, paradoxalmente, a sustentabilidade.  

Luís de Freitas Branco nasceu também em Tomar. No Parque da Levada, penso que há uma estátua alusiva a este ator importante  da nossa história. A sua obra é lembrada na “Casa da Memória”, onde também ainda não tive tempo de ir. 

 Também não fui ao Museu dos Fósforos, mas o guia que consultei refere que neste podemos ver milhares de caixas (mais de sessenta mil) de mais de 120 países. Curiosamente, em Jonkoping, na Suécia, visitei um Museu dos Fósforos, que não dá tanta importância às imagens das caixas, mas às questões da produção destes.

Ao passar a ponte sobre o Rio Nabão, chamou-me a atenção a calçada portuguesa com rochas rosa e brancas. As calçadas em Portugal continental são em geral feitas de rochas calcárias de carbonato de cálcio, mas a presença de óxidos de ferro, ou outros, ou de compostos de carbono, fá-las apresentar uma gama muito grande cores. No caso dos vermelhos e rosa, provavelmente óxidos de ferro.

No parque da levada do mouchão (1), há uma roda de madeira alusiva ao aproveitamento da água realizado pelos árabes. Mas quando dizemos isso podemos refletir um pouco. Portugal e a Península Ibérica durante muitos séculos foram colonizados por esses povos do Sul, havendo uma razoável harmonia e tolerância.    

O grande industrial de Tomar foi Manuel Mendes Godinho, mas eu não sabia. Mas, ao ver uma estátua com o seu nome, fiz alguma pesquisa, em particular li o livro de Manuel Valente (2) e aprendi muitas coisas. O império industrial da sua família estendia-se das moagens clássicas de farinha, aproveitando a energia do rio, fábricas de rações e de cerâmica, de extração de óleo de bagaço de azeitona e uma hidroelétrica (estas últimas, mais pela necessidade de energia para as anteriores, segundo percebi), entre muitas outras. Algumas destas indústrias mais antigas fazem agora parte do Complexo Cultural da Levada, junto ao rio. 

Talvez não seja muito conhecido o legado de Mendes Godinho, mas se eu referir “platex” e azeite “Oliveira da Serra” quase toda a gente conhece. Começando pelo segundo caso, Mendes Godinho e sua família não criaram diretamente a empresa “Sovena” responsável por esta marca de azeite, mas criaram a “Tagol” que na sua segunda vida, depois de passar por muitos problemas, deu origem à atual Sovena (3).  Já a “Platex”, e as empresas de aproveitamento de fibras de madeira que se lhe seguiram, surgiu por intervenção direta de Mendes Godinho - “platex” permanece no nosso imaginário (pemo menos no meu) como sinónimo de um tipo de aglomerado de madeira. 

Porque refiro estas empresas que parecem não ter nada a ver com Química? Começando pela primeira não há dúvida que têm. Queremos azeite “puro” no sentido de ter vindo diretamente da azeitona sem intervenções “químicas” mas estas têm necessariamente de existir, nem que que seja na análise química do resultado, confirmando essa “pureza”, através da química analítica e controlo de qualidade. É que não podemos confiar cegamente na “pureza” publicitada. Os possíveis vigaristas conhecem essa nossa fraqueza por coisas “puras” e usam-na a seu favor. Em Espanha, por exemplo, nos anos oitenta do século XX morreram várias pessoas que compraram azeite em mercados provavelmente “caseirinho” que era obtido destilando um óleo que não se destinava a consumo humano. 

Não quero com isto dizer que o conceito de “caseiro” seja mau – é bom com certeza -, o que é necessário é que seja verificado, não só que o produto é mesmo “caseiro”, mas também que não origine riscos para a saúde, pois não faltam coisas “caseiras” perigosas. Mas há mais. A Química permite também a análise detalhada da composição e a otimização das condições de fabrico para ajudar a Natureza a agir de forma mais rápida e segura. A Química não procura fazer um azeite “melhor” (embora no seu programa de alargamento da natureza possa tentá-lo), mas verificar, estudar e otimizar o resultado “natural”. Quanto ao “platex” (no estrangeiro “valbonite”) fiquei surpreendido com o que pesquisei. Os pedaços de madeira são reduzidos até ficarem quase só as fibras separadas e depois estas são prensadas, ficando coladas com a cola natural da madeira, a lignina. Não percebi bem de onde vinha a cor castanha caraterística, mas penso que possa ser acrescentado um corante que pode bem ser natural, pois o castanho é muito comum nestes contextos.      

Com as ferramentas da Internet podemos “ver” muito mais do antigamente. Só temos de estar atento. Ao sair da cidade em direção a sul, notei uma instalação fabril. Usei o Google Maps, onde se viam muitos tanques. Depois de alguma pesquisa na Internet, verifiquei que era uma destilaria que além disso tinha outros produtos. Há muito tempo que se destilam vinhos para obter álcool, e estes oferecem várias graduações. Mas além disso, têm também grainhas de uva desidratadas e outro produto tradicional derivado do vinho, o ácido tartárico. 

O ácido tartárico está no centro de um grande avanço na Química. A descoberta da quiralidade (4) nalgumas moléculas. A natureza usa preferencialmente uma das formas. Por exemplo, nos açúcares, a maior parte dos usados pelos organismos vivos estão na forma D. Por outro lado, a maioria dos aminoácidos nos seres vivos são L. A parte mais relevante é que estas moléculas são muito comuns na natureza, mas até Pasteur não sabíamos da sua existência. Pasteur, com muita paciência e bastante sorte (mas a sorte conquista-se e favorece as mentes preparadas) separou as formas D e L dos cristais de ácido tartárico. Depois, juntando muitas informações, chegaram à conclusão que isto em geral envolvia o carbono estar num tetraedro rodeado de quatro grupos químicos diferentes (carbono assimétrico). Daqui até se poder hoje produzir só uma das formas das moléculas demorou algum tempo, mas não deixa de ser curioso que a L-DOPA, usada para o tratamento do Parkinson tenha sido a primeira molécula a ser produzida de forma industrial na Monsanto (na altura uma empresa essencialmente química e centenária). Hoje em dias há imensos processos para produzir apenas uma das formas das moléculas.      

A Festa dos Tabuleiros é uma das atividades mais conhecidas da cidade. Esta é realizada regularmente desde o século XIV. Deste há algum templo é chamada Festa Templária, reunindo outra das atrações da cidade e é realizada de 4 em 4 anos. A festa de 2024 tem lugar de 11 a 14 de julho e envolve, segundo vários sítios de divulgação, recriações, visitas, seminários, acampamentos, mercados, concursos, entre outras atividades, que irão evocar a história, as lendas, os segredos e os mitos, da mais rica e poderosa instituição medieval, a Ordem dos Templários.

Segundo o sítio do turismo, o tabuleiro é o símbolo e a principal alfaia da Festa dos Tabuleiros e deve ter a altura da rapariga que o carrega. É ornamentado com flores de papel, verdura e espigas de trigo. Tem além disso, 30 pães de 400 gramas cada, enfiados em 5 ou 6 canas. Ainda no sítio, ficamos a saber que estas canas saem de um cesto de vime envolvido em pano bordado e são rematadas, no topo, por uma coroa encimada pela Cruz de Cristo ou Pomba do Espírito Santo. Há um monumento numa rotunda com esta iconografia, mas eu fiquei a pensar nos pães. De acordo com estas contas, estes teriam no total um peso de doze quilogramas, o que corresponderia a mais de 31 mil calorias (na verdade quilocalorias, sendo que um ser humano típico consome cerca de dois diárias). Assim, os pães de um tabuleiro dariam para cerca de 15 dias em termos de calorias de uma pessoa. Se consideramos o número que li de mais de 600 tabuleiros, dá mais de sete toneladas de pão. Todo este pão é entregue às populações. A festa de 2024 ocorrerá em breve.

Notas e referências

(1) Mouchão é uma ilha num rio. Outros nomes usados são “murraça” ou “murraceira” por exempo. Eu não conhecia o significado desta palavra mas hoje em dia podemos aprender as coisas rapidamente com a Internet. Muitas vezes só custa tempo e, claro, o uso de espírito crítico. E podemos saber com as coisas se pronunciam. Isso é muito útil para nomes estrangeiros. 

(2) Leonel Valente. Mendes Godinho : uma história de empreendedorismo empresarial familiar. Associação MG – Memorial Mendes Godinho, 2018. 

(3) Segundo o livro que li no livro de Leonel Valente (2) a "Tagol" foi a maior empresa privada de Portugal. Com a revolução, a família que era dona da empresa através do banco também da familia, que foi nacionalizado, acabando o banco dono da empresa. De vicissitude em vicissitude, acabou na falência, tendo uma "segunda vida" agora como "Sovena" que é dona de marcas como a do azeite "Oliveira da Serra". Além das produções normais em 2007 inaugurou uma unidade de produção de biodiesel que produzia 300 toneladas por dia. A Sovena, através de um complexo conjunto de participações o Grupo Jorge Mello. A história é contada em detalhe no livro de Leonel Vicente, mas houve alturas que a Tagol esteve para ser da Tabaqueira, agora do grupo da Philip Morris, ou da Cargill, uma multinacional que o publico não conhece em geral por os seus negocios envolverem materias primas alimentares e não produtos finais. Estar agora na esfera do Grupo Mello, foi conhecido como a "vingança do amendoim" por inicialmente ter quebrado o monopólio das óleos alimentares da CUF (Companhia União Fabril, que irá dar mais tarde origem ao Grupo Mello).

(4) Moléculas quirais têm geometrias que são a imagem no espelho umas das outras, como as nossas mãos esquerda e direita. São ditas “enantiómetros” mas a sua mistura não tem propriedades óticas e é referido que forma uma “mistura racémica” ou “racemato”. A notação tradicional D e L para dextrogiro (seguindo o sentido horário) e levogiro (sentido anti-horário) foi sugerida por Emile Fischer tendo como base a posição dos grupos OH o formaldeído e é conhecia como a configuração absoluta. A notação (+) e (-) (ou d/l em minúsculas) refere-se ao valor experimental dessa rotação. Finalmente temos a notação R e S (rectus e sinistra) que se aplica para o ambiente químico que rodeia cada carbono. Apenas para o formaldeído é garantido que D é (+) e L (-). Nos restantes casos, podemos diferentes possibilidades. 



Passeio químico em Milão

[Aproveitando que estive em Milão no fim de semana de 10 de março, fiz algumas fotografias e realizei alguns reflexões para este passeio químico]  

Milão é conhecido como a capital da moda e, de facto, inúmeras montras e espaços são muito inovadores. Foram incontáveis os momentos em que fomos vendo e discutindo as soluções estéticas e técnicas das montras. Houve uma marca em particular que nos entusiasmou pela beleza do resultado. Usavam grandes quantidades de algodão nas cabeças dos manequins para estas parecerem nuvens. 

Noutra montra, espantou-nos o inesperado de "esculpir" pães como pantufas. Outra ainda ao colocar brilhantes em bananas. E muitas vezes procuravam efeitos provocadores, como um oculista que tinha na montra armações para supostos tipos humanos: intelectual, homossexual, etc. Tudo isto pode ser interessante, mas a parte técnica que está por detrás, em particular a Química, também é. Desde logo as montras podem ser atualmente de vidros enormes por hoje em dia ser possível fazer vidros planos muito grandes sem defeitos e muito mais seguros. 

Como já referi em várias ocasiões, ao solidificar o vidro em estanho líquido podemos obter superfícies muito planas de grande dimensão. Mas isso não chega: esse vidro é perigoso pois pode quebrar e fazer gumes enormes que em várias circunstâncias causaram vítimas. Aquecendo e arrefecendo o vidro de forma especial podemos obter vidro temperado que aos estar em tensão vai estilhaçar em pedaços pequenos com o impacto. Podemos “ver” esses vidros com as lentes dos óculos polarizadas, ou mesmo em determinadas condições luminosas. Nessas condições, o vidro apresenta-se como uma espécie de malha mais ou mesmos regular. Mas isso também não chega. Mesmo os estilhaços podem causar danos. O vidro pode ainda ser laminado ou duplo, ou todas as coisas ao mesmo tempo. No caso do vidro laminado, basicamente as superfícies de dois ou mais vidros são unidas por um polímero (noutro texto expliquei que polímero poderia ser). Isso faz com que se o vidro quebrar não se separe, ficando colado ao polímero. Os vidros podem ainda ter camadas do outros polímeros, ou terem rugosidade microscópicas, para se evitar os reflexos. Todas estas soluções encontram uso nos carros, nos vidros dos museus e em nossas casas.

Mas não são os apenas os vidros das montras que nos podem espantar. A forma como são realizadas as obras também. Na montra de uma marca bem conhecida, as bases onde assentava o calçado era de espuma de poliuretano (PU). A mesma espuma que é usada na construção para fazer "uniões sem pregos". Se usaram os tubos comercializados com esse polímero para fazer essas bases, usaram bastantes! E o que é o PU? É um polímero muito versátil em que os monómeros estão unidos por ligações uretano (sem usar mais termos técnicos, a ligação é feita por grupos -NHCOO-). Estes polímeros são extremamente versáteis, podendo ser usados nestas espumas, nas espumas dos colchões e em materias que “imitam” couro (na verdade são muito mais versáteis do que simplesmente "imitar"), entre muitas outras aplicações. É importante fazer duas considerações sobre estes últimos usos. Se as espumas do colchões tiverem poros muito pequenos, o ar tem dificuldade em entrar e sair, criando um efeito de “memória da forma” que é muito publicitado. E no caso dos polímeros que “imitam” couro há a considerar a sustentabilidade e a proteção da vida dos animais que este uso permite. 

Ainda nessa montra, podemos ver ao fundo roupas de ganga tingidas com índigo. Também já referi várias vezes que se trata de uma molécula natural muito estável, mas pouco solúvel. Para a usar no tingimento tem de passar para uma forma reduzida que tem mais dois átomos de hidrogénio, conhecida como leucoindigo que é verde-amarelado. Nestes processos é usada muita água e um tema de investigação e desenvolvimento é diminuir essa quantidade, assim como o desperdício do corante. A sua produção tem também aspetos químicos interessantes. 

O índigo natural é produzido por várias plantas além do índigo – em Portugal pelo pastel dos tintureiros. Mas a produção natural pode não ser a mais sustentável. Sendo que a planta produz uma pequena quantidade (cerca de 0.3%) do corante, precisaríamos de muito área arável com a planta para produzir as 50 a 60 toneladas usadas anualmente em todo o mundo. Uma estimativa grosseira aponta para toda a área arável de um país como Portugal. Estão a ver o resultado? Se todo o índigo fosse de origem natural, poderíamos ficar sem espaços para outras culturas. Isso aconteceu realmente com as plantações nas colonias americanas. E podemos imaginar a quantidade de água e pesticidas que seriam usados, etc. Em contrapartida, esta molécula pode ser produzida de forma muito mais sustentável por síntese em fábricas. Infelizmente, o uso excessivo, a moda, em particular o “fast-fashion”, anulam uma boa parte destes ganhos de sustentabilidade, mas voltaremos a este assunto.       

 Várias outras montras que vimos usavam polímeros. Aliás essa era a norma, pois os polímeros além de serem facilmente obtidos e do baixo custo, permitem uma gama muito grande de utilizações. A montra de uma outra marca bem conhecida apresentava muitas cores, com objetos de grandes dimensões e revestimentos de, claro, polímeros (ou se quiserem usar o termo comum para alguns tipos de polímeros “plásticos”). E isso não é afinal mau como veremos e, sobretudo, deve ser compreendido.

Outra montra que nos chamou a atenção, foi a de uma marca cujo negócio era fazer sapatos de tenis recondicionados (essa valorização é conhecida no mundo da moda por upcycling). Na montra podíamos ver as máquinas de lavar, onde estes eram lavados, as máquinas de costura, onde estes eram reparados e onde lhes acrescentavam materiais e uma grande quantidade de tenis pendurados e, claro, os resultados. A ideia é interessante, e uma boa parte da modo é já assim: reutilização e reciclagem de objetos antigos. Mas o “fast-fashion” incentivado por os custos de produção e venda serem mais baixos, pode anular esses ganhos, como já referi. Os sapatos de tenis dessa marca, mesmo recondicionados, eram bastante caros. Uma das formas de minimizar o “fast-fashion” é aumentar os preços. Há várias marcas que fazem isso, e inclusive publicitam-no. E fazem-no porque essa estratégia comercial os favorece. Isto é extremamente complexo, mas os incentivos positivos e as tensões que se estabelecem, podem ajudar a que as coisas melhorem (talvez). Em todo o caso, dificilmente sairemos deste sistema que se vai metamorfoseando, renovando e absorvendo as inovações, muitas vezes de forma paradoxal.

Vou achar a atenção para duas coisas que vimos em Milão e que ilustram de forma clara o que referi no parágrafo anterior. A primeira é a estátua enorme com um manguito em frente a bolsa de valores, feita de mármore. Instalada de forma efémera, foi decidido mantê-la de forma permanente. Que imagem melhor para as contradições intrínsecas e às quais não podemos escapar do capitalismo? Outra é a nova tradição de oferecer às mulheres ramos de flores de acácia. Nós chegámos no Dia da Mulher e havia imensos vendedores com ramos dessas flores para venda. E num supermercado vimos que o preço poderia ser de dez euros! Como?
Depois de alguma investigação, cheguei a uma mulher política italiana que terá dito para oferecerem flores de acácia, que eram de graça, em vez de rosas. Podemos ver que logo o capitalismo se adaptou para obter dinheiro com algo que poderia ser de graça. São incontáveis os exemplos desse tipo. Se é possível ganhar dinheiro com algo, ou gastar menos dinheiro, logo alguém descobre uma forma engenhosa de o fazer.  Mas pode não ser a primeira nem a única pessoa que tenta. Muitos acabam por não conseguir, ou ganhando no princípio, a longo prazo perdem. Mas podemos acabar com esse sistema? A história tem-nos mostrado que as revoluções utópicas que pretendem  terminar com este estado de coisas acabam por ser absorvidas e, se forem mais violentas e impostas, não funcionam de todo a longo prazo, embora possam mostrar que existem novos caminhos, ou caminhos que não devemos seguir. Mas a verdade é que das várias convulsões e tensões que têm existido surgiram muitas melhorias.            

Tinham-nos dito que Milão se via num dia. Nunca acreditamos nisso, mas a verdade é que as coisas mais antigas e “turísticas” estão bastante perto umas das outras e, se se fizer um percurso puramente turistico, rapidamente se vê tudo o que os turistas procuram. Ora, Milão é muito mais do que isso. Para começar é uma cidade enorme. Tem mais de um milhão de habitantes no centro e estima-se a população à sua volta em mais de quatro milhões na zona. O seu comércio, serviços, indústrias e população geram riqueza para que a cidade seja considerada uma das maiores da Europa. Por isso a recolha de lixo, o abastecimento de água, o uso de eletricidade e a organização do tráfego e segurança das ruas são só por si enormes empreendimentos de engenharia.

 Há uma cidade que vive para além do turismo e das feiras de moda e arte. E há, na minha opinião, uma cidade que só se conhece indo ao local. Por exemplo, nós ficamos na “China Town”, de que nunca tínhamos ouvido falar, e que corresponde à ideia que temos dessas cidades, mas que à noite se enche de jovens para comer noodles e beber cerveja relativamente barata. Eu nunca teria imaginado se não tivesse estado lá. Depois a zona dos canais de Navigli, que também não conhecíamos dos guias, é muito interessante. Obviamente, as cidades florescentes surgiram onde havia muita água disponível, mas aqui foi mais do que isso. 

Os canais serviam também para transporte como foi feiro em muitas das grandes cidades. Eu que tinha ido a Milão a reler o livro de Alessando Manzoni, “Os noivos”, passado no Milão do século XVIII, ocupada pelos castelhanos, meditei em tudo isto, enquanto andava por ali a ver os livros usados. Este livro é o equivalente dos “Maias” de Eça de Queirós que todos os alunos leem na escola, e que é na minha opinião, um contraponto, do “Crime do Padre Amaro” onde todos os padres são bons exceto um, que não sendo propriamente mau, revela-se um covarde. É engraçado, mas não tanto como o crime do padre Amaro, nem como os Maias. Mas julgo que é um marco da unificação da língua italiana. Que é que isto tem a ver com Química? Na verdade, é bastante pouco, mas o suficiente para perceber que o mundo nao se desenvolvia sem química.      

Claro que vimos a catedral, as Galerias Vitorio Emanuele II, o Teatro La Scala e as famosas pinacotecas de Brera e Ambrosina, em particular tivemos muito tempo nesta última. Vimos a famosa biblioteca e uma exposição de desenhos de Leonardo da Vinci. Não fomos ver a sua última ceia de Leonardo que está a levantar problemas de conservação, mas fomos ao mosteiro de São Maurício que tem todas as paredes pintadas. Estivemos no Castelo de Sforza, vimos o Arco da Paz, fomos à Porta Nuova e aos triângulo da moda. Não fomos ver o estádio de San Siro, onde jogam duas equipas de futebol (o Inter e o A.C Milan). Quis o acaso que em Navigli estivesse uma quantidade enorme de adeptos de uma equipa checa que tinha jogado com uma das outras duas (não sei qual) e estavam a beber cerveja e entoar cânticos que pareciam ser em português, mas obviamente não eram. 

Na Pinacoteca Ambrosiana, vimos vários quadros de Ticiano e outros autores bem conhecidos. Uma pintura de Maria Madalena, lembrou-me que tinha lido um artigo sobre a identificação de hipotiroidismo num desses quadros numa modelo. O quadro que estava lá não parecia ter todas as características indicadas para o diagnóstico de hipotiroidismo como a cópia da Galleria Pamphilj em Roma, mas em qualquer dos casos, o pescoço parece ser compatível com a presença de bócio. Na altura, não havia qualquer ideia, obviamente, de que se tratava uma doença devida à falta de Iodo, que poderia ser provocada por deficiente produção de hormonas da toroide, ou por uma alimentação inadequada.      

Nesta pinacoteca, havia várias coisas que poderíamos considerar bizarras. Umas luvas que terão sido de Napoleão Bonaparte, estátuas colocadas em locais escuros, uma capa oferecida supostamente por indígenas há muito tempo, com penas de aves, objetos com escamas de peixe e corais que pareciam mal conservados. Mas o que me chamou mais a atenção foram uns caracóis de cabelo muito louros numa caixa atribuídos a Lucrezia Borgia. Eu achei muito estranho que fossem da famosa Lucrezia Borgia, mas podia comparar isso com umas madeixas de cabelo que estão no Museu Romântico no Porto de cabelos atribuídos a Inês de Castro. Acontece que estes cabelos foram descobertos numa carta que esta trocou no século XVI com o seu amante Pietro Bembo, entre 1502 e 1506, quando casou com o Duque de Ferrara, li num guia. 

Ao passarmos no grande jardim central, depois do Arco da Paz (este tinha sido vandalizado com tinta laranja, em novembro de 2023, por ativistas do clima e ainda lá estavam os efeitos), fomos um pouco por acaso ao espaço da Triennale onde havia um grande exposição de obras de Ron Mueck, além da exposição permanente sobre o design italiano. Para quem não sabe, Ron Mueck é um dos expoentes da arte hiper-realista, mas o que torna as suas obras únicas e facilmente identificáveis são as dimensões inusitadas. Estava lá a conhecida escultura da mulher na cama (In Bed, 2005) cuja cama tem seis metros e meio de comprimento por quase quatro metros de largura, assim com a mulher com um feixe de paus (Woman with Sticks, 2009), mas era surpreendente o "depósito" de caveiras gigantes (Mass, 2016-2017) e várias outras obras.
Obviamente tudo isto envolve muito trabalho, polímeros, vernizes e fibras, assim como novos métodos de fabricação. Em particular em Mass são cem caveiras gigantes com cerca de 40 a 45 quilogramas cada uma, feitas de fibra de vidro e resinas, acabadas à mão pelo artista. No caso de In Bed são usados vários materiais. Do que li, além do algodão dos lençóis e fronhas, a personagem humana envolve uma armação de ferro coberta com gesso e pasta de modelar coberta com polímero de silicone. Uma das obras ainda não estava ainda acabada (This little piggy), e e apresentada como uma maquete.

Na exposição permanente do design estavam muitos ícones do século XX. Chamou-me a atenção o primeiro computador pessoal de Olivetti e muitos objetos que usavam o novo material que eram os plásticos, ou de forma geral os polímeros. Ao olhar para tudo aquilo não podemos ver o plástico como um “sucedâneo” como é referido num famoso texto de Roland Barthes, mas como um coisa nova, nobre e única. 

Os plásticos não imitam apenas. Vieram acrescentar aos cinco materiais tradicionais que acompanham a humanidade desde tempos imemoriais (os metais, a pedra, os animais, nomeadamente o couro, os vegetais, de que são exemplo os tecidos e a cortiça, e os cerâmicos), um conjunto muito grande de outras possibilidades. O primeiro computador não militar desenvolvido e vendido por Olivetti a partir de 1959 é o ELEA. Tanto a Química como as outras ciências começaram a usar computadores mal estes ficaram disponíveis. 

Mais à frente na exposição podem ver-se propostas para instrumentos laboratoriais de Química. E achei muito interessante ter propostas relativas ao desenho de formar de purificar água com a radiação solar, assim como a "anatomia" de uma torneira. Estas duas entradas são na minha opinião muito interessantes pois permitem ver para dentro desta. Olhando com atenção vemos a combinação de materiais: o cromado exterior e o latão ou cobre interior. O cromado, como o nome indica, envolve a deposição de uma canada de cromo na superfície, e o latão é uma liga de cobre e zinco. Já devem ter visto torneiras antigas com camadas verdes que começam a aparecer. Isso é devido à oxidação do cobre. Do que li, as camadas de cromo decorativo variam de espessura entre cerca de 0,1 e 0,2 micrómetros. 

É preciso ser um geólogo experimentado e que conheça bem o local para conseguir identificar com alguma segurança as rochas usadas na construção e estatuária. Mas como eu costumo dizer também:  é preciso olhar com atenção. A mim chamou-me a atenção a utilização em Milão de rochas que tinham muitas conchas, o que me parecia estranho dado que não há mar perto e geralmente as rochas usadas na construção não vêm de muito longe. 

Depois de alguma pesquisa pareceram-me ser calcários detríticos do Vale de Ceresio, a cerca de 70 quilómetros de Milão. Olhando com mais atenção para a fotografia, há um conjunto de rochas diferentes que não consigo “ler”. Algumas parecem ser granito, outras calcárias, mas não me atrevo a propor hipóteses. O que é certo é que as rochas usadas na construção não poderiam vir de muito longe. Do que li têm sido usados, além dos calcários detríticos de Ceresio,  granitos, mármore e gneiss do vale de Ossola, que fica a cerca de 40 quilómetros, dolomias do Lago Maggiore, que fica a cerca de 100 quilómetros, arenitos de Brianza, que fica a cerca de 40 quilómetros, conglomerados e arenitos da bacia do Rio Adda, a cerca de 50 quilómetros, e pedra calcária negra e mármore do Lago Como, também a cerca de 50 quilómetros. 

O Museu da Ciência de Milão é enorme. Além das exposições típicas de um museu deste tipo, tem um submarino, um foguete, aviões, locomotivas, carruagens, barcos e muitas outras coisas. A parte da Física das partículas é muito desenvolvida, com partes de aceleradores e outros objetos. Também o Espaço, com fatos espaciais e réplicas (penso que o sejam) de satélites, além de ter bastantes coisas interativas. Chamou-me a atenção o elevado número de oficinas para crianças em corredores envidraçados. Além de muitas outras, tinha uma grande exposição permanente sobre a indústria metalúrgica e sobre todos os aspetos da produção, reciclagem e uso de alumínio. 

Nunca mais encontrava aquilo que mais procurava: a bancada de Giulio Natta. Este cientista trabalhou em Milão e foi Prémio Nobel em 1963 pela descoberta de nova vias sintéticas para a produção de polímeros, em  particular polipropileno. É preciso notar que este, assim como os cientistas da altura, não descobriram apenas novas formas de fabricação de plásticos. Encontram novas formas de os produzir com baixo custo e menos desperdício de materiais e energia, aumentando a sua potencial sustentabilidade, e controlar as suas propriedades, abrindo acima a porta a fazer reações que tiveram (e ainda têm) impacto no desenvolvimento de fármacos e novos materiais. Ou seja, este Premio Nobel não deve ser valorizado “apenas” pela produção de plásticos, mas pelos muitos desenvolvimentos que proporcionou, em particular em algo que é hoje muito valorizado: a catálise assimétrica.  

Depois de algumas conversas com guias e monitores acabei por descobrir onde estava. Mas estava fechada, numa ala dedicada à indústria química. Na altura pareceu-me uma coincidência, mas, poderia não ser. Entrava em dissonância com outras grandes exposições que o museu também tinha sobre os plásticos nos oceanos, e, como era fim de semana e o museu estava cheio de famílias, talvez não quisessem originar polémica. 

Ora, na minha opinião, não deveremos escamotear estas questões (devendo os museus ser espaços de debate e liberdade), pois o plástico é, e ainda é, uma grande, invenção que permite muito mais sustentabilidade e versatilidade. Sem este material não teríamos telemóveis e computadores e devido a este podemos ter óculos e muitos outros instrumentos mais práticos e sustentáveis. E continua a haver investigação e a aparecerem novas aplicações. Se nos espaços públicos continuarem a insistir nestas ideias maniqueístas, corremos o risco de não salvar o bebé, mas de o deitar fora com a água do banho. Não tenho pena dos fabricantes que hão-se em média sempre encontrar formar de ganhar dinheiro, mas de toda a sociedade que perde acesso a um debate complexo, a um drama denso, cheio de contradições, e não apenas a contos de fadas ou histórias de terror que os infantilizam. Quando visitei o museu, nessa exposição dos plásticos, estava um visita de estudo com deficientes mentais pouco profundos e podia-se ver as caras de raiva destes perante os horrores que eram os plásticos nos mares.   

Formos no último dia ao cemitério monumental de Milão rapidamente. Estava a chover torrencialmente, mas vale a pena dada a qualidade das esculturas e das inovações na arquitetura mortuária. A logo prazo todos morrem, mas podemos aumentar a esperança e qualidade de vida.

Passeio Químico em Vouzela

[Tinha estado em Vouzela em 2020, altura em que pensei neste projeto e fiz algumas fotografias. Calhou ter estado há pouco na Vila e nas horas vagas completei-o]

Vouzela e a envolvência transmitem beleza e calma. O centro da vila é muito elegante com as suas ruas com piso de pedra e as casas bem cuidadas, muitas delas antigas e brasonadas. As paisagens são muito bonitas e há locais arqueológicos de vários tempos e de todos os tipos. No início de 2024, estava quase concluído o Centro de Ciência Viva, com entrada pela rua por detrás do antigo Mercado Municipal que foi desenhado por Raul Lino e que também estava em obras quando lá fui. O Centro de Ciência Viva vai incluir um borboletário e terá como temas principais a ecologia e a alimentação, se não me engano.  

O loendro, como é referido no guia, é um arbusto muito comum aqui. Trata-se de um rododendro (Rododendron ponticum), não da planta venenosa que é comum em todo o país e que é por vezes confundida com esta, tendo em alguns locais o mesmo nome: o oleandro (Nerium oleander). São bastante diferentes e só alguma falta de atenção aos pormenores os pode confundir na minha opinião. As moléculas emblemáticas das duas espécies são também muito diferentes, mas não vou falar mais deles pois não fui aos jardins de loendros que o meu guia indicava serem imperdíveis. 

Fui, no entanto, ao Museu Municipal. Este tem uma interessante exposição permanente sobre o ciclo do linho. Trata-se de uma fibra vegetal, usada desde tempos imemoriais, que se transforma no tecido por um conjunto de processos complexos e demorados, muitas vezes conhecidos como “tormentos do linho.” A fibra é essencialmente celulose (um arranjo insolúvel de moléculas de glicose ligadas umas às outras em fila), sendo esta retirada e separado das palhas dos caules das plantas secas, que são colhidas inteiras, por processos basicamente semelhantes em todo o mundo e bastante duros. As fibras são depois fiadas, lavadas repetidamente, sendo as meadas “coradas”. Esta última operação é usada para clarear os fios através da oxidação da matéria orgânica que lhe dá as cores mais escuras.
Para o efeito, era preparada uma solução com a cinza branca de madeira queimada (em geral de oliveira) e água, que dada a composição da cinza, é em termos químicos alcalina, tendo muitos sais de que se destaca o carbonato de potássio. As meadas eram cozidas no forno em panelas de ferro com cinza e sabão. O fio era seco, dobado, urdido e tecido. E, finalmente, a teia obtida era clareada com processos semelhantes aos anteriores com lavagens e solução de cinza. Todo o processo é demorado, envolve muitas pessoas, é muito duro e usa muita água e recursos. Nos anos 60-70 do século XX foi praticamente abandonado, mas volta agora como memória e atividade artesanal que é de novo valorizada.

Os pastéis de Vouzela são muito apreciados. Em termos de materiais são semelhantes aos de Tentúgal, mas não vou aqui tecer qualquer comentário sobre quais são melhores. Os de Vouzela são excelentes, basta dizer isso. Já escrevi longamente sobre a obtenção de massa finíssima de trigo antes e sobre o recheio de ovos moles. Quero apenas chamar a atenção para o facto de na farinha de trigo ser o glúten que permite a elasticidade da massa quando crua e as espessuras muito pequenas na massa pronta. Os pastéis de Vouzela são por fora de massa extremamente fina de trigo. O recheio dos pastéis é feito de ovos moles. Existem várias receitas, e, em particular, os pastéis de Vouzela estão envoltos em vários segredos, mas este é basicamente uma solução de gemas de ovo com uma calda de açúcar. A mistura das gemas com agitação, a temperatura a que esta está, a granularidade e quantidade do açúcar, assim como a concentração da calda, fazem com que os ovos moles fiquem com mais ou menor textura e fluidez. Podem também ser adicionadas algumas farinhas, nomeadamente de arroz, mas penso que na dos pastéis de Vouzela não. O recheio dos pastéis de Vouzela pareceu-me não ter nada mais do que ovos, açúcar e água. É bastante fluido e fino, mesmo depois de algum tempo sobre o fabrico, em todas as versões que provei, sendo nisto, em geral, diferente dos pastéis de Tentúgal e dos ovos moles de Aveiro que tradicionalmente são feitos com os mesmos materiais.   

As ruínas do couto mineiro da Bejanca estão em terrenos privados e não estão adaptadas para as visitas. Extraía-se volfrâmio (também conhecido por tungsténio, símbolo químico, W) e estanho (símbolo químico, Sn). O estanho já se extraía desde o tempo dos romanos. O volfrâmio só se tornou importante com a segunda guerra mundial para ser utilizado em ligas metálicas resistentes ao impacto. De 1939 a 1943, estas minas empregaram mais de 3000 pessoas de forma direta. Pode imaginar-se toda a economia que envolvia, assim como os tráficos paralelos, etc. Há várias terras com nomes que parecem alusivos às minas e aos minerais como "Carregal do Estanho" e "Caparrosa" (nome antigo de alguns sulfatos metálicos)   

Eu visitei o que penso serem as ruínas da mina de gestão alemã que antes do final da guerra fechou (aliás em Portugal todas estas foram fechadas nessa altura). Havia uma chaminé com a inscrição "Alexandre Bourdain, 1943" que não consegui ver que foi. Nos momentos mais altos de produção, Portugal produzia cerca de 60% de todo o volume de volfrâmio obtido na Europa. O nosso país está cheio de ruínas, histórias e museus alusivos a essa extração. Vale a pena lembrar o livro de Aquilino Ribeiro de 1943, chamado precisamente “Volfrâmio”, que relata algumas dessas histórias. 

Deve notar-se que o volfrâmio é um metal não radioativo que não tem nada que ver com o metal radioativo urânio (simbolo químico, U) que foi extraído nas minas da Urgeiriça, já aqui referidas. Chamo a atenção para isto, que me parecia muito simples, pois falei com uma pessoa que parecia confundir. 

Quando procurava as ruínas das antigas instalações mineiras, passei por um carro de recolha de lixo e locais de recolha seletiva. Não pude deixar de reparar no nome que estava no carro e nas roupas dos trabalhadores: PreZero. Trata-se de uma empresa do Grupo Schwarz do qual também fazem parte os supermercados Lidl. Curiosamente, a PreZeo faz também a recolha do lixo da cidade de Amesterdão, nos Países Baixos (sei isso porque estive lá há pouco tempo). Soube depois que a recolha do lixo é da responsabilidade da Associação de Municípios do Planalto Beirão da qual Vouzela faz parte. Penso que com esta empresa procuram tratar de forma mais sustentável e eficaz os seus resíduos, mas não tive tempo para investigar mais. Nós não prestamos muita atenção as serviços de recolha de resíduos, à água nas torneiras, aos esgotos, etc. mas, no caso dos resíduos, se falha a sua recolha damos rapidamente conta da sua acumulação. Vemos isso nos países em que essa recolha é deficiente. Podemos diminuir a nossa produção de resíduos, mas a recolha, separação e tratamento são sempre fundamentais.     

São Francisco Gil de Santarém (1185-1265) nasceu em Vouzela e morreu em Santarém.  Estudou medicina em Paris, onde se tornou dominicano. A sua vida e obras estão envolvidos em muitas lendas, em particular é associado a um pacto com o diabo em Toledo, sendo por isso considerado o “Fausto Português”. Curiosamente, escrevi já aqui sobre Toledo e Santarém, mas não fiz qualquer menção a Frei Gil por não ter dado importância à história para um passeio químico. Mas em Vouzela, dei, no entanto, conta da sua relevância. De facto, não tinha notado como a sua associação à medicina e procura de sabedoria o vai levar à alquimia, precursora da Química tal como a medicina antiga e a metalurgia. Não vi nenhum escrito de Frei Gil sobre a alquimia, mas acho que pode presumir-se que a estudou.     

Eça de Queirós começou a escrever um livro sobre a vida de São Frei Gil, mas não o terminou. O manuscrito termina quando Frei Gil se dirige para Toledo, aliciado por um cavaleiro desconhecido. Segundo o plano de Eça, Gil assinaria o pacto com o Demónio para assistir às aulas da Universidade das Artes Negras. Passaria a ter todos os gozos, mas depressa se cansaria. Teria aventuras, mas depressa se fartaria. Queria saber mistérios, mas o Diabo não lhos podia mostrar. Apaixonar-se-ia, mas afinal a mulher era a Morte. A seguir renegava a sua vida anterior, penitenciava-se, metia-se num convento e passaria a ajudar novos e velhos. Seria tão bom e paciente que o seu pacto seria revogado com interseção da Virgem Maria. Eça provavelmente quereria retratar um “Fausto Português”, um pouco ingenuo, bastante volúvel, contente consigo próprio e com uma segunda oportunidade bem sucedida, mediada pela Virgem Maria. Quase nada do que é o Fausto original e do que se passa na história de Goethe. Nesta, quando Fausto fica contente com as suas obras, o Diabo executa o contrato e leva a sua alma.

A capela de São Frei Gil é uma das últimas obras rococó em Portugal tendo no local, como relíquia, a queixada inferior do santo, diz o guia. Chamou-me a atenção a talha dourada, que, como já referi noutros passeios, consiste em folhas de ouro finíssimas (cerca de 0,0001 centímetros) que cobrem madeira. Sabendo que a densidade do ouro é de 19,4 gramas por mililitro, temos cerca menos de 20 gramas de ouro por metro quadrado (é fácil fazer a conta: 0,0001x100x100x19,4 gramas é o valor aproximado da massa num metro quadrado). 


Uma nota sobre a antiga escola Conde de Ferreira. Esta é uma das 120 que foram construídas em todo o país, patrocinadas pela sua ação benemérita. No entanto, há um lado negro nisto: foi o comércio de escravos que lhe trouxe riqueza. Estima-se a que o Conde de Ferreira esteve envolvido no comércio de cerca de 10 mil seres humanos. Não devemos esquecer isto, pois embora os factos tenham ocorridos há cerca de 200 anos, era uma atividade que parecia normal na altura e que ainda hoje tem reflexos. O Conde de Ferreira patrocinou também a construção do conhecido hospital psiquiátrico, que tem o seu nome, no Porto. De alguma forma, este acabou por ganhar a “aposta dos ricos” que é serem lembrados pela sua generosidade e não pelos seus atos menos dignos. Nada disto tem a ver com Vouzela, claro, mas foi aqui que me lembrei.

A antiga ponte ferroviária faz agora parte de um percurso pedonal, sendo a vista excelente. No seu final está uma antiga locomotiva a vapor. Sendo de ferro, precisa de manutenção frequente pois senão manifesta-se a oxidação do ferro. As máquinas a vapor eram muito pouco eficientes. Estima-se em 1%, atingindo agora as melhores turbinas de gás natural em ciclo combinado mais 60%, mas mesmo assim podemos fazer melhor em termos de eficiência energética. Podemos, por exemplo, aproveitar melhor e energia do sol. De facto, a energia que usamos num ano é cerca 5% da energia solar que incide sobre a terra num dia, ou seja em cada dia a energia que usamos é 0,014% da energia solar que incide sobre a terra.

Referências consultadas

Armando Carvalho (Coord.) Vouzela : Parque Natural Local Vouga-Caramulo. Foge Comigo, 2017.

Associação dos Arqueólogos Portugueses. Colóquio comemorativo de S. Francisco Gil de Santarém. Lisboa, 1991.

Eça de Queirós. S. Frei Gil. Colares Editora, 2002.

Manuela Barile (Coord.) Linho: Histórias ao Longo de um Fio. Edições Nodar, 2019.