Passeio químicos no Convento da Arrábida

[Na vinda do congresso SciComPT 2025, que foi este ano na Ilha da Madeira, pude passar no Convento da Arrábida para preparar a atividade que vou realizar 5 e 6 de setembro de 2025 no III Encontro de Professores Portugueses de Física e Química. No convento foram muito simpáticos e, com base nesta visita, escrevi as notas que apresento a seguir. Eu já havia escrito sobre a Arrábida, mas não tinha tido ainda oportunidade de ir ao convento.]

O convento de Nossa Senhora da Arrábida foi fundado em 1542 por Frei Martinho de Santa Maria (?-1546), religioso da Ordem de São Francisco, oriundo da alta nobreza espanhola, o qual havia sido convidado por D. João de Lencastre, primeiro Duque de Aveiro, após um encontro numa peregrinação ao Santuário de Nossa Senhora de Guadalupe, em Espanha, para usar os seus terrenos da Serra da Arrábida para a vida eremita que almejava. A congregação Franciscana aqui era bastante radical como se pode ver no local. Entretanto, as propriedades dos duques de Aveiro foram confiscadas em 1759 e o título foi extinto, na sequência da condenação dos Távoras. Embora, os monges não fossem provavelmente donos do local, em particular das casas do convento, o fim das ordens religiosas em 1834, acabou por propiciar o fim do convento que devido aos seu isolamento foi vandalizado ao longo dos anos, tendo os duques de Palmela adquirido o convento em 1863. Em 1990, o espaço foi adquirido pela Fundação do Oriente que, desde essa altura, tem procurado dar-lhe funções compatíveis com o seu uso anterior, nomeadamente através de cursos e retiros.      

Uma das imagens mais fortes do convento é a estátua de um monge com os olhos vendados, boca fechada com um cadeado, ouvidos tapados com o capuz e coração com uma fechadura, tendo numa das mãos um chicote e na outra uma vela. A estátua evoca o fundador do convento, Frei Martinho de Santa Maria, que está sobre um globo pisando uma serpente (disse a guia pois isso é pouco perceptível). Esta estátua deveria ser pintada pois nos pés ainda se notam restos de várias camadas de tinta. Também é pouco perceptível o que está escrito no globo. As leituras que fiz indicam que a estátua é de 1622 e há menções a Frei Martinho, aos fundadores e a uma passagem do Livro de Isaías (51:1), “olhai para a rocha de onde foste talhados, para a pedreira de onde fostes extraídos”.

Uma coisa que notei é que os vidros das janelas são todos posteriores a cerca de 1950, não parecendo haver vidros mais antigos (uma provável indicação do vandalismo anterior). Como sabemos isso? Até esta data os vidros planos eram produzidos a partir do vidro fundido soprado e arrefecido estendendo-o ou passando-o em cilindros, tendo, assim, irregularidades que são visíveis. Alastair Pilkington desenvolveu um processo em que o vidro era solidificado em estanho líquido (ponto de fusão 232ºC) ficando com superfícies sem irregularidades e sem necessidade de ser polido (no caso da passagem por cilindros). Os únicos vidros que me pareceram mais antigos são os de algumas das relíquias visíveis na capela. Estas devem ter sido guardadas pela família Palmela que vendeu o convento à Fundação do Oriente. 

Há muitos canteiros com malva (Pelargonium graveolans). Esta planta atrai abelhões e besouros, mas parece repelir os mosquitos. Uma rápida consulta à literatura refere que a composição do seu óleo essencial, obtida por cromatografia gasosa acoplada a espetrometria de massa, tem diferentes percentagens de citronelol, formato de citronelilo, geraniol, formato de geranilo e linalool (estou a simplificar os nomes). Tratam-se de moléculas terpenóides com dez e quinze átomos de carbono. Hoje em dia, graças a técnicas instrumentais  e à acumulação de literatura, a qual pode ser acedida via Internet, obtemos em minutos o que demoraria meses a obter, ou mesmo que não poderia ser obtido antes. Curiosamente não parece ter na composição do seu óleo essencial citronelal (1) que é muito usado em repelentes de mosquitos.

Chamou-me também a atenção a boca-de-lobo (Antirrhinum majus) que tem vários usos medicinais, mas é sobretudo uma planta modelo para estudar vários efeitos e genéticos e ambientais. Numa base de dados que costumo consultar de artigos científicos indexados (Web of Science, WoS) aparecem mais de 1600 artigos quando se procura por “Antirrhinum majus” e mais de 400 quando se procura “Pelargonium graveolens”.

Encontram-se espalhados pelas sebes e canteiros, exemplares selvagens de Rubia peregrina que tal como a Rubia tintorum (que era cultivada), tinha usos tradicionais em tinturaria, em particular para tingir de vermelho. O pigmento era extraído das raízes, sendo conhecido como garança ou alizarina, sendo que a molécula responsável pela cor é a alizarina.

Os monges não tingiam as suas roupas que eram feitas de tecidos grosseiros e crus. Não encontrei indicação de que tecessem as suas próprias roupas ou que cultivassem as plantas (em particular o linho) para obter o fio, mas remendavam as roupas, o que é visível nas imagens presentes nos azulejos ao lado da capela.  

Há vários exemplares de Agave americana no espaço do convento. Estes cactos são facilmente identificáveis pelo seu verde e as riscas mais claras dos lados. Das fibras destes cactos faziam-se cordas, podendo num deles ver-se as fibras. Estas fibras são de celulose. Só no século XX apareceram fibras sintéticas e cordas de nylon. Estas fibras são ditas sintéticas pois são fabricadas mas também podem ser consideradas artificias pois não existiam antes na natureza. Em qualquer dos casos, neste momento já fazem parte da Natureza, ou seja a Química contribuiu para estender a Natureza.   

No convento, dei conta da existência de um limoeiro. Um dos principais compostos relacionados com os limões é o limoneno, mas o cheiro a limão é muito complexo, envolvendo outros compostos como o citral. Embora haja por vezes a ideia de que o cheiro de laranjas tem que ver com um isómero do limoneno (isso até foi referido na versão popular do Prémio Nobel da Química de 2021), tal não é verdade. Também as laranjas têm limoneno, mas a mistura tem outras moléculas, originando o odor que identificamos como de laranja. Qual é a lição disto? Deve verificar-se tudo. Embora haja algumas fontes que nos parecem mais seguras, mesmo essas podem estar erradas. E devemos corrigir os erros, claro, mas ter alguma tolerância. Aliás, usando uma citação bastante engraçada de uma citação do livro "Science with a Smile": ficamos muitas vezes surpreendidos por haver alunos que hoje não sabem o que mais tarde damos conta de que está incorreto. 

Como os monges eram eremitas não recebiam peregrinos nem tinham botica para o exterior, mas em situações de epidemias, podiam acolher e tratar doentes. Na igreja, numa sala no segundo piso estavam os noviços.  Como mostrou a guia, dessa sala podia assistir-se à missa, mas não ver o público que assistia à missa. Por outro lado, explicou a guia, os duques de Aveiro, donos dos terrenos, tinham acesso a uma janela de onde poderiam assistir à missa. 

A tinta branca em alguns dos edifícios é moderna, tendo o dióxido de titânio como pigmento. Esta tinta é também plástica e forma polímeros impermeáveis à água, originando assim deformações visíveis nas paredes. Faço notar que embora estas tintas tenham essa desvantagem, as tintas tradicionais têm muitos outros problemas. O pigmento branco poderia ser à base de carbonato básico de chumbo (alvaiade, que é venenoso e escurece por formação de sulfureto de chumbo), ou de cal (hidróxido de cálcio) que nesse último caso era absorvido pela parede (este efeito pode ver-se em várias partes). No último caso, as tintas de cal, tinham de ser aplicadas mais vezes, mas sendo permeáveis e não formando polímeros, não têm as clássicas "barrigas."      

Em várias paredes nota-se um corante vermelho que só uma análise confirmaria a composição, mas será provavelmente óxido de ferro (III). Há outras partes pintadas de amarelo, que na tinta tradicional envolve outro composto de ferro, o hidróxido de ferro (II). Os sais de ferro são muito versáteis. Podemos ter um verde de óxido de ferro (II) e até um escuro com óxido de ferro (II, III). 

O sistema hidráulico desenvolvido pelos monges é visível ao longo de todo o percurso e funciona por gravidade. Os canos antigos são feitos com telhas romanas e a água vai descendo das fontes situadas acima. A água, além de passar na cozinha vai ter a uma lavandaria onde os monges se purificavam com água corrente. No local onde era recolhida a água para o sistema hidráulico, havia formas de regular o caudal da água que desapareceram.

Salta à vista o que parece ser reciclagem de porcelanas, em arranjos artísticos: A guia explicou que eram porcelanas que ofereciam aos monges e que estes usavam para esse efeito quando se quebravam, ou que eram quebradas de propósito para os arranjos pois os monges recusavam o luxo. Ao longo de todo o espaço nota-se a preocupação em ter uma arquitetura e decorações “pobres”.  

Em vários sítios, em particular nas escadas para o coro alto, notam-se as dolomias, rochas de cor creme, que são de carbonato de cálcio e magnésio. A estrutura cristalina era bem conhecida, mas só há pouco tempo foi desvendado o mecanismo da sua formação através da simulação computacional do crescimento dos cristais, tendo-se concluído que estes crescem lentamente, sendo feita a lavagem dos defeitos cristalinos (2).   

Na porta da capela e nas enxergas dos monges era usada cortiça. Este material isolava tanto do som como das condições climatéricas. A natureza é relativamente económica nas moléculas que fabrica, mas é muito imaginativa. A cortiça é essencialmente composta de suberina, lenhina e celulose. A suberina é um polímero natural com dois tipos de monómeros, uns aromáticos (compostos derivados do benzeno que têm anéis cíclicos de seis carbonos e seis hidrogénios) e outros alifáticos (compostos de cadeias lineares). Os compostos aromáticos aqui presentes são derivados do ácido cinâmico e os alifáticos são hidroxiacidos com dezoito carbonos. Já a lenhina é constituída por polímeros de vários monómeros, sendo na cortiça o mais comum o guaiacol. Há mais compostos, mas a seguir à suberina e lenhina, temos a celulose que é constituída de monómeros de glicose. É a organização espacial e emaranhado destes polímeros naturais  que origina a cortiça. 

Parece também um emaranhado de nomes, mas para realçar as semelhanças entre os compostos presentes em várias plantas, faço notar que o ácido cinâmico é muito parecido com o aldeído cinâmico que dá o aroma à canela, o guaiacol é o principal constituinte do cheiro a fumo e a glicose é o açúcar das uvas. O amido não existe na cortiça, mas só difere da celulose na forma como se ligam as moléculas de glicose, sendo que a celulose é insolúvel e o amido muito solúvel.  

Na capela pode também ver-se o que parece ser um grampo cravado na pedra usando chumbo que é um metal muito maleável e de baixo ponto de fusão que serve muito para esse efeito de "chumbar."  

Disse a guia, que muitos dos pratos dos monges eram feitos de conchas de vieira e os copos de cortiça e que a dieta destes consistia em pão, água, legumes, peixe e ovos. Estes só tinham uma refeição por dia consumida em silêncio enquanto ouviam um monge a fazer leituras sagradas. A formação das vieiras, que são essencialmente carbonato de cálcio, é surpreendente. Tal como nas árvores cortadas, notam-se nestas linhas mais escuras correspondentes aos seu crescimento, podendo estimar-se os anos da sua vida e ter-se uma ideia das condições por que passaram. Podemos imaginar que os monges no seu silêncio, vida contemplativa e meditação puderam também observar isso. 

Agostinho da Cruz, nos seus sonetos refere essa contemplação minuciosa, mas num deles refere também os peixes que foram pescados e que vai assar (ruivos, salmonetes, carregadas, besugos, choupas, tainhas e linguados), assim como as árvores e arbustos de que fará os espetos (medronho, aroeira e esteva). Embora estes peixes talvez fizessem parte da sua alimentação, não é claro quanto do poema é imaginação. Em particular, chamou-me a atenção a carregada que parece ter nome vulgar de peixe-remo ou regaleco (Regalecus glesne) que é um peixe das profundidades, bastante grande e, parece, que não muito saboroso. É curioso que a aplicação de inteligência artificial do Google, o Gemini, apresenta no resumo da pesquisa, algo baseado no que foi escrito no Instagram de uma peixaria: este peixe ser “mau para a cicatrização”. Mas essa afirmação não parece ter base científica, aparecendo nesse texto outros peixes “maus para a cicatrização” como sejam o cação e a cavala. Nunca tal tinha ouvido ou lido! O que queria chamar a atenção com isto, é que não se pode aceitar algo só porque está escrito ou foi dito. Deve verificar-se, tanto quanto for possível, e procurar a sua coerência. 

É interessante a imagem de Santa Maria Madalena em terracota, ou seja de argila cozida no forno. É o mesmo material de que são feitas as telhas. Estas eram (e ainda são) obtidas pela cozedura do barro, o qual nesse processo perde moléculas de água e fica rígido, formando-se ligações química adicionais. Continua, no entanto a ser poroso, deixando passar a humidade. Por esse razão não é boa ideia pintar as telhas com tintas poliméricas. A cor vermelha é devida aos óxidos de ferro. Há também em vários locais, em particular junto do refeitório e da cozinha, chão de ladrilhos de barro, obtidos pelo mesmo processo. 

Os materiais cerâmicos tradicionais podem ser separados em quatro grupos: terracota, obtida a partir da argila vermelha com impurezas, textura áspera e muito porosa, com a temperatura de forno entre 800-100 ºC ; faiança, obtida a partir de argila branca com algumas impurezas, textura áspera e porosa, com a temperatura de forno de 1050-1150ºC; grés, obtido com argila de grés cuja cor vai do branco cremoso ao marfim rosado com algumas impurezas e áspera, mas não porosa, com temperatura de forno entre 1100-1300ºC, resistindo ao risco do ferro e vitrificando; porcelana, com argila de porcelana que é composta de caulino, quarto e feldspato, sem óxido de ferro, densa e fina, não poroso, com temperatura de forno 1300-1400ºC, vitrificando.     

A cozinha não tem quase objetos, mas estão penduradas grelhas onde poderia ser assado peixe ou colocadas panelas sobre brasas. Para além disso, tem uma chaminé bastante alta que é visível do exterior e que está coberta por dentro de negro de fumo. Quanto mais alta a chaminé,  maior é a extração do ar. É muito curioso o fenómeno, mas apenas a presença da chaminé faz com que devido à diferença de pressão entre a base e o cimo se gere a extração do ar inferior. Sobre o fumo o que se acumula nas paredes interiores da chaminé, devemos lembrar que são séculos a cozinhar. Este tem uma grande composição de carbono e é basicamente carbono amorfo e hidrocarbonetos poliaromáticos (PAH). O depósito é combustível e para evitar fogos entre outros problemas havia no século a profissão de limpa-chaminés, tendo sido a origem da ligação entre fumo e cancro. Este pode ser usado como corante negro e é usado por exemplo na tinta-da-china. Para além disso, cada carro tem cerca de 200 g por pneu, ou seja cada carro transporta cerca de 1kg. 

É também interessante o relógio que funciona com base na gravidade, como se pode ver pelos pesos. Relacionada com a Química, queria chamar a atenção para o latão que parece ouro. Trata-se de uma liga de cobre e zinco, sendo os melhores resultados de "parecer ouro" obtidos com mais de 35% de zinco. Composições que tenham valores inferiores de zinco começam a dar uma tonalidade avermelhada ao material. Os pontos de fusão, à pressão atmosférica, do cobre e zinco são, respetivamente 1085ºC e 420ºC. O latão, sendo uma liga dos dos dois metais, tem em geral um intervalo de fusão que vai depender da sua composição entre 900ºC e 940ºC, podendo ser maior com ligas com mais percentagem de cobre. Neste caso não há abaixamento significativo do ponto de fusão da mistura devido a um ponto eutético, como no caso da solda de estanho e chumbo. De facto, o estanho tem ponto de fusão 232ºC e o chumbo 327ºC, fundindo a solda a 183ºC. 

Sebastião da Gama (1924-1952), conhecido como poeta da Arrábida, é uma figura que deve ser muita cara aos professores. O seu Diário, escrito enquanto estava a fazer estágio no ensino, cerca de 1947, e editado postumamente em 1958,  continua hoje a ser uma referência importante sobre os métodos pedagógicos centrados nos alunos e a entrega ao ensino. Este havia nascido em Azeitão e sofria de tuberculose, numa altura que esta doença não tinha tratamento, morrendo novo.

Numa palestra para juízes, Laborinho Lúcio refere que não se espera para estes nem o sacerdócio (o que acha ser demasiado) nem que sejam mercenários (o que considera ser muito pouco). Poderíamos dizer ao mesmo aos professores. Os exemplos dos monges da Arrábida e de Sebastião da Gama são inspiradores pois muitas vezes a entrega conduz à liberdade e à realização, mas é preciso não esquecer o pragmatismo e a organização que nos fazem obter os melhores resultados. 

(1) Os químicos conhecem bem a diferença que faz uma letra. Citronelol é um álcool e citronelal um aldeído que provavelmente tem um odor mais adocicado.

(2)  Kim et al. (2023). Dissolution enables dolomite crystal growth near ambient conditions. Science, 382, Issue 6673, 915-920. DOI: 10.1126/science.adi3690

Referências

Ana Assis Pacheco, “Humilde e abreviada arquitetura”: os arrábidos e a materialização da Estrita Observância (1542-1698), Lusitania Sacra, 44, 111-136, 2021. 

José Tolentino Mendonça, A atualidade de Frei Agostinho da Cruz, Setúbal, 2020.

Eva Pascual. Conservar e Restaurar Cerâmica e Porcelana. Editorial Estampa, 2005.

Fundação do Oriente. Convento da Arrábida. 2025.

Paulo Pereira, Paula Benito. Convento da Arrábida: a porta do céu. Fundação do Oriente, 2006.

Apêndice

Nota sobre 2025 o Ano Internacional da Ciência e Tecnologia Quânticas

Gostaria de chamar a atenção para as coisas comuns que nos rodeiam que têm a ver com a mecânica quântica e que mais do que isso, só são possíveis devido a esta teoria. Poderíamos começar por qualquer lado, mas podemos iniciar por referir os telemóveis e o céu. Começando pelo último, sabemos hoje que é essencialmente composto por duas moléculas: o di-nitrogénio e o di-oxigénio. Sabíamos desde o final do século XVIII que a atmosfera tinha estes dois gases e no século XIX começámos a perceber que eram moléculas, mas, só no início do século XX, percebemos, finalmente, o que fazia com que a sua ligação ocorresse: as interações entre os seus núcleos e eletrões, regidas pelas leis da mecânica quântica. Também, só nessa altura, entendemos o que fazia com que essas moléculas se atraíssem a longas distâncias: as ligações de London. E mais espantoso, começámos a perceber que as leis que regiam as ligações dentro das moléculas e entre as moléculas eram de natureza quântica. Não vemos estas moléculas, mas sabemos que existem porque podemos estudá-las de várias formas. Digo que não as vemos, mas a cor azul do céu podemos ver. É também um fenómeno que tem a ver com a mecânica quântica. Para começar, é preciso lembrar que a luz tem um comportamento puramente quântico e se comporta como onda e partícula. E, ao interagir com as moléculas da atmosfera, é difundida em todas as direções, sendo que a intensidade dessa difusão é proporcional ao inverso do quadrado do comprimento de onda da luz recebida, sendo assim mais difundidas as cores violeta e azul pois têm comprimentos de onda menores. Como vemos melhor a cor azul, explica-se assim a cor. Os comprimentos de onda da radiação frontal são mais difundidos, mas não devemos olhar para o Sol normalmente. Quando o conseguimos ver mais de frente, por exemplo ao pôr-do-sol, vemos que são difundidas mais cores ficando o céu laranja. Em alguns casos pode ver-se fugazmente o verde, o que é conhecido como o “raio verde”. Tudo isto, os monges devem ter visto com o mesmo fascínio e admiração. Nós continuamos fascinados, mesmo quando sabemos a sua origem mecânico-quântica. 

Os monges não tinham telemóveis, obviamente. Estes só apareceram nos anos 1980 e se popularizaram nos anos 1990. E só apareceram os smartphones a partir de 2007 (há menos de 20 anos). Os telemóveis usam radiação invisível da ordem das micro-ondas. Há várias bandas de frequências, mas estas não são ionizantes e não podem quebrar as moléculas. Quando muito poderiam aquecer, mas as frequências usadas tinham de corresponder a bandas de energia que fossem absorvidas e a intensidade teria de ser muitíssimo maior. Por vezes evoca-se, essa diferença, dizendo que as suas potências são de cerca de 3 watts ou menos e que um forno de micro-ondas típico usa cerca de 700 W. Assim, precisaríamos de mais de duzentos telemóveis todos juntos num espaço fechado para se obter um efeito semelhante em termos de potência, mas mesmo assim não seria suficiente para provocar o aquecimento. De facto, a energia rotacional está quantizada e, na água líquida, há uma enorme quantidade de estados muito próximos. Como o forno micro-ondas trabalha numa banda de frequência de 2.45+/-0.01 GHz a radiação poderia ser absorvida, mas essa absorção é muito pouco eficiente num espaço aberto que não tenha as dimensões adequadas. De facto, para aumentar muito a eficiência usam-se dimensões do forno específicas, relacionadas com as bandas das frequências (perto dos múltiplos de 12.5 cm, o comprimento de onda correspondente a essa frequência) e roda-se o material a aquecer, além de se rodar o emissor de radiação. Se fosse aumentada a frequência, aumentar-se-ia a absorção de radiação, mas também se baixaria a penetração da radiação. Ou seja, a frequência e as dimensões do forno são escolhidas para obter o melhor resultado. No caso dos telemóveis, não temos nada disso. É certo, que em Portugal, há uma banda de frequências perto da que é usada pelos fornos micro-ondas (2.6 GHz) mas as outras (2.1, 1.8, 0.9 e 0.8 GHz) são ainda mais baixas, sendo a possibilidade de absorção ainda menor. Além disso, não estão confinados dentro de um forno com dimensões adequadas, além de que a sua potência é muito menor, como já referi. Assim, podemos ter o espaço que nos rodeia coberto com ondas de rádio ou micro-ondas, que os efeitos não negligenciáveis. De qualquer forma, sugere o bom senso que não durmamos com o telemóvel junto à cabeça, entre outras possibilidades.

Falemos agora de coisas menos comuns, mas mesmo assim relacionadas com a luz e os telemóveis. Os telemóveis modernos acertam os seus relógios com as horas que são recebidas da operadora de telefones móveis, a qual por seu lado acerta as suas horas por relógios atómicos que se coordenam uns com os outros. Estes são baseados nos tempos de vibração de átomos particulares. A definição de segundo do Sistema Internacional corresponde a 9192631770 ciclos da vibração do estado fundamental do átomo de césio-133, como bem sabemos. O erro destes relógios é tão pequeno que estes se atrasariam (ou adiantariam) um segundo em milhões de anos. E para que precisamos de uma tal precisão. Por exemplo, para os satélites que se podem deslocar a milhares de quilómetros por segundo e para o GPS (Global Position System). Agora temos relógios ainda mais precisos, usando a vibração do estrôncio e do ião alumínio. Embora os fenómenos de emissão e absorção de radiação sejam essencialmente físicos, a caracterização dos materiais usados é de natureza química, assim como a sua obtenção e purificação. 

Ainda menos usual e ainda na sua infância é o uso do fenómeno quântico do Interlaçamento  para a criptografia quântica e o desenvolvimento da computação quântica.

Entretanto, o fenómeno que dá origem ao LASER (Light Amplification by Stimulated Emission of Radiation) é também quântico, mas muito mais conhecido. Mais uma vez, os materiais e a química são fundamentais para o desenvolvimento destas tecnologias. 

Outras tecnologias em desenvolvimento são as da fotossíntese artificial. É preciso não esquecer que a fotossíntese natural das plantas, embora seja natural, envolve muitos fenómenos quânticos pouco usuais como as transferências de eletrão e protão, este último envolvendo o efeito de túnel que só existe na mecânica quântica.

Também os cálculos de estrutura eletrónica molecular são cada vez mais acessíveis e precisos, envolvendo sistemas cada vez mais complexos, permitindo fazer simulações cada vez mais úteis. Devemos também acrescentar que para realizar essas simulações precisamos de computadores e estes só são existem, pelo menos os digitais, devido à mecânica quântica.  

Finalmente, refiro a visão que, mais uma vez, é um fenómeno puramente quântico e nos remete para os monges e as imagens que estes viram neste lugar maravilhoso,

Bibliografia

Peter Atkins, Ronald Friedman, Molecular Quantum Mechanics, Oxford University Press, 2004.

M. M. Ohseni, Y. Omar, R. G. Engel, M. B. Plenio (Eds.) Quantum Effects in Biology, Cambridge University Press, 2014. 

Sérgio P. J. Rodrigues, Pedro Caridade, História da química computacional e do uso dos computadores em química, História da Ciência e Ensino, 25 (Volume Especial), 140-153, 2022. https://doi.org/10.23925/2178-2911.2022v25espp140-153

Michael Vollmer, Physics of the microwave oven, Physics Education 39(1) 74-81, 2004.


       



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