No Caminho de Santiago do Zambujal a Conímbriga

A parte do Caminho de Santigo que vai do Zambujal até Conímbriga segue por passagens e carreiros agradáveis e bem sinalizados. Com muitas referências histórias e iconográficas, em especial na Fonte Coberta onde vários azulejos evocam a passagem de peregrinos notáveis pelo local. A partir deste lugar até ao Poço (onde o Caminho se junta a um percurso pedonal também assinalado), e depois até Conímbriga, o percurso segue junto ao rio de Mouros também designado Carálio Seco (Caralium Secum). O rio está nesta altura do ano (final de Junho) seco mas as rochas arredondadas do seu leito cobertas em parte de musgo negro são bem indicativos de que no inverno pode ter grandes caudais.

Neste passeio irei debruçar-me sobre aspectos químicos que esta parte do Caminho de Santiago evoca, com especial atenção para aqueles que marcaram profundamente a história da humanidade: a produção de azeite, queijo e vinho. Também, uma planta que aqui pode ser encontrada, a salsaparrilha, recorda os primórdios da invenção da contracepção oral.

Na foto ao lado pode ver-se o caminho tendo ao lado uma oliveira e cardos de uma espécie que pode ser usado para a produção de queijo. Não é visível na foto, mas notava-se pelo cheiro, a presença de cabras. Na foto pode também ver-se uma nogueira, mas esta árvore e as moléculas que procuramos obter desta, não tiverem um impacto tão grande na história da humanidade como as que relacionamos com o azeite e o vinho: o ácido oleico e o álcool etílico.

O queijo é um dos primeiros alimentos transformados inventados pela humanidade. O queijo característico desta zona (Rabaçal) não é em geral produzido com cardo (embora haja quem o faça) mas sim com coalho de origem animal, actualmente produzido por processos biotecnológicos. Não deixa no entao de ser interessante a grande quantidade de cardo que se encontra nesta zona em comparação com as regiões como a Serra da estela que usam o cardo para coalhar o leite.

O azeite tinha na antiguidade inúmeros usos, desde a alimentação à cosmética e higiene, passando pela iluminação até aos aspectos medicinais. Por isso não é surpreendente que existam centenas de referências ao azeite na bíblia e Homero lhe chame ouro líquido.

O azeite esteve na origem do desenvolvimento das primeiras civilizações que o usavam de forma intensa e começaram a exportar, levando a que cada vez mais terras agrícolas fossem ocupadas com oliveiras, as quais, por sua vez, podem ter aumentado a erosão dos terrenos, contribuindo para o declínio das civilizações que ajudou a desenvolver.

A química do azeite tem muitos aspectos que podemos explorar, a maior parte deles bem conhecidos. Vou referir apenas alguns. Desde logo o facto de ser um triglicérido com uma quantidade elevada de ácido oleico. O azeite de melhor qualidade é extraído apenas por prensagem a frio das azeitonas e a acidez do azeite é dada pelos ácidos gordos livres (ou seja que não estão integrados nos triglicéridos). Um aspecto interessante é do sabor amargo das azeitonas e do azeite produzido de forma deficiente. Nas azeitonas existem glicosídeos amargos que são solúveis em água (a cura das azeitonas é, por isso, feita com água) mas não nas gorduras (por isso, na prensagem das azeitonas a fase aquosa e os compostos solúveis nesta fase devem separar-se do azeite).  
 
Na foto ao lado pode ver-se uma videira com uvas, tendo uma oliveira ao fundo. A produção de vinho e a química que lhe está ligada tem também sido muito importante na história da humanidade. Por exemplo, na Bíblia a vinha foi a primeira cultura de Noé. Uma videira e as suas uvas levam-nos, tal como o azeite, a um grande número de histórias químicas e literárias. Por exemplo, para citar uma mais recente, a poesia do átomo de carbono de Primo Levi.

É já conhecida há muito tempo a química dos tratamentos tradicionais das vinhas, os quais são permitidos em agricultura biológica, com o enxofre e as caldas com o ião cobre. O efeito fungicida do ião cobre só é eficaz se estiver numa solução básica (por isso se usa cal na calda bordalesa). O enxofre elementar que se  oxida a dióxido de enxofre por acção da luz e é activo contra outros fungos e alguns insectos.

Estes tratamentos químicos tradicionais continuam a ser eficazes e são relativamente seguros, mas têm algumas limitações e, claro, não são inócuos. Por isso tem existido, desde há muito, a procura de técnicas mais eficazes, nomeadamente fungicidas sistémicos (ou seja que se mantêm activos na planta).

Os tratamentos químicos modernos têm actualmente de ser integrados (protecção integrada) e justificados. Embora a ignorância dos agricultores e a ganância dos vendedores e fabricantes possa existir, há também um controlo apertado do que pode ser comercializdo e uma grande preocupação com a segurança dos pesticidas, com a sua aplicação e persistência no ambiente e cadeia alimentar. Na figura está um pacote vazio (provavelmente para indicar que foi usado na quela vinha) de uma mistura bastante comum de dois fungicidas genéricos sistémicos que foram desenvolvidos a partir dos anos 1960, o fosetil-alumínio (um organofosfato de alumínio) e o mancozebe (um tiocarbamato de manganês e zinco). Sendo mais perigosos e persistentes do que os produtos tradicionais o seu uso deve ser feito com especial cuidado. Não devemos é ser irracionais em relação aos tratamentos com químicos de síntese ou artificiais. Julgo não ser heresia lembrar que agora mítica Rachel Carson no seu famoso Primavera Silenciosa considera aceitável a utilização de pesticidas desde que tal seja mesmo necessário. O que Rachel Carson rejeita veementemente é a utilização desregrada e irracional destes produtos.

Embora em pequeno número, podem encontrar-se ao longo do Caminho outras marcas da passagem humana, para além das da agricultura e viticultura. Por exemplo, cartuchos vazios de caçadores (os quais os deveriam ter apanhado). Cartuchos que não podem agora ter chumbo nas zonas húmidas, mas sim aço, pois o chumbo é neurotóxico e está progressivamente a ser banido na caça. Também nesta actividade há muita ignorância, por isso têm de existir regras apertadas e castigos para os prevaricadores.

Podem encontrar-se figueiras ao longo de todo o caminho. Esta árvore que cresce em qualquer lado, até paredes e interior de casas abandonadas, tem tido também o seu papel na história. Para além dos figos secos que tiveram um papel significativo na alimentação mediterrânica, há ainda considerar as suas aplicações medicinais tradicionais, em particular do seu latex, e as que se encontram actualmente a ser estudadas.
Ao longo do Caminho encontra-se muitas plantas medicinais ou com usos tradicionais. O cardo penteador (que não fotografei), entre outras. Uma planta muito comum e com histórias interessantes no que concerne à químicos é a salsaparrilha, aqui na fotografia ao lado. Esta planta contém saponinas, em especial a sarsasaponina, e várias outras moléculas com relevância medicinal. Ainda não há muito tempo era consideranda activa contra a lepra e a sífilis e era usada em tratamentos hormonais de origem natural. É esse aspecto, cujo principal actor é a sarsasaponina, que coloca esta planta no caminho de uma das maiores revoluções do século XX: a descoberta da contracepção oral nos anos 1960. Russell Marker, um químico brilhante mas pouco convencional, descobriu como obter progesterona e outras hormonas a partir desta molécula. Mais tarde Carl Djerassi mostrou que podia obter cortisona e estradiol. No entanto estas moléculas só podiam ser usadas em tratamentos hormonais injectáveis. Carl Djerassi, adicionando um grupo etino à progesterona, obteve uma molécula artificial que não era degradava se ingerida, a noretindrona, e inventou assim contracepção oral!
 
 Uma planta também comum no percurso é o hipericão (aqui ao lado). Desta planta e dos seus usos e riscos já falei de forma mais detalhada noutro passeio.

Encontra-se também funcho (não fotografado) facilmente reconhecido pelo cheiro e caules verdes. Esta planta é muito usada em culinária e tem também aplicações medicinais. Contém, entre muitas outras moléculas, trans-anetole e estragol, este último suspeito de ser cancerígeno.
Pode encontrar-se arruda (fotografia ao lado), uma planta com uma notável história na medicina popular (desinfectante, abortificante, etc.), aplicações tradicionais (repelente de insectos e ornamental) e simbólica.

Nesta altura do ano os sanguinhos das sebes (não fotografados) estavam cheios de frutos vermelhos. Podem também encontrar-se alguns medronheiros.


Que planta é esta? Não sei! Sei agora que é uma maleiteira-maior, uma planta que um dia até poderá dar muito de que falar. Estamos em Junho e já não tem as flores exuberantes características. De possível fonte de látex natural (veja-se a fotografia) a aplicações na produção de energia, passando pelas aplicações medicinais, algumas tradicionais e outras novas que agora começam a ser testadas, na literatura pode encontrar-se bastantes referências a esta planta. Se estas aplicações se revelarem viáveis ou se a partir das moléculas identificadas nesta planta forem desenvolvidos novos medicamentos esta bem poderá ser considerada uma nova planta maravilha.

Para saber mais sobre o papel da química do ácido oleico e da salsaparrilha na história: Penny Le Couteur e Jay Burreson, Napoleon's Buttons: How 17 Molecules Changed History (Jeremy P Tarcher, 2004)

[versão preliminar 3 de Julho de 2014, alterações de 7 de Novembro de 2014]