Passeios químicos em Toledo


[Em dezembro de 2022 estive uns dias em Toledo, em Espanha. Escrevi na altura algumas notas, mas só agora estou a acabar o texto]

Toledo foi a capital do império espanhol até 1561, altura em que Filipe II mudou a sua corte para Madrid. Rodeada pelo rio Tejo tem muitas histórias para contar. Vou aqui concentrar-me essencialmente nas narrativas com ligação à química.

Atualmente, o seu principal artesanato é a produção de espadas e um tipo de arte manual conhecida como damascaria. Trata-se, neste último caso, de incrustação de materiais, como pedras preciosas e outros metais, em ouro. Este, embora seja um metal muito denso (um litro de ouro pesa mais de dezanove quilogramas) é muito maleável e, por isso, facilmente trabalhado. Uma localidade perto de Toledo, Oropesa, ficou com este nome, como o próprio nome indica, devido a ser um local onde pesavam o ouro. Por outro lado, no caso das espadas, a incorporação de carbono no ferro e os tratamentos térmicos, dão origem a gumes muito resistentes e cortantes. 

Há um pequeno “museu” do queijo machego na cidade, mas rapidamente notamos que é mais uma loja do que um museu. Em qualquer dos casos, visitei as suas salas e deu para perceber melhor o processo de produção deste queijo. Este é feito de leite de ovelhas de raça manchega com coalho e sujeito a um conjunto de regras bastantes estritas assim como a rotulagens diversas. O coalho é extraído dos estômagos dos cordeiros, onde há enzimas que agem sobre o leite, sendo também usado em muitos queijos em Portugal. Importantes para o resultado, é, na minha opinião, o corte da coalhada em pedaços muito pequenos e a prensagem para retirar o soro que dá ao queijo um aspeto homogéneo e compacto. 

Os moldes devem ter textura em zig-zag para imitar o antigo cincho de esparto (pode ver-se numa das fotografias) que ainda é usado nas produções mais artesanais. Tanto quanto sei, não há nenhum queijo em Portugal que tenha usado estes cinchos. O leite inteiro pode ter teores de gordura da ordem dos 3%, mas o queijo vai ter teores de mais de 50%. Curiosamente, vai assim ter muito maior teor de proteína pois estas estão associadas à gordura (esta envolve as proteínas). Então e a manteiga? Neste caso não se coalha o leite e portanto não são precipitadas as proteínas que estão envolvidas pelas gorduras, mas vai-se extraindo as gorduras que estão à superfície (as gorduras têm menor densidade), sem que nesse processo sejam arrastadas as proteínas. O leite usado pode ser cru ou pasteurizado. Se for leite cru, ou seja não pasteurizado, pode ser usada a designação de “artesanal”. E o que é pasteurizar? É aquecer a leite a cerca de 70ºC durante vários minutos, o que provoca, desta forma, a morte de uma boa parte das bactérias patogénicas (se estas estiverem presentes, o que  em geral não acontece, devido aos processos e higiene modernos).  

Para além de toda a história do local, há dois momentos que quero referir: as visitas de Marie Curie. Esta visitou pela primeira vez Toledo em 1919, na sequência do primeiro Congresso Nacional de Medicina Nuclear que se realizou em Madrid, tendo visitado a fábrica de armas de Toledo que esteve envolvida no esforço da Primeira Guerra Mundial e voltou depois, em 1931 e 1933, destas duas últimas vezes com a intervenção do médico, cientista e humanista Gregorio Marañón, Doutor Honoris de Causa pela Universidade de Coimbra. Numa foto que vi do primeiro congresso de medicina nucleal, esta está ao lado de Alexander Fleming, o que não deixa de ser curioso, dado a paixão dos espanhóis pelo médico e cientista, como já referi noutros passeios. E claro, em Toledo há também uma rua com o nome de Fleming. 

Outro momento que quero referir, este mais triste, foi o da Guerra Civil de Espanha. A cidade foi muito relevante durante esta guerra, sendo a nível simbólico muito importante para os nacionalistas de Francisco Franco. Talvez não seja assim por acaso que se situe aqui um dos maiores museus militares do país, situado no palácio, conhecido como Alcazar, que foi quase destruído durante a guerra e que domina toda a cidade. Quando lá estive, estava fechado. Havia no Alcazar uma exposição sobre os Lusíadas, mas não cheguei a ir lá.    

Outro aspeto muito interessante daqui é o facto de El Greco (1541-1614), nome pelo qual que ficou conhecido Domenikos Thetokopulos, ter vivido e trabalhado nesta cidade, tendo feito quadros que a representam, assim como realizado retratos de pessoas da época. Pode visitar-se um museu, que embora não tenha sido a sua sua casa - pensa-se que esta seria perto – reúne várias das suas obras. As obras de El Greco são facilmente identificáveis pelas formas esguias e distorcidas das pessoas e pelas cores intensas. Há uma procura de explicação com base no seu suposto estigmatismo, o que é conhecido em certos meios pela “falácia de El Grego”. De facto,  segundo esta corrente, mesmo que este tivesse um defeito de visão este repercutir-se-ia nas telas e molduras e, portanto, embora El Greco visse distorcido pintaria “corretamente”. Há também outras propostas de explicação que têm sido publicadas. Seja como for, El Greco é atualmente considerado percursor em muitos aspetos da arte moderna. 

Um aspeto que me chamou atenção nas pinturas de El Greco, foram as cores e os rostos. Muitos dos santos parecem ter todos a mesma cara! E é também curiosa a forma como El Greco usa as cores: para os motivos divinos usa cores brilhantes e intensas, mas para os motivos terrenos cores escuras. As suas cores são muito diversas como vou referir, mas há duas cores que são especialmente significativas: os vermelhos e os azuis. Tratam-se, segundo percebi, do uso de dois pigmentos naturais. Para o vermelho, a cochonilha, obtida de um inseto, e para o azul, o índigo, obtido de uma planta, que aqui na península era o pastel dos tintureiros. 

Muitos dos seus quadros foram sendo espalhados por vários locais. Chamou-me a atenção a enorme “Assunção da Virgem” que foi retirada do altar onde se encontrava cerca de 1830 e acabou por ir parar a Chicago, nos Estados Unidos. Agora podemos “apreciar” nesse altar uma cópia. Os restauros têm mostrado que as cores antigas (não só de El Greco) eram muito intensas, mas ao longo dos anos os vernizes foram amarelecendo e o pó e o fumo foram escurecendo os quadros. Operações de restauro e limpeza que retirem esses materiais devolvem uma riqueza de cores que muitas vezes nem suspeitávamos. Bastante impressionante é o “Enterro do Conde de Orgaz” que parecia ter sido pintado há muito pouco tempo. Vi depois que tinha sido restaurado. 

Num artigo que li que analisa o quadro “Batismo de Cristo” (1) nota-se desde logo o escurecimento dos brancos, mas todas as outras cores parecem quase inalteradas. A paleta do pintor tinha também pigmentos minerais, além dos orgânicos naturais já referidos. Tinha também alguns pigmentos sintéticos, mas de origem inorgânica. Os pigmentos usavam como base o vidro moído que lhes dava bastante brilho ou a resina. El Greco usava uma camada branca conhecida como imprimatura com várias combinações de vidro moído e branco de chumbo com gesso e um ligante (não percebi se era ovo ou óleo) que ajudava a fixar as cores e lhe dava profundidade e aumentava a saturação e a luminosidade. O branco de chumbo é um sal deste metal (2PbCO3.Pb(OH)2) que escurece por este formar sais negros de enxofre, originados pela presença de dióxido de enxofre na atmosfera. Os azuis são de índigo e lapis lazuli, os pretos de negro de carvão, os verdes de uma mistura de indígo, resinato de cobre (Cu(OH)2 com resina), e branco de chumbo, o vermelho é de cochonilha e o amarelo de chumbo-estanho (PbSn(1-x)SixO3). Há também umbra (Fe2O3 e MnO2), ocre amarelo (FeOOH) e realgar (As4S4 e As2S3). Independentemente de todos os aspetos técnicos, que acrescentam profundidade à análise, são muito belos os quadros.

Toledo é uma cidade muito antiga, em que as várias civilizações foram convivendo, nem sempre de forma harmoniosa. Podemos ver mesquitas e sinagogas que foram transformadas em igrejas, igrejas tão antigas que vão passado pelas várias civilizações que se fixaram aqui, ruas e edifícios muito antigos, ruas com numeração e nomes inusitados, etc. Chamou-me a atenção esta espécie de mania dos espanhóis em “prender” os seus santos, com grades que se fecham, ou estão fechadas.

Com toda esta riqueza cultural, os pratos típicos da cidade são também muito complexos, mas é especialmente conhecido o maçapão (do castelhano marzipan). Este doce de origem árabe tem como principais componentes a farinha de amêndoa, o açúcar e as claras de ovo que dão origem a uma pasta que pode ser moldada e permite fazer esculturas bastantes detalhadas.

(1) S. Daniilia, K. S. Andrikopoulos, S. Sotiropoulou, I. Karapanagiotis, Analytical study into El Greco’s baptism of Christ: clues to the genius of his palette, Appl. Phys. A 90, 565–575 (2008)

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