Passeio químico nas salinas da Figueira da Foz [Chemical trail in Figueira da Foz salterns]

[Fui convidado para participar numa oficina relacionada com o projeto Quinta Ciência Viva do Sal e o espaço da Salina do Corredor da Cobra na Figueira da Foz. Tinha algumas fotografias antigas e com algumas novas que fiz no fim de semana passado elaborei um primeiro esboço de um passeio químico]

As salinas tradicionais são um local onde a solubilidade de sais, tratada nas Aprendizagens Essenciais (AE, o "programa") de Química do 11º ano, é muito importante. Como já referi, a propósito das salinas de Rio Maior, a água salgada sofre evaporação e vai ficando com maiores concentrações dos sais, os quais precipitam ao longo dos vários tanques pelas suas ordens de solubilidade. Nos primeiros tanques precipitam os hidróxidos de ferro, seguindo-se os carbonatos e os sulfatos, que ficando no "sal" dariam cor e mau sabor. No final ficam os cloretos e o ião sódio, mas também, em muito menor quantidade, outros iões negativos e positivos. Quando se atinge cerca de 26% (para temperaturas aproximadamente entre 0 e 20 ºC) [corrijo, ver (1)], em massa de cloreto de sódio por massa de solução, este começa a precipitar e forma-se o conhecido “sal”. Devemos notar aqui que não há nada "infinitamente" solúvel, mesmo as coisas que são muito solúveis como o "sal". 

Numa primeira fase, este forma-se "sal" à superfície, sendo prontamente recolhido e sendo denominado “flor de sal”. Tem, além de vários iões, uma quantidade razoável de água. Isso até é bom, pois quanto menos concentrado for o “sal” melhor será para a saúde. Além de água o “sal” tem vários outras moléculas de origem biológica que muitos consideram relevantes, mas a sua quantidade é muito pequena. Devemos notar duas coisas: primeiro, que a soma das concentrações dos iões negativos com a dos os iões positivos (multiplicadas pelas suas cargas) deve ser nula; já tinha referido isso no texto sobre Rio Maior, sendo conhecido por balanço de cargas; e segundo, que a precipitação e a cristalização são formas de purificação, por isso o “sal” fica bastante livre de impurezas e materiais que não seja o “sal.”  

Nas salinas, nos tanques mais remotos, notamos partes mais castanhas onde o ferro precipitou e mais cinzentas ou brancas onde julgo que precipitem os carbonatos e os sulfatos de cálcio e magnésio. Notam-se também zonas mais cinzentas nas águas. Na parte que nos interessa, encontramos montes de “sal” já purificados.

Também referi no texto de Rio Maior, que os cloretos formam iões e complexos muito solúveis com todos os metais, em particular com o ferro. Assim, os problemas de corrosão são críticos nas salinas, sendo os objetos tradicionais feitos de madeira. Hoje em dia é também usado aço inoxidável, mas mesmo esse acaba por ser atacado pelos cloretos.

Referi que o “sal” começa a precipitar a cerca de 26% (m/m) mas no mar a concentração de sais é já bastante alta: cerca de 3.5% (m/m). Ora, tendo o nosso corpo e o dos outros animais e plantas, concentrações de sais inferiores (nós temos cerca de 0.9% (/m)) beber água salgada não “mata a sede” antes a aumenta, pois beber água salgada aumenta a concentração de sais e as células vão libertar água para baixar a pressão osmótica exterior ao procurarem equilibras as pressões. De forma mais detalhada podemos notar que esta pressão é, numa boa aproximação, proporcional à concentração de sais e sendo assim as concentração de sais mais elevada no exterior as células vão libertar água para procurarem equilibrar a pressão. Mas há plantas que aprenderam a viver com essa questão, como a salicórnia, para além dos peixes de água salgada. A salicórnia, e outras plantas halófitas, desenvolveram mecanismos para enfrentar esta questão. Por exemplo, acumulando sais nas suas folhas podem obter água do solo se esta tiver uma concentração menor de sais, usando a pressão osmótica a seu favor. Por tudo isto se vê que os conhecimentos básicos são importantes para todos, em particular para os futuros biólogos. Uma curiosidade: a salicórnia, tão valorizada em Portugal parece ser uma praga nos Países Baixos.

A entrada de água nos tanques e controlada pela maré, penso eu. Além disso, o sal tradicionalmente era transportado de barco, os quais chegavam até perto do local através de canais. Quando visitei o local, estava maré baixa, e via-se um esqueleto de um antigo barco afundado. De um lado e do outro do caminho havia imenso funcho. É muito curioso como as plantas se organizam e colonizam os espaços fazendo "guerra química" umas às outras. No caso desta planta, os seus óleos são constituídos por um conjunto muito grande de moléculas das quais destaco a tujona, que está associada aos efeitos do absinto. 

Nestas zonas há uma grande concentração de aves marinhas de diferentes espécies que podem ser observadas e fotografadas. Não deixa de ser curioso que, um lugar que se pensa ser tão agreste, acabe por propiciar fontes de alimento e abrigo. 

Uma das coisas que me tinham chamado a atenção quando visitei o local foi a instalação fabril da efpbiotek. Na altura que estive lá, não investiguei mais mas fiquei com a ideia de que fariam refinamento de sal. Agora, através da Internet e e da página web da empresa pude fazê-lo e verifiquei que é muito mais do que isso. A sigla “efp” vem de Empresa Figueirense de Pescas, uma empresa que já existe deste o principio do século XX, desde 1912, mas agora acrescentou “biotek” e produzem cosméticos, medicamento, nutrientes e outras coisas a partir de produtos marinhos e de outros materiais. 

Segundo li nessas referências via Internet, a efpbiotek é lider na produção de esqualeno, C30H50, a partir de peixe e azeite. Trata-se de uma molécula antioxidante isoprenóide (os isoprenos são moléculas que pode ser consideradas “construídas” a partir do isopreno, C5H8) que está presente no óleo de fígado de bacalhau e é produzido e muito útil para os organismos superiores. Tem também outros produtos, como um equivalente da lonolina (o óleo que se pode extrair da lã de ovelha).  No local, o cheiro não é grande coisa, mas é muito localizado. Embora tenham muitas referências à sustentabilidade e eu acredite nelas (cada vez mais a indústria sabe que não pode agir de outra forma). 

[atualização depois de ter participado na oficina]

Na oficina estava bastante gente e aprendi muitas coisas. Foi unânime que era fundamental, para o sucesso do projeto,  envolver os parceiros locais de toda a zona do "salgado" (é assim que se referem a este sistema complexo de pessoas e atividades ligadas ao sal e ao mar). Não estava ninguém da efpbiotek (disseram-me que foram convidados mas que não puderam vir por dificuldades de agenda), mas pareceu-me que esta empresa será um parceiro importante a considerar e deverá insistir-se. Estavam produtores de sal da ilha da Morraceira e responsáveis da aquicultura da Figueira Fish e da produção de ostras na mesma ilha. Finalmente, estavam pessoas ligadas ao turismo de vários segmentos e bastantes investigadores e divulgadores de ciência.     

(1) Isto corresponde a cerca de 36 gramas por 100+36 g de solução, pois a solubilidade é muitas vezes apresentada como sendo a massa do soluto em gramas por 100 gramas de água (ou seja 36 g de NaCl por 100 g de água). Muitas vezes é usada a escala Baumé (é essa que está no Ecomuseu da Figueira da Foz, onde decorreu a oficina) que pode ser medida com base na densidade com aparelhos calibrados. Nessa escala, estes valores correspondem a cerca de 32 ºBe. Finalmente, podemos ter uma estimativa da massa por volume de solução se soubermos que a densidade desta solução é cerca de 1.3 g/mL, obtendo-se assim 20% (m/v). São bastantes valores, mas penso que o mais intuitivo é a massa do soluto que podemos dissolver numa determinada massa de água.  

[Verified semi-automatic translation]

[I was invited to participate in a workshop related to the Quinta Ciência Viva do Sal project and the Salina do Corredor da Cobra space in Figueira da Foz. I had some old photographs, and with some new ones that I took at the last weekend, I created a first draft of a chemical walk]

Traditional salterns are places where the solubility of salts, treated in the Apredizagens Essenciais (AE, the Learning Essentials, the syllabus in Portugal) of Year 11 of Chemistry, are very relevant. As I already mentioned, regarding the Rio Maior salterns, the salt water undergoes evaporation, ending up with greater concentrations of salts, which precipitate along the various tanks due to their solubility orders. In the first tanks, iron hydroxides, followed by carbonates and sulfates, which, remaining in the "salt", would give color and noxious flavors. In the end, there are the usual chlorides and sodium ions, but also, in much smaller quantities, other negative and positive ions. When it reaches around 26% (for temperatures approximately between 0 and 20 ºC) [correction, see (1)], in the mass of sodium chloride (NaCl) per mass of solution, it begins to precipitate, and the “salt” is formed. We should note here that nothing is "infinitely" soluble, including things that are very soluble like "salt".

In the first phase, “salt” forms on the surface, being promptly collected and a material called “flor de sal”. It has, in addition to several ions, a reasonable amount of water. This is, actually, a good thing, as the less concentrated the “salt” is, the better it will be for your health. In addition to water, “salt” has several other molecules of biological origin that many consider relevant, but their quantity is small. We must note two things: first, the sum of the concentrations of negative ions and positive ions (multiplied by their charges) must be null; This, known as charge balance, I had already mentioned in the text about Rio Maior; and second, that precipitation and crystallization are forms of purification, so the “salt” is in part free from impurities and materials other than “salt.” Nevertheless, rigorous analysis should be done.

In the salterns, in the most remote tanks, we noticed browner parts, where the iron precipitated, and grayer or whiter parts where, I think, calcium and magnesium carbonates and sulfates precipitate. Grayer areas can also be seen in the water. Nearer, we find piles of “salt” already purified.

I also mentioned in Rio Maior's text that chlorides form very soluble ions and complexes with metals, and in particular with iron. Therefore, corrosion problems are critical in salterns, with traditional objects being made of wood. Nowadays, stainless steel is also used, but even this ends up being attacked by chlorides.

I mentioned that the “salt” starts to precipitate at around 26% (m/m) but in the ocean, the concentration of salts is already quite high: around 3.5% (m/m). Now, since our body and that of other animals and plants have lower concentrations of salts (we have around 0.9% (/m)), drinking salt water does not “quench your thirst” but increases it, as drinking salt water increases the concentration of salts and the cells will release water to lower the external osmotic pressure as they seek to balance the osmotic pressures. We can note that this pressure is, in a good approximation, proportional to the concentration of salts, and, therefore, with a higher concentration of salts outside, the cells will release water to try to balance the pressure. However, some plants have learned to live with this issue, such as Salicornia, in addition to saltwater fish. Salicornia, and other halophyte plants, have developed mechanisms to address this issue. For example, by accumulating salts in their leaves they can obtain water from the soil if it has a lower concentration of salts, using osmotic pressure to their advantage. From all this, we can see that basic knowledge is relevant for everyone, particularly for future biologists. A curiosity: Salicornia, so highly valued in Portugal, appears to be a pest in the Netherlands.

The entry of water into the tanks is controlled by the tide, I think. Furthermore, salt was traditionally transported by boat, which arrived close to the site through canals. When I visited the site last week, it was low tide, and the skeleton of an old sunken boat was visible. On both sides of the path, there was a lot of fennel. It is very curious how the plants organize themselves and colonize spaces by carrying out "chemical warfare" on other species. In the case of this plant, its oils are made up of a very large set of molecules, including thujone, which is associated with the effects of absinthe.

In these areas, there is a large concentration of seabirds of different species that can be observed and photographed. Curiously, a place that is thought to be so harsh ends up providing sources of food and shelter.

One of the things that caught my attention when I visited the place was the efpbiotek manufacturing facility. The first time I was there I didn't investigate further, but I got the idea that it was a refining salt factory. Now, through the Internet and the company's website, I was able to do it, and I realized that it is much more than that. The acronym “efp” comes from Empresa Figueirense de Pescas, a company that existed since the beginning of the 20th century (1912) but now has added “biotek” to the name and produces cosmetics, medicines, nutrients and other things from marine products and other materials.

According to what I read in these references, efpbiotek is a leader in the production of squalene, C30H50, from fish and olive oil. It is an isoprenoid antioxidant molecule (isoprenes are molecules that can be considered “built” from isoprene, C5H8) present in cod liver oil and is produced and is very useful for higher organisms. It also has other products, such as an oil similar to lanolin (the oil that can be extracted from sheep's wool). At the location, the smell isn't a big deal, but it is very localized. Although they have many references to sustainability and I believe in them (increasingly, the industry knows that it cannot act otherwise), i need to know more.

[update after having participated in the workshop]

There were a lot of people in the workshop and I learned a lot of things. It was unanimous that it was essential, for the project's success, to involve local partners from the entire "salty" area (this is how they refer to this complex system of people and activities linked to salt and marine production). No one from efpbiotek was there (the organizers told me that it was invited, but couldn't come due to scheduling difficulties). Nevertheless, it seemed to me that this company would be a relevant partner to consider and should be insisted on. There were salt producers on the island of Morraceira a person from Figueira Fish (aquaculture) and another from the oyster production on the same island. Finally, there were people linked to tourism from various segments and many researchers and science communicators.

(1) This corresponds to about 36 grams per 100+36 g of solution, as solubility is often presented as the mass of the solute in grams per 100 grams of water (i.e. 36 g of NaCl per 100 g of water ). The Baumé scale is often used (this is the one in the Ecomuseum of Figueira da Foz, where the workshop took place) which can be measured based on density with calibrated devices. On this scale, these values ​​correspond to around 32 ºBe. Finally, we can estimate the mass per volume of solution if we know that the density of this solution is about 1.3 g/mL, thus obtaining 20% ​​(m/v). There are many values, but I think the most intuitive is the mass of the solute that we can dissolve in a given mass of water.

Passeios Químicos em Serralves

[Não me tinha ainda ocorrido falar sobre a Química da ida a Serralves, mas uma pessoa que conheço perguntou-me sobre ela. Aproveitei a ideia e vou falar sobre as últimas idas de que me lembro.]

O Parque de Serralves tem muitos interesses, desde o edifício do Museu à casa de Serralves no jardim, o jardim em si próprio, a Casa do Cinema Manoel de Oliveira, e, claro, as exposições e as muitas atividades que realizam. A última vez que lá estive, em julho deste ano, foi, como sempre, uma ótima experiência. Queria ver essencialmente a exposição do diálogo entre Alexander Calder e Juan Miró, mas gostei imenso da exposição de Jennifer Ollora e Guillermo Calzadilha e de Carla Filipe, entre outras. Gostei de várias coisas, mas vou primeiro falar do edifício do Museu e depois destas exposições. Daqui a uns meses haverá outras exposições e atividades e em qualquer delas haverá pontos de interesse científicos e químicos a considerar.  

Não podemos ficar indiferentes ao branco e aos grandes vidros planos do edifício desenhado por Álvaro Siza para o Museu. Os brancos são hoje em dia de dióxido de titânio e são ainda mais brilhantes do que os brancos de cal, hidróxido de cálcio. Cerca de 95% do titânio usado no mundo é nas tintas brancas que além de serem luminosas podem manter-se mais limpas devido à ação catalítica deste material. E os vidros planos sem imperfeições só se tornaram possíveis após os anos 1950, quando o vidro começou a ser arrefecido sobre estanho fundido. Os vidros aqui são enormes, duplos e provavelmente (não me lembro de ter reparado nisso) temperados. 

É fácil ver se um vidro é temperado com uns óculos de luz polarizada: os vidros parecem manchados, com estruturas regulares em geral. No caso dos carros, os vidros de trás aparecem, quando vistos com lentes polarizadas, como se fossem aos quadrados. Porquê? O processo de têmpera ao aquecer e arrefecer os vidros faz com que localmente o material tenha variações de índice de refração em relação aos outros locais que à luz polarizada torna visíveis. Uma aplicação moderna do dióxido de titânio é nos vidros que se limpam a si próprios. É também muito interessante o aço inoxidável que serve de moldura para os vidros. Como é bem conhecido, o aço inoxidável é de ferro mas tem uma percentagem bastante elevada de níquel e crómio. Muitos aços podem nem ter propriedades  magnéticas, o que é fácil de verificar com um íman. São só alguns dos pormenores que permitem um olhar sobre a parte mais científica dos materiais de que é feito o edifício.

A exposição de Ollara e Calzadilha estava no edifício do Museu. Chamaram-me logo a atenção os diálogos entre as flores no chão e entre as janelas e as flores (supostamente silvestres, mas também sintéticas) no relvado exterior, além da grande árvore negra que estava deitada numa sala. As mais de 50 mil flores são feitas de policloreto de vinilo (PVC) reciclado e pintado (vi no catálogo, mas confesso que pensei inicialmente serem verdadeiras flores). No caso da árvore fiquei a pensar de que seria feita. Li no catálogo que era de carvão moldado a partir de uma árvore derrubada por um raio. Os bons artistas trabalham com equipas de cientistas e técnicos que os ajudam nestas questões materiais. Não é só a análise das composições dos materiais e pigmentos, ou o desenvolvimento de materiais e o restauro de obras de arte que são importante em Arte, é também importante a participação no planeamento e na criação, onde a Ciência, a Técnica e a Química estão sempre presentes, mesmo que o artista faça eco da ideia de senso comum de que não tem “químicos.”

Embora mais ou menos esperada, foi muito interessante ver a concretização da imagem de uma bomba de gasolina “fossilizada.” Não poderia deixar de ser irónico que os materiais usados não fossem de pedra, mas polímeros, obtidos, provavelmente, do petróleo, mas não é assim. A escultura é de pedra calcária (li no guia). A boa arte explora as ironias, escapa às armadilhas, cria multiplicidades de sentido, abrindo as portas a novas ideias e experiências estéticas, muitas delas não pensadas pelo artista. Curiosa é também a utilização de um espectro, penso que na evocação do maior radiotelescópio de Arecibo em Esperança, Porto Rico, um transformador gigante, baterias, células fotovoltaicas e outros objetos com origem na Ciência e na Técnica em várias esculturas. Tudo isto acaba por provocar uma experiência estética e técnica que é muito interessante e se torna mais profunda quando se reflete e estuda.      

Surpreendeu-me também a exposição de Carla Filipe. Uma das coisas que na exposição anterior já me tinha maravilhado (assim como noutras que vi) foi o tamanho. Em Serralves pode ser explorado esse aspeto. E de entre as várias outras coisas que poderia referir, chamou-me a atenção em particular a evocação de algumas mulheres pioneiras ligadas à ciência e à medicina: Carolina Beatriz Ângelo e de Adelaide Cabete.

No edifício Arte Nova do jardim, a Casa de Serralves, estava a exposição de Calder e Miró. Para chegar lá passamos pelo parque que é também muito interessante e onde todas as árvores nos podem contar histórias químicas. Um dos espaço mais impressionantes é a alameda dos liquidâmbares, agora árvores muito grandes e criando sombra em toda a alameda. O outono nas folhas destas árvores é especialmente exuberante com estas a mostrarem todas as cores do verde ao castanho, passando pelo vermelho e o amarelo, e por vezes quase o azul, resultante das moléculas de antocianinas.

A Casa de Serralves tem muitos atrativos e caminhos a descobrir, mas queria chamar especial atenção para os espelhos antigos. Estes são feitos com metais sobre as superfícies de vidro que se vão oxidando, perdendo o espelho a sua capacidade de refletir bem. Num espaço de dezenas de anos os espelhos vão-se deteriorando.    

Não estava presente, mas há uma obra de Calder que me impressiona muito: a “Fonte de Mercúrio” (feita mesmo com o metal líquido), realizada para simbolizar a resistência ao franquismo e homenagear os mineiros de Almaden, cidade cercada na região de Espanha onde se situam essas minas de mercúrio. Foi exposta na Feira Mundial de 1937 em Paris, a céu aberto, em frente ao conhecido quadro Guernica, de Picasso. Atualmente, a “Fonte de Mercúrio” está na Fundação Joan Miró, em Barcelona, e é apresentada num ambiente estanque envidraçado pois há neste momento regras muito estritas em relação ao mercúrio que é muito tóxico.

Tinha antes estado em Serralves em junho de 2021 para ver uma grande exposição retrospetiva de Louise Bourgoise. No jardim estavam algumas das suas famosas aranhas. E no edifício estavam várias obras emblemáticas, como a “fillette” que se trata de um objeto que parece um osso de perna de porco (e que pode parecer outra coisa) mas não é de osso: é de poliuretano. Vários outras esculturas estavam também presentes, misturando materiais. Além de todos as interrogações que a arte pode desencadear e as sensações que pode provocar, é uma camada extra de maravilha poder reconhecer os materiais que são usados. Não vamos procurar a arte para estudar Ciências e Química, mas podemos juntar a arte à ciência e atingir outros níveies de sabedoria. 

Uns meses antes, tinha ido ver a grande exposição de Olafur Eliasson, conhecido artista dinamarquês-islandês. Na entrada estava um conjunto de árvores em vasos e mais adiante vários objetos em aço inoxidável. No jardim havia também objetos de aço inoxidável que eram bastante bonitos. Não havia, que eu tivesse dado conta, alguns dos objetos mais emblemáticos e conhecidos deste artista que são os vidros pintados com cores fortes e transparentes, que são usados em grandes objetos. Curiosamente fiz agora a associação de ideias que na Islândia gostam muito de cor. E para obter estas cores modernas são usados pigmentos sintéticos que acabam por ser mais seguros, em termos ambientais e de saúde, que muitos dos naturais.

Com esta grande exposição de Eliasson, estava uma exposição de Pedro Cabrita Reis. Nesta exposição objetos podemos ver noutros contextos materiais de construção que nos rodeiam: tijolos, fios elétricos e outros, tábuas, letreiros, e muitas outras coisas. Aqui está outro caminho da Arte: Valorizar materiais que muitas vezes nem reparamos.  

Estive em muitas exposições em Serralves. O bilhete é caro para o português médio, mas é grátis várias vezes por ano, em particular nas manhãs do primeiro domingo de cada mês. 

Visitei, numa dessas manhã, a famosa exposição de fotografias de Mapplelthorpe, em 2018. É surpreendente a qualidade das suas fotografias. Embora a fotografia em película, que tem toda uma química associada (os sais de prata sensíveis à luz, a revelação, os negativos, as películas e os papéis, entre outras coisas), estivesse já bastante bem estabelecida no seu tempo. *a fotografia analógica, seguiu-se a revolução da fotografia digital que, parecendo que não, não passa sem a Química. Devo referir, como escrevi na altura, que acabam por ser, muitas vezes, as exposições de artistas que eram menos familiares que mais nos surpreendem.

A Casa do Cinema Manoel de Oliveira é também um espaço interessante. O cinema começou por ser em parte, uma evolução da fotografia, começando as fitas por ser de celulóide um polímero muito inflamável.   

A Casa contou com várias peripécias antes de chegar aqui, incluído estar destinada a um edifício que foi construído para o efeito e depois vendido. Foi uma boa escolha, pois permitiu usufruir da experiência e das sinergias com a Fundação de Serralves. E já que falo de políticas de cultura vem a propósito referir coisas menos conhecidas sobre a quinta de Serralves. 

Por vezes diz-se que esta quinta foi “oferecida” pelos condes de Ribadave. Não é assim: esta foi vendida, mas foi um bom negócio para ambas partes. Acresce que a Fundação de Serralves, criada para gerir o espaço, teve desde o seu início obrigação de se financiar, numa ideia de sustentabilidade que se tem revelado também muito profícua. Vem a propósito referir que nem os reis “constroem” nem os ricos “dão.” Os primeiros mandam ou autorizam, por vezes, raras vezes, pagando. Os segundo, mesmo quando “oferecem,” estão em geral a fazer um negócio que se vai revelar muitas vezes vantajoso para todas as partes. Basta pensar em todas as fundações e ofertas ligadas a nomes: Guggenheim, Gulbenkian, Carnengie, Mellon, Frisk e muitos outros. A longo prazo, tudo tende para a entropia máxima, para a desordem e para a morte, que é também uma espécie de equilíbrio pouco desejado, mas, entretanto, podemos obter equilíbrios úteis em sistemas fechados e manter localmente a entropia baixa, criando ilhas de beleza e vida que podem durar muito tempo.  

Passeios químicos nos Passadiços do Mondego

[O primeiro encontro da Associação Portuguesa de Professores de Física e Química decorreu na Guarda. Convidaram-me para fazer esta atividade no congresso, o que aceitei com todo o gosto. Participaram ativamente também na atividade colegas que dinamizaram a instalação de uma aplicação de geolocalização que assinalava os locais onde todo o grupo se juntava para as atividades. Neste texto, partilho as minhas notas do passeio (que por razões logísticas tinha de ser relativamente curto) e indicarei alguns dados mais técnicos. Além disso, escreverei sobre o resto do percurso que espero que os professores presentes no encontro façam noutra ocasião. As fotografias são de várias vezes que fiz os passadiços em julho e agosto]

Começamos na Barragem do Caldeirão onde falei da Estação de Tratamento de Água (ETA). Esta fornece a água de consumo humano da Guarda e de vários outros municípios, num total de mais de setenta mil pessoas, sendo tratadas cerca de 24 mil litros de água por dia (dados de um folheto da ETA). Antes de descrever os processos seguidos nesta ETA, é importante referir que estes procuram acelerar a natureza e melhorá-la, garantindo a segurança e qualidade da água que é consumida. 

A água é recolhida a cinco metros de profundidade na barragem, sendo tratada inicialmente com hipoclorito de sódio e levando carvão em pó. A água recolhida tem matéria em suspensão, além de poder ter microorganismos, que é preciso eliminar. A água passa por um complexo sistema de tanques e filtros onde as matérias em suspensão vão ficando depositadas. Para corrigir a acidez (medida pela escala de pH) é usado dióxido de carbono (para a baixar) e hidróxido de cálcio (para a subir). É também usado sulfato de alumínio para precipitar a matéria em suspensão. No final temos a água potável que recebemos nas torneiras e o resíduo (o carvão contribui muito para isso) que se deposita. Este último é prensado e desidratado e vai para aterro.

Na entrada dos passadiços chamei também a atenção para um poste com informação que é feito de plástico. Atualmente, este material, provavelmente com origem na reciclagem, é muito usado em "postes" e "tábuas" que parecem de madeira. Já encontrei muitas mesas e cadeiras de piquenique com este material. Empregando plástico para estes equipamentos evita-se o uso de madeira e, sim, podemos imaginar que todos os passadiços poderiam ser feitos deste material. Mas isso não seria muito bem-vindo, embora pudesse ser mais sustentável. 

Uma coisa que chamei a atenção é o hábito de ver com olhos científicos tudo o que nos rodeia. E para a necessidade de transmitir essa ideia nas salas de aula. Os alunos devem poder ver na prática que quase tudo o que os rodeia tem a ver com a tecnologia e em boa parte com a Química. As matérias desta disciplina (Física e Química)  não são apenas das salas de aulas e para aprender para fazer os exames, mas a massa de que é feita a vida que nos rodeia.

Fomos em seguida ao mirador do mocho real. Eu chamei a atenção para os gradeamentos de ferro com corrosão à superfície e para a forma como eram (e são atualmente) soldadas as estruturas. Há indícios de uso de solda comum (de estanho e chumbo) ou mesmo só de chumbo (que, como se sabe, não “molham” o ferro e portanto não ligam as duas peças) em alguns locais onde é feita a união por encaixe (na fotografia pode notar-se também uma pastilha elástica que alguém colou ali). Noutros locais, vê-se que o ferro foi soldado de forma moderna fazendo a sua fusão local com um arco elétrico ficando unido de forma mais firme. Podemos aqui, mas também ao longo de todo o percurso, reparar nas várias rochas, plantas e líquenes que estão presentes.            

Mais à frente falarei da lã e farei uma discussão mais detalhada. Por agora, é relevante referir que se trata de uma proteína, a queratina, a única proteína de origem natural que pode ser feltrada (ou seja que pode produzir uma estrutura compacta e irreversível com as fibras entrosadas quando estas são sujeitas a fricção num meio particular [1]), o que permite modificar muitos dos tecidos obtidos.

Fiz ao longo do caminho algumas demonstrações (1), que não sendo realizadas com objetos que encontramos nos locais, estão relacionados com eles e permitem ilustrar alguns conceitos no exterior de forma informal. Neste caso particular, a solubilidade, as reações ácido-base e de oxidação-redução, e a cor. No que concerne à solubilidade e à cor, trouxe um modelo de índigo, que é a molécula do material azul usado para colorir as calças de ganga, e expliquei como este se tornava mais solúvel, assim como a origem da sua cor (a molécula ser planar com o que se designa por ligações duplas e isso permitir a circulação mais livre dos seus eletrões).
Ao preparar o percurso procurei se havia pastel-dos-tintureiros, uma fonte natural de índigo, mas não encontrei (mais à frente falarei dos pigmentos usados na lã). O índigo é uma molécula muito pouco solúvel, mas colocando em cada uma das suas extremidades grupos sulfonato, SO3-, esta fica muito mais solúvel. Forma-se desta forma o que é conhecido como carmim de índigo que é usado como corante alimentar. Ora, uma solução dessa molécula (ou de índigo) ao ser tratada com uma solução básica de NaOH adquire a cor verde e fica mais solúvel (não foi esta a sequência que fiz com os professores, mas notei agora que poderei também falar do processo ácido-base do tingimento das calças de ganga). Se adicionar solução de ácido ascórbico (claro que todos os professores sabiam que era vitamina C), passa de novo a azul, depois a vermelho e em seguida a amarelo. Com agitação obtemos de novo azul e o processo repete-se [2]. O que acontece? Quando juntamos o ácido ascórbico em meio básico obtemos o vermelho e finalmente o amarelo pois este vai reduzir (“antioxidar” ou agir como antioxidante – podemos dizer para o público em geral que já ouviu falar de uma coisa mas não da outra) o índigo. Entretanto, quando agitamos, vamos oxidar o índigo que volta a ser azul. E o que vai oxidar? Todos os professores o sabiam: o oxigénio do ar.  Incidentalmente, podemos falar das plantas e dos "antioxidantes." Como as plantas estão expostas ao sol e não se podem mexer têm de ter “protetores solares” naturais que são os antioxidantes, sendo que o ácido ascórbico (vitamina C) é o mais conhecido. 

Para reforçar as ideias, fiz outra demonstração [3] semelhante. Neste caso o corante era o azul de metileno. Não é preciso usar NaOH, bastando usar bicarbonato de sódio, NaHCO3. Para tornar este processo mais eficaz usa-se também NaCl para modificar a força iónica e uma solução muito diluída de sulfato de cobre (CuSO4, pode aqui chamar-se a atenção para que a diluição faz que a solução continue incolor). Juntando tudo e esperando a solução torna-se transparente, mas agitando voltamos a ter azul, repetindo-se o processo. O que acontece? O mesmo: oxidação-redução em meio básico. O azul de metileno na forma oxidada é azul por ser planar. Quando o ácido ascórbico o reduz (ou “antioxida”) este fica na forma reduzida perdendo a cor. Porquê? Porque esta forma perde a planaridade e com isso a cor. Porquê? Penso que será por os eletrões deixarem de circular de forma tão livre na molécula. E para que serve o CuSO4? Vários professores perguntaram. A atenção a esses detalhes, assim como a curiosidade,  é muito importante no ensino. Temos, aliás, aqui mais um momento em que podemos explicar como funciona a ciência. No artigo onde é apresentada esta versão mais sustentável da “receita” da “demonstração da garrafa azul” são indicadas algumas referências que propõem que o cobre complexa com o ácido ascórbico [3]. Curiosamente, muitas demonstrações são mais complexas do que é por vezes indicado e que sem essa procura de entendimento cai-se facilmente no espanto acrítico que se procura evitar.

Noutra paragem, falei de plantas venenosas que se podem encontrar no percurso e dos malentendidos que há com as coisas naturais e artificiais. Portugal tem muitas plantas venenosas. Neste local era louro-cerejo (Prunus laurocerasus) e cevadilha (Nerium oleander), muito usados em sebes, o primeiro, e nas auto-estradas, o segundo. A primeira planta tem uma grande quantidade de amigdalina que é muito tóxica por conter cianeto e a segunda planta tem um composto ativo no sistema cardíaco. Curiosamente, o cianeto em determinadas circunstâncias é inócuo. É o caso das luvas de nitrilo onde este grupo químico está presente no polímero. E é também o caso dos complexos com este material, por exemplo nos materiais anti-agregantes adicionados, em muito pequena quantidade, ao sal fino. Chamei aqui também a atenção para algo que os professores conhecem bem: as diversas circunstâncias em que coisas que parecem semelhantes são completamente diferentes. Por exemplo, no sal de cozinha temos cloreto de sódio, NaCl, que é mais ou menos inóquo (aumenta a tensão arterial se ingerido, claro, mas não é nada perigoso se tocado, por exemplo) nem é reativo. Por outro lado, o sódio, Na, é um metal muito reativo e o cloro, Cl2, é um gás muito venenoso se inalado. Dão os dois origem ao sal de cozinha, ou podem ser obtidos deste, mas embora partilhem os nomes dos átomos presentes, não estendem os seus perigos ao sal.

Ao longo do percurso podemos ver a resina das madeiras novas (daqui a uns tempos isso não será possível). Se tivermos sorte, podemos também encontrar abelhas a trabalhar laboriosamente nesse material. Eu fiquei muito curioso com isso, mas mais à frente um apicultor (que tem as suas colmeias mais adiante) explicou-me (e depois verifiquei documentalmente) que as abelhas usam a resina, além de outras seivas, para fazer o propólis [4].

Na paragem seguinte havia hortênsias. A explicação das suas cores com base no pH não é suficiente. Outro aspeto importante é a presença de metais no solo, em particular alumínio. 

Como não devemos apanhar nada do caminho, trouxe flores (na verdade não são flores, nas folhas modificadas) de hortênsias da escola Afonso Albuquerque para mostrar os efeitos do pH e do ião alumínio. Devo referir que os professores foram divididos inicialmente em dois grupos e no primeiro grupo a demonstração não resultou bem. Penso que terá sido por não ter extraído corretamente os pigmentos das flores. No segundo grupo já obtive o que esperava (além de extrair melhor os pigmentos, tive ajuda de um dos professores com os tubos de reagentes). Vamos então referir as observações. Primeiro macerei as flores, que estavam azuis, em álcool etílico. Coloquei um pouco do líquido num tubo com uma gota de ácido concentrado (usei HCl, 6 mol/L) e ficou rosa. Quando fiz o mesmo com base concentrada (usei NH3, 6 mol/L) ficou verde amarelado. E finalmente com ião alumínio (usei AlCl3, 1%) ficou azul. 

Estudos detalhados mostram que estas flores com solos mais básicos não conseguem extrair os metais e ficam com a cor rosa rosa (ou verde se o pH for muito alto). Entretanto com solos mais ácidos já conseguem extrair os metais e se o solo tiver ião alumínio ficam azuis. Se, entretanto, o solo for pouco rico neste metal ficam mais rosa (2). Embora seja muito complexo o processo muitas perguntas nos exames podem ser respondidas com lógica. Como me disse há dias um colega com muito sucesso: cedo percebeu que havia o "estudo para saber" e o "estudo para fazer exames." Não deveria ser assim na opinião dele e também na minha. A juntar a isso temos que uma boa parte do ensino das ciências preocupa-se em ensinar os seus resultados e não os seus métodos. As explicações dos livros podem parecer muito claras (por exemplo as das hortênsias), mas, infelizmente, também podem afastar-se da realidade sem mostrar formas de a verificar. 

Agora com pétalas de rosa vermelha (fiz isso com pétalas de rosa que tinha trazido de casa). Com ácido concentrado a solução fica rosa. Com base concentrada fica verde ou amarela. Com cloreto de alumínio fica roxa. As rosas, contrariamente às hortênsias, como é bem sabido, não mudam de cor com o pH e os metais (mas as suas soluções mudam, como vimos). O processo biológico por que isto acontece é muito complexo e deveria servir de aviso sobre a simplicidade dos tratamentos que por vezes fazemos. As mudanças de cor são devidas a umas moléculas chamadas antocianinas que mudam de cor com o pH e com a complexação destas com iões metálicos. São também antioxidantes naturais das plantas.

Na paragem seguinte queria chamar a atenção para os vidros antigos irregulares, para o ar condicionado que se vê numa casa e para as manchas castanhas no fontanário. O processo para fazer vidros planos até mais ou menos a 1950 tinha vários problemas e originava vidros com defeitos e irregularidades. Nessa altura, surgiu uma forma de fazer vidros planos que é baseada na solidificação em estanho líquido, originando assim superfícies sem defeitos. Isso permitiu obter vidros muito maiores. Entretanto, uma pessoa presente fez eco da questão antiga de o “vidro ser um líquido muito denso que escorre”. Não é assim. O vidro é sólido e “não escorre” nem em milhões de anos. Acontece que sendo um sólido amorfo, com uma região de fusão grande, poderia ser considerado, em teoria, um líquido muito viscoso, mas não é boa ideia fazê-lo pelos concepções alternativas que origina. A prova para a afirmação de que o "vidro escorre" seria que nas catedrais antigas “a parte mais larga dos vidros está para baixo”. Há várias objeções a essa "explicação:" os operários terem escolhido os lados mais largos para baixo à partida ou nem sequer ser verdadeira a afirmação. Há vários trabalhos sobre isto, de que cito [5] e [6]. Devemos notar, no entanto, que um espírito científico apresenta um ceticismo saudável em conjunto com confiança nos trabalhos anteriores, mas não aceita de forma acrítica argumentos de autoridade. Sobre o ar condicionado poderíamos falar do seu funcionamento, dos gases usados e muito outras coisas. Sobre as manchas no fontanário diria que são provavelmente devidas a suspensões com ferro nas canalizações.    

O passeio dos professores de Física e Química terminou a seguir na ponte antiga sobre o rio Mondego. O que se segue é baseado num outro passeio em que realizei todo o percurso.

Um pouco depois, encontramos uma nova entrada nos passadiços e a Fábrica Nova (3). Tratava-se de uma antiga fábrica de fiação de lã, fundada em 1935, e que passou a fábrica de cobertores em 1943. Como já referi, a lã é essencialmente queratina uma proteína que pode ser feltrada [1]. Esta proteína absorve bastante água em ambientes húmidos e nas ovelhas está coberta por uma mistura complexa de gorduras chamada lanolina. As primeiras característica têm a ver com a proteína formar bastantes ligações de hidrogénio, além de conter ligações de dissulfeto entre as cadeias [1]. 

A feltração vai originar ligações mais fortes e interligações entre as fibras, podendo originar em alguns casos tecidos não tecidos (por exemplo nos chapéus). No caso tradicional da Serra da Estrela, a lã é tecida num tafetá (a forma de tecelagem mais simples) ficando pouco forte a ligação entre os fios. Posteriormente, os tecidos são batidos com água (nos “pisões” [7]) e cardados, originando ligações muito mais fortes e ficando o sistema muito mais compacto e firme. No caso das fibras de lã serem curtas é originado o burel, mas se as fibras forem mais longas temos, por exemplo, os cobertores de papa. 

Na entrada da escola Afonso Albuquerque havia uma exposição destes cobertores. Vou-me concentrar basicamente nestes. A lã usada é bastante grosseira e só é empregue para estes. As fibras são mais compridas, sendo lavada inicialmente a lã, tradicionalmente com sabão, e fiada. Isto retira a lanolina e uma parte da impermeabilidade. Podemos pensar em processos em que a lanolina é recuperada para, por exemplo, cosméticos, mas não é conhecido esse uso tradicional na serra. A lã é depois tecida, sendo os cobertores batidos no pisão que é agora motorizado e de metal, mas tradicionalmente era de madeira e movido com a energia da água. Nos cobertores de papa tradicionais era uma usada uma “papa” de argila, daí o nome. 

Há alguma confusão com o nome, mas parece-me mais certa a ideia de "papa" de terra. Hoje, mesmo os processos tradicionais não envolvem essa “papa,” mas a lã continua a ser batida com água. Segue-se a lavagem e a cardagem que originam os cobertores e as mantas dos pastores impermeáveis pois as fibras orientam-se de forma a que fique  a parte mais hidrofóbica para o exterior. Tradicionalmente esta mantas eram fabricados em Maçainhas, Meios e Trinta. Em Maçainhas, pode visitar-se a associação “Genuíno Cobertor de Papa”, e, em Meios, um museu. Em ambos os casos notei que o processo, embora possa ter origem tradicional tem bastante incorporação moderna e a memória é já, em boa parte, industrial, e do século vinte. Há também adaptações atuais. No Museu dos Meios, em particular, são muitas vezes usados tecidos reciclados (isso é até incentivado). Em Maçainhas, privilegiam as questões do desenho e de novas aplicações, mantendo os materiais tradicionais. Na minha opinião, tudo tem o seu espaço desde que bem explicado.    

Estava muito interessado nos pigmentos que davam origem às cores tradicionais. Depois de algum tempo a investigar, verifiquei que provavelmente nesta zona da Serra da Estela tradicionalmente quase só se usava o branco e o castanho da lã das ovelhas. E que as cores vão aparecer mais tarde já com os pigmentos das tinturarias pombalinas sedeadas na Covilhã. O vermelho vem aqui do ácido carmínico da cochonilha (Dactylopius coccus). Podem ter existido aqui estes insetos que parasitavam algumas plantas (na Arrábida havia e depois extinguiram-se) ou ter sido importado. Outra possível fonte de vermelho seria a ruiva-dos-tintureiros (Rubia tinctorum) e as espécies aparentadas, mas não encontrei a planta aqui. Há muitas fontes de amarelo: quase tudo o que é verde dá origem a amarelo e muitas destas coisas podem dar origem a verde, em particular a giesta-dos-tintureiros (Genista tinctoria). Há ainda que considerar que estes pigmentos teriam de resistir ao pisoamento. De uma pequena conversa que tive com o antigo dono da fábrica de cobertores de papa de Maçainhas, eram usados pigmentos sintéticos da Ciba e da Bayer, etc. Assim, penso que a chamada “manta lobeira” será uma criação do século XX. Mas, obviamente, tal tem de ser verificado.

Em frente à Fábrica Nova há uns tanques no chão de formato cilindrico  que me intrigaram. Seria para "pisoar" a lã? Seriam usados para a tingir? Foi mais uma vez o antigo dono da fábrica dos cobertores de Maçainhas (e penso que também desta) que me esclareceu que eram afinal tanques de aquicultura!

Continuando, podemos apreciar as plantas e a paisagem natural, assim como algumas construções industriais, em boa parte abandonadas. Não vou aqui referir tudo o que se pode encontrar, mas chamou-me a atenção o hipericão que é uma planta bastante comum e que é por vezes usada em chás calmantes. Mas é preciso ter cuidado com as interações com medicamentos, assim como ter atenção que algumas moléculas presentes nesta planta poderem originar fotossensibilização da pele. 

Podemos encontrar árvores, plantas e objetos provenientes de atividade humana. Oliveiras, macieiras, videiras, pessegueiros, centeio, tubos de água, chapas metálicas, entre outras coisas. Sobre todas se poderiam dizer coisas que tinham a ver com química. Vou deixar isso para as pessoas que fazem o caminho.

Uma nota final sobre a Escola Afonso Albuquerque, a Guarda e o Congresso da Associação de Professores de Física e Química. Tanto a entrada da escola, como várias edificações desta, são recobertas de zinco metálico, numa intervenção muito interessante que me pareceu relativamente recente. Trata-se de uma escola que é herdeira do Liceu Nacional da Guarda que conta com cerca de 170 anos, onde fomos muito bem recebidos. Ao lado fica o Hospital da Guarda que tem o nome de Sousa Martins e a biblioteca pública que evoca o nome de Eduardo Lourenço. Também na cidade da Guarda fomos muito bem recebidos. O congresso homenageou o professor Pinto Peixoto e a antiga professora de Física e Química do professor Carvalho Rodrigues (o qual fez a palestra inaugural do congresso), Maria Augusta Carvalho. 

Ao fim ao cabo são as pessoas e as suas relações, assim como, acima de tudo, a entreajuda, que, como referiu o professor Carvalho Rodrigues, mantém a entropia relativamente baixa e nos permitem evoluir e viver melhor. 

Na minha opinião, os passadiços do Mondego são para fazer devagar, saboreando o tempo. Não há pressa de acabar. O caminho é mais interessante do que chegar rapidamente ao fim.    

(1) Solução de ácido ascórbico: 1.4g para 50 mL (não é útil fazer grandes volumes pois o material rapidamente se degrada). Solução de CuSO4: 0.031g para 200 mL. Solução de NaHCO3 e NaCl: 0,075g do pimeiro de 1g do segundo no mesmo balão de 200 mL . Solução de NaOH: 0,52g para 200 mL . Para a primeira demonstração, colocar num frasco umas gotas de solução 1% de carmim de indigo, e, caso se queira ver primeiro a passagem a verde, colocar  primeiro a solução de NaOH. A mudança de cor para verde ilustra a reação de ácido-base do tingimento das calças de ganga. Colocar de seguida 10 mL de ácido ascórbico e observar a passagem a vermelho e amarelo. Trata-se de reação de oxidação-redução. Agitar de seguida. Para a segunda demonstração, colocar umas gotas de azul de metileno, 10 mL de ácido ascórbico, 10 mL de NaHCO3 e NaCl e 10 mL de CuSO4. Esperar que fique incolor. Agitar depois de ficar incolor. Ver as referências [2] e [3].   

(2) Contrariamente a algumas ideias populares não há hortênsias rosa ou azuis, embora possa haver alguma variabilidade nas plantas, sendo as cores diferentes conforme a composição e pH do solo.

(3) Infelizmente não consegui ter acesso à obra que era citada nos textos dos passadiços, sendo as informações baseadas nos dados que estão no site. 

Referências bibliográficas

[1] Werner von Bergen (Ed.) Wool Handbook, 3th Edition. Intersciences Publishers, 1963.

[2] Urawadee Rajchakit  e Taweetham Limpanuparb. Greening the Traffic Light: Air Oxidation of Vitamin C Catalyzed by Indicators. Journal of Chemical Education 2016, 93, 1486−1489.

[3] Whitney E. Wellman e Mark E. Noble. Greening the Blue Bottle. Journal of Chemical Education 2003, 80, 537−540.

[4] Syed Ishtiaq Anjum, Amjad Ullah, Khalid Ali Khan, Mohammad Attaullah, Hikmatullah Khan, Hussain Ali, Muhammad Amjad Bashir, Muhammad Tahir, Mohammad Javed Ansari, Hamed A. Ghramh, Nuru Adgaba, Chandra Kanta Dash. Composition and functional properties of propolis (bee glue): A review. Saudi Journal of Biological Sciences 2019, 26, 1695–1703.

[5] Stephen J. Hawkes. Glass Doesn't Flow and Doesn't Crystallize and It Isn't a Liquid. Journal of Chemical Education  2000, 77, 846.

[6] Robert C. Plumb. Antique windowpanes and the flow of supercooled liquids. Journal of Chemical Education  1989, 66, 12, 994.

[7] Ernesto Veiga de Oliveira, Fernando Galhano. Tecnologia tradicional : Pisões portugueses. Instituto Nacional de Investigação Científica. Centro de Estudos de Etnologia. Lisboa, 1977.