Passeio Químico pela Casa de Egas Moniz e suas imediações

[Estive numas provas de doutoramento onde me chamaram a atenção para que, em 2024, faz 150 anos de que António Egas Moniz (1874-1955) nasceu e 75 anos de que recebeu o Prémio Nobel da Fisiologia ou Medicina. Visitei, em Avanca, Estarreja, a Casa-Museu com o seu nome, nos fins da pandemia de Covid-19, e tirei várias fotografias. Como se pode ver ainda se usava máscara nos espaços públicos. Voltei lá em 23 de novembro de 2024 e pude rever alguns aspetos e posso agora mudar algumas fotografias]

Trata-se de uma casa bonita e muito elegante, com um grande jardim, dois andares e torreões. A "Casa do "Marinheiro", como foi chamada, era inicialmente relativamente modesta, mas adquiriu aquele aspecto imponente com o desenho do arquiteto Ernest Korrodi,  refere João Lobo Antunes, na biografia de Egas Moniz. A quinta é muito grande, e, citando de novo João Lobo Antunes, Moniz, com três sócios, criou nesta uma vacaria modelo. Na cozinha, por onde entramos (na visita que fiz em novembro de 2024 foi o local de saída), encontramos uma interessante imagem do que era uma casa burguesa rica tradicional. Estas não poderiam funcionar na ausência de vários empregados que faziam múltiplas atividades: ir às compras, cozinhar, limpar e que organizavam as coisas, em geral antecipando-se aos patrões, os quais apenas davam ordens muito gerais. Na biografia que escreveu João Lobo Antunes, são referidos um feitor, três criados, uma cozinheira e um criado de mesa (e estes tomavam conta da casa nos onze meses que o casal estava em Lisboa). Era um tempo em que todos os alimentos eram confecionados em casa, as conservas eram caseiras e os compostos conservantes eram comprados nas farmácias ou nas drogarias. 

O frigorífico, o microondas, ou a “Bimby” não existiam, claro. O aço inoxidável não era usado, por ser muito caro o seu fabrico, sendo os talheres e as panelas de outros materiais. O lume era feito a lenha. Fogão a gás só se tornou comum na segunda metade do século XX. Também eram raros - apareceram no século XX, mas só se generalizaram nos anos 1960 - os utensílios de plástico, e, só nas ultimas décadas do século XX se tornou comum o uso de utensílios de silicone. Muito se poderia falar das evoluções químicas relacionadas com a cozinha que podemos notar “brilharem pela ausência” numa cozinha tradicional, mas eu não entrei na Casa-Museu de Egas Moniz para falar muito disso.

Ainda no rés-do-chão, observamos vários dos documentos e condecorações relativos à vida de Egas Moniz. Depois, subindo um andar, encontramos muitas das obras de arte que este possuía. Os visitantes têm em geral gostos bastante diferentes, e uma Casa-Museu acaba por satisfazer vários desses gostos. A mim, as obras de arte interessam-me bastante, mas as mobílias e as loiças parecem-me muito menos apelativas. Mas aqui, na Casa Museu, o que queria mais ver, estava relacionado com a psicocirurgia pela qual Egas Moniz recebeu o Prémio Nobel da Fisiologia ou Medicina, em 1949. Há uma sala sobre esta cirurgia e passei algum tempo a ver com atenção o que estava lá. (Mais pormenores sobre a a casa podem ser lidos na biografia escrita por João Lobo Antunes e nas outras referências da bibliografia).

Por vezes ouve-se, e lê-se, que deveriam tirar o Prémio Nobel a Egas Moniz - havia até um movimento nesse sentido -,  pois a leucotomia é uma “prática bárbara.” Mas, se pensarmos bem, não faz sentido. Primeiro, devemos olhar para as coisas à luz do seu tempo e das suas circunstâncias, embora isso não nos ilibe das responsabilidades atuais, claro. Segundo, há que distinguir a leucotomia pré-frontal (praticada por Egas Moniz) da lobotomia. São duas práticas médicas com resultados aparentemente similares, mas bastante diferentes. A primeira, envolvia um procedimento médico elaborado, em termos cirúrgicos, e a segunda foi popularizada por Walter J. Freeman (1895-1972),  o qual chegou a fazê-la, quase sem preparação, através do globo ocular. 

Numas pesquisas que fiz há uns anos (e repeti de novo em novembro de 2024), na base dados Web of Science (WoS), verifiquei que na literatura científica são relativamente poucos os artigos científicos que referem as duas palavras em conjunto (menos de 5%), sendo uns sobre a leucotomia e os outros sobre a lobotomia. Terceiro, e muito importante, nos anos 1930 não havia tratamentos medicamentosos eficazes para as doenças mentais. Isso só virá a surgir nos anos 1950 com a clorpromazina. A leucotomia parecia, às pessoas daquele tempo, uma opção boa para resolver problemas mentais que não tinham solução ( está hoje em dia a ser revitalizada também devido a isso). Duas pessoas relevantes leucotomizadas foram, a mulher de Marcelo Caetano, Maria Teresa Caetano, já este era primeiro ministro, e Raul Proença, editor do Guia de Portugal e autor de muitos textos. Se em relação à primeira, vi poucas notícias, em relação ao segundo, li que Proença, (que pensava ser amigo de Moniz, mas soube depois, por um comunicação de Manuel Correia, não ser), não achou melhorias com o procedimento. Por outro lado, Freeman tinha uma fé inabalável na técnica da lobotomia, mas outros médicos eram céticos, como Sobral Cid (1877-1941).

Egas Moniz foi também um autor pioneiro da técnica de angiografia cerebral, que permitia a marcação dos vasos sanguíneos do cérebro. Há teorias de que faria mais sentido ter-lhe sido dado o Prémio Nobel por isso, e de facto foi proposto várias vezes para o prémio por essa técnica (uma delas, um ano depois do Nobel). Talvez fizesse sentido, mas as primeiras angiografias também “eram bárbaras.” Um dos agentes de contraste usados no seu início, depois do brometo de estrôncio usado no começo) era o torotraste, óxido de tório, ThO2, bastante tempo usado como agente de contraste em vários tipos de radiografias. Ora, o metal tório é radioativo, e não sabemos quantos casos de cancro a mais acabou por causar. Mas, só para percebermos como as coisas eram diferentes, basta recordar que a primazia do torotraste foi contestada por alguns médicos (que diziam ter usado primeiro).  

Em conclusão, há que analisar as coisas à luz do seu tempo. Hoje temos comissões de ética e consentimento informado, os investigadores estão muito mais alerta para as consequências dos seus atos, o público tem muito mais sensibilidade, etc., mas isso não existia, ou era considerado menos importante, no tempo de Egas Moniz. Em 1927, estávamos ainda longe do Código de Nuremberga, de 1947, e das Declarações de Génova, de 1948, e de Helsínquia, de 1964. Os testes clínicos controlados só serão regulamentados, primeiro nos EUA, em 1962, e mesmo a segurança médica só irá ser regulada pela FDA em 1938. Comissões de ética só irão aparecer mais tarde. Por exemplo, na Alemanha a primeira Comissão de Ética aparecerá em 1971 e, tanto, como eu consegui perceber, em 1974, nos EUA. Só existia o Juramento de Hipócrates e o bom senso (que é bastante falível). Mesmo assim, Moniz obtém o consentimento dos seus pacientes ou familiares e tem a intuição de que está a proceder de forma correta e a favor destes, procurando controlar, ainda que de forma incipiente, as suas experiências. É anacrónico ver o passado com os olhos de hoje, mas isso não nos iliba, como já referi, das responsabilidades atuais de reparação e mitigação, se for o caso. Egas Moniz morreu em 1955, no mesmo ano de Einstein, e, por exemplo, a estrutura do DNA tinha acabado de ser descoberta e publicada em 1953 por Watson e Crick e o Homem ainda não tinha ido à Lua.

E porque passei tanto tempo a falar de práticas médicas, quando disse que ia falar de Química? Se pensarmos um pouco, vemos como a Química é fundamental para o sucesso destas. A possibilidade de realizar operações cirúrgicas mais complexas envolve assepsia, anestesia, antibióticos e vários outros medicamentos desenvolvidos pela Química. E poderíamos continuar por este caminho que é bastante óbvio, embora nem sempre seja reconhecido.  

Egas Moniz sofria de gota desde muito novo (24 anos) e ficou com as mãos deformadas. Podemos reparar facilmente nas fotografias em que aparecem as suas mãos, mas também podemos ver que as suas orelhas têm deformações caraterísticas com os tofos com cristais de ácido úrico. E usava umas botas especiais para acomodar os tofos gotosos que tinha nas plantas dos pés. Deveria ter bastantes dores e estava, na prática, provavelmente, impossibilitado de realizar cirurgias minuciosas (para o efeito trabalhava em equipa com outros cirurgiões). Outra pessoa que ganhou o Prémio Nobel, neste caso da Química, e que também tinha as mãos deformadas foi Dorothy Crowfoot Hodgkin. Hoje em dia, há medicamentos para estas doenças que não havia no tempo de Moniz nem de Dorothy. Moniz, usava também um capachinho na cabeça, como também é visível nas fotos. Era, no entanto, muito resistente e sobreviveu ao atentado mortal a tiro realizado por um doente. Ele e a sua mulher, Elvira de Macedo Dias, não tiveram filhos. Os medicamentos que tomava para a doença podem ter causado esse resultado. Na altura usavam-se salicilatos e a colchicina, provocando ambos, em particular os primeiros, segundo li, diminuição da motilidade dos espermatozoides.   

Moniz era um escritor prolífero. Escreveu sobre coisas tão diversas como Arte e Literatura, em particular sobre José Malhoa e Júlio Dinís, e sobre a história das cartas de jogar. Faz eco de muitos preconceitos na sua obra “A vida sexual” que só se podia comprar (disseram-me) com receita médica! 

Muitas vezes, era demasiado confiante, como quando fez o diagnóstico de Mário de Sá Carneiro com base num poema que este publicou. Ou era demasiado "do seu tempo," quando vai ser um dos médicos que corrobora o diagnóstico infame de “loucura lúcida” a Maria Adelaide Cunha que “fugiu” com o seu motorista, abandonando o marido que a fez internar, com a conivência de Moniz, Sobral Cid e Júlio de Matos, e lhe ficou com o jornal “Diário de Notícias”.   

Perto da casa de Egas Museu, fica uma instalação da Nestlé, e, na rotunda perto desta, há uma homenagem à fábrica de processamento de leite. Trata-se de um conjunto de depósitos e tubos em aço inoxidável, característicos e facilmente reconhecíveis, das unidades de processamento de leite. Poucos sabem, mas foi através da iniciativa de Egas Moniz que chegaram a Portugal as papas lácteas. Moniz, com vários sócios, começou com uma fábrica de laticínios, que, mais tarde, foi vendida a esta marca.  Mais uma vez, podemos achar que as farinhas lácteas não foram uma evolução em relação à amamentação natural, mas temos de ver as coisas à luz do seu tempo. Nessa altura, a amamentação natural era vista, nos meios cultos, como uma “coisa bárbara.” Quem podia tinha amas de leite e o uso de leite de animais não era seguro nem adequado. Estas papas vão permitir obter materiais estéreis e com composições adequadas. Hoje em dia podemos, se o pudermos, passar sem elas, mas na altura foi um grande avanço.

Nunca é demais lembrar que, até perto dos anos 1960, era perigoso ser bebé, criança ou jovem (leia-se o livro de Annie Ernaux “Os anos”, por exemplo). A mortalidade infantil era muito alta, o que criou a falsa ideia de que a esperança de vida de todos era baixa. Não era assim: há nesta ideia uma falácia estatística. Para simplificar, pensemos que metade das crianças morria à nascença e as que não morriam chegavam aos 100 anos: a média da esperança de vida seria de 50 anos. O maior aumento da esperança de vida foi conseguido com a diminuição da mortalidade infantil. E muitas crianças morriam de diarreias e doenças relacionadas com a alimentação e a higiene. Claro que o aumento da esperança de vida é hoje conseguida à conta de coisas mais subtis, mas, mais do que o aumento da esperança de vida, hoje em dia podemos falar de aumento da qualidade de vida (pelo menos no mundo ocidental) para o qual muito contribuiu a Química. 

Temos, entretanto, hoje em dia, muitos outros desafios, como o aquecimento global, mas não devemos esquecer que muitos problemas têm sido resolvidos com mais Ciência e que foi aumentada a sustentabilidade de muitas coisas que nos rodeiam.

E Egas Moniz? A evolução do seu pensamento, atualização dos seus conhecimentos, gestão que fez da sua carreira e a sua curiosidade são notáveis. Quando jovem, parece que deu muita importância à vida estudantil, havendo uma placa que assinala a sua vida numa República Estudantil, na Rua de Tomar, em Coimbra. Bateu-se em duelo, gostava de jogar cartas e apreciava iguarias. Há ainda muita coisa para estudar e divulgar. Manuel Correia, no colóquio referido acima, falou dos diários que, não sendo inéditos, não estão ainda publicados, nos quais tem palavras violentas, mas justas, para com a ditadura e Oliveira Salazar. Escreveu o famoso livro sobre a vida sexual, onde distingue muito os papéis do homem e da mulher, mas muda bastante de ideias ao longo da vida.
Numa das últimas entrevistas que deu, ao lhe perguntarem sobre a "inferioridade" da mulher, responde que, se existisse, era devida à educação (estamos em 1955). Moniz pode ser um modelo para os jovens. Não precisa ser apresentado apenas como aquele senhor idoso de capachinho e polainas. Pode ser mostrado também como o jovem corajoso e garboso, como o homem das "duas culturas", que cultivava as relações humanas e gostava da vida, e claro, como o cientista inovador, incansável e pedagógico (a esse nível, as Confidências de um Investigador Científico, são notáveis). Muitas das suas ações e ideias estão hoje ultrapassadas, mas abriram caminhos e reflexões que nos permitem ter visões, esperanças e ações mais realistas e informadas.      

[A primeira versão foi escrita em 19 de dezembro de 2023, corrigi algumas gralhas em 29 de junho de 2024 e fiz pequenas alterações e acrescentos em 4 de outubro de 2024 e 22, 25 e 29 de novembro de 2024] 

Bibliografia

Ana Leonor Pereira, João Rui Pita (Eds). Egas Moniz em livre exame. Minerva, 2000.

João Lobo Antunes. Egas Moniz: uma biografia. Gradiva, 2010.

Manuel Correia. "Raul Proença". In Luzes e Sombras do Alienismo Português, 201-214. Porto, Portugal: Centro Hospitalar Conde de Ferreira, 2012.

Manuel Correia. Egas Moniz no seu labirinto. Imprensa da Universidade de Coimbra, 2013.

Sérgio P. J. Rodrigues. Química e Saúde Pública. Revista Multidisciplinar, 4(2):57-74 (2022). https://doi.org/10.23882/rmd.22087

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