Setúbal é uma interessante cidade na foz do Rio Sado. Para além da história e dos personagens como Bocage, que está imortalizado num estátua colocada bastante alta e a cantora Luísa Todi, e muitas outras coisas, saltam à vista as chaminés das antigas fábricas de conservas.
Já referi, a propósito do Passeio Químico na Arrábida, as salgadeiras de peixe romanas, conhecidas como cetéreas. A partir do século XVI, o “tempo do peixe” deu lugar ao “tempo do sal” e, a partir do século XIX, ao “tempo das conservas”, que entretanto deu lugar agora a outros tempos. Ao longo da cidade podemos ver muitas chaminés de fábricas de conservas desativadas. Nalguns textos encontrei alguma perplexidade com isso, mas os diferentes autores acabaram por se decidir pela ideia de memória. A forma como funcionavam antigamente as “fábricas de peixe” ou de conservas pode ser vista no Museu do Trabalho, também denominado Museu Giacometti, que está instalado nas antigas instalações da fábrica Perines de conservas de peixe. Esta ainda usava latas de conserva de folha de Flandres (aço recoberto de estanho) que eram soldadas e abertas com uma chave caraterística. Mais recentemente as latas de conserva são de alumínio, sendo usado um verniz designado por BADGE (do inglês Bysphenol A DiGlycidyl Ether). Este não foi retirado, mas em 2024 a UE fez uma diretiva em que se retirava a bisfenol A, o qual só poderia ter valores inferiores a 0.05 mg/kg. Note-se, mas uma vez a evolução tecnológica e científica. As latas de folha de Flandres iniciais era o estanho que estava em contacto com os alimentos. Nas latas de alumínio, era o seu óxido. Isto começou a a ser considerado inaceitável, tendo começado a ser usado um verniz. Esse verniz liberta bisfenol A e há 20 anos atrás Lopes e Pereira referem um limite de 1 mg/kg, o qual é hoje em dia 200 vezes menor (0.05 mg/kg). Isto reflete o nosso maior conhecimento e capacidades analíticas. No museu é também mostrado como eram impressos os rótulos de papel destas conservas antigas, usando litografia. Esta técnica baseia-se na incompatibilidade da gordura com a água. A pedra litográfica recebe uma imagem com tinta à base de gordura, sendo coberta em seguida com goma arábica acidificada. A goma arábica, que é um polisacarídio, liga-se bem a essa tinta mas não à água com que a pedra é humedecida. A partir daqui a imagem fixa na goma arábica pode ser usada para fixar mais tinta e realizar as impressões. Podem ainda ver vistos outras atividades antigas como uma loja. Parecem só estar disponíveis os materiais tradicionais em metal, madeira, porcelana e vidro. Mas, se olharmos com atenção, embora não sejam tão visíveis e ubíquos os polímeros sintéticos como são hoje em embalagens, móveis e equipamentos, estes estão presentes nas tampas de alguns frascos.Em 1859, a iluminação a azeite cedeu o lugar à iluminação a gás, mas não encontrei o lugar dos gasómetros. Como já referi em muitos passeios, em todas as grandes cidades, a partir de meados do século XIX, o gás, que era obtido com o aquecimento do carvão, era usado para iluminação. Em Setúbal, apenas em 1927 foram encomendados os primeiros estudos, e só a partir de 1930 a eletricidade só começou a ser usada nas casas.
A desativada central termoelétrica de Setúbal é um exemplo interessante da evolução tecnológica. Esta começou a ser parada em 2012 e o espaço está agora quase limpo, tendo as suas duas chaminés sido demolidas em 2020. Esta central havia sido projetada antes do choque petrolífero de 1973 e funcionava a fuelóleo. As suas quatro unidades podiam fornecer cerca de mil megawatts (MW), consumindo cerca de 64 mil toneladas de fuleóleo por dia. A sua eficiência era da ordem dos 40% e já por aqui vemos como era considerada hoje antiquada, havendo atualmente centrais de ciclo combinado que atingem mais de 60% de eficiência. Ainda mais relevante, era muito poluente e só nos anos 1990 começaram a ser instalados (pois só nessa altura se generalizaram) sistemas computadorizados de monitorização e despoiradores eletrostáticos.A aquicultura no estuário do Sado tem tido um desenvolvimento significativo, associado ao declínio da salinicultura e à transformação das salinas em viveiros de peixe. Produz-se dourada, robalo, linguado e ostra, entre outras espécies. Como já referi, no recente Passeio Químico na ilha da Madeira, a aquicultura ultrapassou a pesca em quantidade disponibilizada, sendo que envolve muitos desafios em relação à qualidade e segurança alimentares, sustentabilidade ambiental e bem estar animal. Os peixes mais “esquisitos” em termos de dieta acabam por ser os mais difíceis de domesticar e alimentação é um dos principais fatores para o sucesso desta atividade. Como estes têm milhares de sensores para o paladar, a formulação cuidadosa dos alimentos envolvem muito trabalho e investigação química. A cultura da vinha assume uma grande importância no setor agrícola do concelho. O moscatel de Setúbal é um vinho fortificado ou licoroso. É parada a fermentação do mosto com a adição de aguardente ficando a graduação entre 17 e 18º. Nesse aspeto é parecido com o vinho do porto. A origem da expressão “sol em garrafa” intrigou-me, sendo atribuída ao francês Léon Douarche. Só num local referiam os anos 1930 para essa ideia. Por outro lado, em 1949 numa introdução ao romance “Horizonte cerrado” Alves Redol refere que a expressão “sol engarrafado” era usada para o vinho do Porto. Não visitei o Balneário Dr. Francisco de Paula Borba, o Portal da Gafaria ou o Mercado do Livramento (era fim de semana). O Balneário foi concluído e inaugurado em maio de 1926. Este servia os utentes da Misericórdia mas também o público em geral. Estava divido em três classes, sendo que na primeira classe as cabinas de imersão eram equipadas com banheiras inglesas de ferro esmaltado. Mas outras duas classes as cabines de imersão eram de brecha da Arrábida e cimento. Todos tinham casas de banho e dispositivo de desinfeção pelo vapor. No telhado ficavam dois tanques com capacidade de 10 mil litros (penso que somadas as capacidades). Este balneário deve fazer-nos refletir sobre várias coisas. Primeiro, os equipamentos de banho nas casas não eram comuns como são hoje. Em 1970, num censo nacional, mais de 50% das casas portuguesas não tinham água canalizada, banho, retrete ou luz. Por outro lado, a estratificação da sociedade que fez com que existissem três classes. Se notarmos os equipamentos das várias classes, reparamos que não eram muito diferentes (tirando as banheira de ferro esmaltado na primeira classe, as quais eram importadas), mas havia uma separação muito vincada entre as pessoas, embora a água fosse a mesma. O Portal da Gafaria, situado na Avenida da Portela, evoca um tempo em que a lepra era uma doença para a qual não havia cura e que os doentes eram isolados. Trata-se de uma doença, conhecida desde antiguidade e de evolução lenta, causando deformações. Só a partir dos anos 1940 apareceram alguns medicamentos para o seu tratamento, sendo hoje curável em ambulatório. As gafarias são hoje apenas memórias de um tempo antigo. Uma outra doença que existiu no estuário do Sado, mas também existiu nos estuários do Tejo, Mondego, e outros rios, e mesmo em Berlim, em geral em zonas temperadas com águas paradas, era o malária, ou paludismo. Hoje, as pessoas receiam que a doença venha de África para a Europa, mas já tivemos malária aqui, tendo as pessoas febres intermitentes. Tal como em África, as principais vítimas eram as crianças pequenas. Como acabou aqui na Europa? Com a drenagem dos pântanos e a morte dos mosquitos com DDT (diclorodifeniltricloroetano). De facto, em meados do século, campanhas uso maçico do inseticida acabaram com a doença na Europa. Ao mesmo tempo, apareceram tratamentos melhores para além da quinina, conhecida desde a expansão marítima. Poderíamos ficar a falar sobre malária de química interminavelmente, mas temos de acabar.
A SAPEC foi criada em 1926 para explorar as pirites do couto mineiro do Lousal, mas rapidamente incluiu outros negócios como os adubos. Estas minas foram desativadas nos anos 1980, havendo agora no local um Centro de Ciência Viva que através da Fundação Frédéric Velge, está ligado à SAPEC. Há em Setúbal outras empresas relacionadas com a Química. Já referi a Navigator e a SAPEC e vou em seguida referir a Carmona. A grande fábrica de engarrafamento da Coca Cola situa-se também em Lisboa. Embora não seja um negócio químico, envolve um conjunto operações que vão desde o uso de dióxido de carbono no refrigerante, baixar o pH com ácido fosfórico (E338), obtenção do caramelo por vias ácidas e básicas, etc. que podem ser interessantes para explorar. Há muitas outras, mas chamou-me a atenção a Lallemand que produz leveduras. Não sendo as leveduras um produto químico, estas proporcionam muitas reações químicas que nos interessam com as da fermentação alcoólica. A fábrica das baleia é um aspeto curioso e menos conhecido da cidade. Funcionava junto à União Elétrica Portuguesa (UEP), relativamente perto da entrada da SAPEC, na estrada da Miterna. Nos três anos que a sociedade se manteve ativa foram capturadas 408 baleias e 54 cachalotes que produziram 2013 toneladas de óleo. Fechou em 1928 mas voltou à atividade de 1947 a 1951. Também já referi várias vezes as razões pelas quais se capturavam baleias. No século XX, a principal razão era o uso do seu óleo para a produção de margarinas e para óleos finos. Hoje em dia, essas utilizações foram todas substituídas pelas melhores formas de obter óleos vegetais e alteração química dos óleos minerais (obtidos do petróleo) lubrificantes. Além disso, há toda um conjunto de novas indústrias de reciclagem e reutilização de óleos minerais e outros produtos petrolíferos (em Setúbal, a Carmona, por exemplo). Os óleos vegetais são reciclados para a produção de biodíesel e detergentes, por exemplo. Nas idas às escolas costumo perguntar aos estudantes se sabem o que é o quadrado branco com B7 que aparece nas bombas de gasóleo. Alguns já repararam, mas em geral não sabem. Indicam que 7% de biodíesel é acrescentado (legalmente esse é o mínimo, havendo uma empresa que tem 15%). Por outro lado, os óleos minerais dos carros são regenerados e reutilizados. Tirei um fotografia de uma árvore das garrafas (Callistemon citrinus) que está na origem de um herbicida, a mesotriona. A empresa que começou a comercializar esta molécula, indica ter sido descoberto com base numa observação de 1977 de que debaixo desta árvore não nasciam infestantes, sendo sido comercializado a partir de 2001. É hoje um produto que já não está protegido por patentes, não deixando de ser curioso que a marca inicial (Callisto) use como símbolo uma flor da árvore. Outro herbicida muito conhecido é o glifosato que foi descoberto nos anos 1970 e é hoje também um genérico, mas é muito conhecido pela marca que primeiro o conteve (Roundup). De entre os muitos outros herbicidas aprovados, refiro o triclopir que é também genérico, mas é muito conhecido pela marca Galron. Nesta altura do ano, as árvores das garrafas estão em flor por todo o país. Sabemos hoje muito mais sobre elas e sobre a o mundo natural do que sabíamos há centenas de anos e isso deve acrescentar beleza e admiração, não as retira nem as destrói. Também acrescenta mais responsabilidades, é certo, pois não podemos evocar a ignorância nem o privilégio. E devemos às pessoas que lutaram e trabalharam, e ainda lutam e trabalham, para fazer um mundo melhor, em particular, poetas, pensadores e trabalhadores de Setúbal, não ter medo de sonhar com os olhos abertos.
Referências
António Cunha Bento, Francisco Moniz Borba. O balneário: Memória de Setúbal, 2017
Augusto Martins. Breve História da Baixa de Setúbal. Edição de autor, 2016.
EDP – Eletricidade de Portugal SA. Central Térmica de Setúbal, 1993.
José A. Salvador. Moscatel de Setúbal: o príncipe dos Moscateis. Edições Afrontamento, 2010.
José Manuel Madureira Lopes, Alberto Manuel de Sousa Pereira. A Indústria das Conservas de Peixe em Setúbal, Estuário, 2015.
Maria do Carmo Vieira da Silva. Descobrir Setúbal: Itinerários Pedagógicos. Escola Superior de Educação de Setúbal, 1992.
Nuno Marques (coord.) Setúbal, uma baía aberta ao mundo: Retrato da Economia do Concelho. Câmara Municipal de Setúbal, 2021.
Rui Canas Gaspar. Histórias, coisas e Gentes de Setúbal. Edição de autor, 2015.
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