Passeios Químicos em Serralves

[Não me tinha ainda ocorrido falar sobre a Química da ida a Serralves, mas uma pessoa que conheço perguntou-me sobre ela. Aproveitei a ideia e vou falar sobre as últimas idas de que me lembro.]

O Parque de Serralves tem muitos interesses, desde o edifício do Museu à casa de Serralves no jardim, o jardim em si próprio, a Casa do Cinema Manoel de Oliveira, e, claro, as exposições e as muitas atividades que realizam. A última vez que lá estive, em julho deste ano, foi, como sempre, uma ótima experiência. Queria ver essencialmente a exposição do diálogo entre Alexander Calder e Juan Miró, mas gostei imenso da exposição de Jennifer Ollora e Guillermo Calzadilha e de Carla Filipe, entre outras. Gostei de várias coisas, mas vou primeiro falar do edifício do Museu e depois destas exposições. Daqui a uns meses haverá outras exposições e atividades e em qualquer delas haverá pontos de interesse científicos e químicos a considerar.  

Não podemos ficar indiferentes ao branco e aos grandes vidros planos do edifício desenhado por Álvaro Siza para o Museu. Os brancos são hoje em dia de dióxido de titânio e são ainda mais brilhantes do que os brancos de cal, hidróxido de cálcio. Cerca de 95% do titânio usado no mundo é nas tintas brancas que além de serem luminosas podem manter-se mais limpas devido à ação catalítica deste material. E os vidros planos sem imperfeições só se tornaram possíveis após os anos 1950, quando o vidro começou a ser arrefecido sobre estanho fundido. Os vidros aqui são enormes, duplos e provavelmente (não me lembro de ter reparado nisso) temperados. 

É fácil ver se um vidro é temperado com uns óculos de luz polarizada: os vidros parecem manchados, com estruturas regulares em geral. No caso dos carros, os vidros de trás aparecem, quando vistos com lentes polarizadas, como se fossem aos quadrados. Porquê? O processo de têmpera ao aquecer e arrefecer os vidros faz com que localmente o material tenha variações de índice de refração em relação aos outros locais que à luz polarizada torna visíveis. Uma aplicação moderna do dióxido de titânio é nos vidros que se limpam a si próprios. É também muito interessante o aço inoxidável que serve de moldura para os vidros. Como é bem conhecido, o aço inoxidável é de ferro mas tem uma percentagem bastante elevada de níquel e crómio. Muitos aços podem nem ter propriedades  magnéticas, o que é fácil de verificar com um íman. São só alguns dos pormenores que permitem um olhar sobre a parte mais científica dos materiais de que é feito o edifício.

A exposição de Ollara e Calzadilha estava no edifício do Museu. Chamaram-me logo a atenção os diálogos entre as flores no chão e entre as janelas e as flores (supostamente silvestres, mas também sintéticas) no relvado exterior, além da grande árvore negra que estava deitada numa sala. As mais de 50 mil flores são feitas de policloreto de vinilo (PVC) reciclado e pintado (vi no catálogo, mas confesso que pensei inicialmente serem verdadeiras flores). No caso da árvore fiquei a pensar de que seria feita. Li no catálogo que era de carvão moldado a partir de uma árvore derrubada por um raio. Os bons artistas trabalham com equipas de cientistas e técnicos que os ajudam nestas questões materiais. Não é só a análise das composições dos materiais e pigmentos, ou o desenvolvimento de materiais e o restauro de obras de arte que são importante em Arte, é também importante a participação no planeamento e na criação, onde a Ciência, a Técnica e a Química estão sempre presentes, mesmo que o artista faça eco da ideia de senso comum de que não tem “químicos.”

Embora mais ou menos esperada, foi muito interessante ver a concretização da imagem de uma bomba de gasolina “fossilizada.” Não poderia deixar de ser irónico que os materiais usados não fossem de pedra, mas polímeros, obtidos, provavelmente, do petróleo, mas não é assim. A escultura é de pedra calcária (li no guia). A boa arte explora as ironias, escapa às armadilhas, cria multiplicidades de sentido, abrindo as portas a novas ideias e experiências estéticas, muitas delas não pensadas pelo artista. Curiosa é também a utilização de um espectro, penso que na evocação do maior radiotelescópio de Arecibo em Esperança, Porto Rico, um transformador gigante, baterias, células fotovoltaicas e outros objetos com origem na Ciência e na Técnica em várias esculturas. Tudo isto acaba por provocar uma experiência estética e técnica que é muito interessante e se torna mais profunda quando se reflete e estuda.      

Surpreendeu-me também a exposição de Carla Filipe. Uma das coisas que na exposição anterior já me tinha maravilhado (assim como noutras que vi) foi o tamanho. Em Serralves pode ser explorado esse aspeto. E de entre as várias outras coisas que poderia referir, chamou-me a atenção em particular a evocação de algumas mulheres pioneiras ligadas à ciência e à medicina: Carolina Beatriz Ângelo e de Adelaide Cabete.

No edifício Arte Nova do jardim, a Casa de Serralves, estava a exposição de Calder e Miró. Para chegar lá passamos pelo parque que é também muito interessante e onde todas as árvores nos podem contar histórias químicas. Um dos espaço mais impressionantes é a alameda dos liquidâmbares, agora árvores muito grandes e criando sombra em toda a alameda. O outono nas folhas destas árvores é especialmente exuberante com estas a mostrarem todas as cores do verde ao castanho, passando pelo vermelho e o amarelo, e por vezes quase o azul, resultante das moléculas de antocianinas.

A Casa de Serralves tem muitos atrativos e caminhos a descobrir, mas queria chamar especial atenção para os espelhos antigos. Estes são feitos com metais sobre as superfícies de vidro que se vão oxidando, perdendo o espelho a sua capacidade de refletir bem. Num espaço de dezenas de anos os espelhos vão-se deteriorando.    

Não estava presente, mas há uma obra de Calder que me impressiona muito: a “Fonte de Mercúrio” (feita mesmo com o metal líquido), realizada para simbolizar a resistência ao franquismo e homenagear os mineiros de Almaden, cidade cercada na região de Espanha onde se situam essas minas de mercúrio. Foi exposta na Feira Mundial de 1937 em Paris, a céu aberto, em frente ao conhecido quadro Guernica, de Picasso. Atualmente, a “Fonte de Mercúrio” está na Fundação Joan Miró, em Barcelona, e é apresentada num ambiente estanque envidraçado pois há neste momento regras muito estritas em relação ao mercúrio que é muito tóxico.

Tinha antes estado em Serralves em junho de 2021 para ver uma grande exposição retrospetiva de Louise Bourgoise. No jardim estavam algumas das suas famosas aranhas. E no edifício estavam várias obras emblemáticas, como a “fillette” que se trata de um objeto que parece um osso de perna de porco (e que pode parecer outra coisa) mas não é de osso: é de poliuretano. Vários outras esculturas estavam também presentes, misturando materiais. Além de todos as interrogações que a arte pode desencadear e as sensações que pode provocar, é uma camada extra de maravilha poder reconhecer os materiais que são usados. Não vamos procurar a arte para estudar Ciências e Química, mas podemos juntar a arte à ciência e atingir outros níveies de sabedoria. 

Uns meses antes, tinha ido ver a grande exposição de Olafur Eliasson, conhecido artista dinamarquês-islandês. Na entrada estava um conjunto de árvores em vasos e mais adiante vários objetos em aço inoxidável. No jardim havia também objetos de aço inoxidável que eram bastante bonitos. Não havia, que eu tivesse dado conta, alguns dos objetos mais emblemáticos e conhecidos deste artista que são os vidros pintados com cores fortes e transparentes, que são usados em grandes objetos. Curiosamente fiz agora a associação de ideias que na Islândia gostam muito de cor. E para obter estas cores modernas são usados pigmentos sintéticos que acabam por ser mais seguros, em termos ambientais e de saúde, que muitos dos naturais.

Com esta grande exposição de Eliasson, estava uma exposição de Pedro Cabrita Reis. Nesta exposição objetos podemos ver noutros contextos materiais de construção que nos rodeiam: tijolos, fios elétricos e outros, tábuas, letreiros, e muitas outras coisas. Aqui está outro caminho da Arte: Valorizar materiais que muitas vezes nem reparamos.  

Estive em muitas exposições em Serralves. O bilhete é caro para o português médio, mas é grátis várias vezes por ano, em particular nas manhãs do primeiro domingo de cada mês. 

Visitei, numa dessas manhã, a famosa exposição de fotografias de Mapplelthorpe, em 2018. É surpreendente a qualidade das suas fotografias. Embora a fotografia em película, que tem toda uma química associada (os sais de prata sensíveis à luz, a revelação, os negativos, as películas e os papéis, entre outras coisas), estivesse já bastante bem estabelecida no seu tempo. *a fotografia analógica, seguiu-se a revolução da fotografia digital que, parecendo que não, não passa sem a Química. Devo referir, como escrevi na altura, que acabam por ser, muitas vezes, as exposições de artistas que eram menos familiares que mais nos surpreendem.

A Casa do Cinema Manoel de Oliveira é também um espaço interessante. O cinema começou por ser em parte, uma evolução da fotografia, começando as fitas por ser de celulóide um polímero muito inflamável.   

A Casa contou com várias peripécias antes de chegar aqui, incluído estar destinada a um edifício que foi construído para o efeito e depois vendido. Foi uma boa escolha, pois permitiu usufruir da experiência e das sinergias com a Fundação de Serralves. E já que falo de políticas de cultura vem a propósito referir coisas menos conhecidas sobre a quinta de Serralves. 

Por vezes diz-se que esta quinta foi “oferecida” pelos condes de Ribadave. Não é assim: esta foi vendida, mas foi um bom negócio para ambas partes. Acresce que a Fundação de Serralves, criada para gerir o espaço, teve desde o seu início obrigação de se financiar, numa ideia de sustentabilidade que se tem revelado também muito profícua. Vem a propósito referir que nem os reis “constroem” nem os ricos “dão.” Os primeiros mandam ou autorizam, por vezes, raras vezes, pagando. Os segundo, mesmo quando “oferecem,” estão em geral a fazer um negócio que se vai revelar muitas vezes vantajoso para todas as partes. Basta pensar em todas as fundações e ofertas ligadas a nomes: Guggenheim, Gulbenkian, Carnengie, Mellon, Frisk e muitos outros. A longo prazo, tudo tende para a entropia máxima, para a desordem e para a morte, que é também uma espécie de equilíbrio pouco desejado, mas, entretanto, podemos obter equilíbrios úteis em sistemas fechados e manter localmente a entropia baixa, criando ilhas de beleza e vida que podem durar muito tempo.  

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