Todos os anos, no início do Outono, os prados irregulares da quinta que a família da minha mulher tem em Videmonte, na Serra da Estela, se cobrem de flores lilás e cogumelos de várias cores. É sempre um prazer voltar lá nessa altura e este ano não foi diferente. Fiz algumas fotografias de amanitas-das-moscas, fradelhos e de outros cogumelos que não identifiquei, e, claro, também das flores lilás.
Este ano havia muitos amanita das-moscas que são o ícone por excelência dos cogumelos venenosos. No entanto, embora sejam tóxicos e possuam, como é bem conhecido da literatura, propriedades alucinogénias, as intoxicações mortais com esta espécie de cogumelos são felizmente pouco comuns, ao contrário das intoxicações com amanita-falóides (um cogumelo mortal mas muito mais discreto) que quase todos os anos causam vítimas. Estes últimos têm amatoxinas que são péptidos cíclicos muito venenosos que provocam lesões irreversíveis no fígado, enquanto que os amanitas-das-moscas têm compostos bioactivos não péptidicos como o muscimol e pequenas quantidades de muscarina.
No livro de Dorothy Sayers, O Enigma dos Cogumelos Venenosos, é este último composto que é identificado como responsável pelo crime. Verificou-se depois que o veneno não poderia vir dos cogumelos pois foi detectada uma mistura de isómeros ópticos (compostos com a mesma fórmula que são a imagem no espelho uns dos outros) que não existem naturalmente. Logo só poderiam ter sido obtidos de forma sintética, ou seja produzidos num laboratório. Este aspecto da trama é especialmente interessante porque na altura em que foi escrito o livro não havia ainda sido realizada a síntese da muscarina!
No capítulo dos venenos do livro Jardins de Cristais refiro estes dois aspectos, mas acabei por não referir dois outros. O primeiro é trivial: a estrutura da muscarina que aparece no livro de Sayers está errada pois baseou-se num trabalho em que esta foi determinada de forma incorrecta. O segundo é mais importante e contribui para a complexidade da trama: o cogumelo amanita-das-moscas possui muscarina em pequena quantidade e por isso dificilmente seria responsável pelo envenenamento com este composto. Existem, no entanto outros cogumelos, muito mais discretos e venenosos e que possuem muscarina em maior quantidade. E, se o especialista em cogumelos que foi envenenando dificilmente se enganaria a identificar o amanita-das-moscas, poderia acontecer que se tivesse enganado com esses.
Já sobre as flores lilás, estava completamente enganado acerca do nome e estava muito longe de suspeitar da sua química e história. No entanto, hoje mesmo, ao ler o livro do médico Mário Viana de Queiroz, Reumatologia, Literatura e Arte, fez-se luz! Referia este autor, citando um artigo sobre Shakespeare e a reumatologia, o qual é ilustrado com versos do poeta, que no tempo de Shakespeare a colchicina não tinha ainda sido redescoberta [1]. De facto, só dois anos depois da morte do poeta e apenas durante duas décadas esta planta foi referida na Farmacopeia Britânica, desaparecendo depois durante 150 anos, quando era bem conhecida de tratados anteriores [2].
A colchicina é uma molécula usada desde antiguidade até à actualidade para aliviar o sofrimento causado pela gota e, adivinhem onde é que esta molécula pode ser encontrada? Nestas plantas, Colchicum sp., conhecidas como açafrão de outono. Estas plantas têm bolbos relativamente grandes e são, naturalmente, tóxicas, mas nas quantidades adequadas ainda hoje a colchicina é usada para o tratamento da gota.
Sem a química não teria sido possível identificar as estruturas das moléculas referidas e fazer a sua síntese. Dada a toxicidade da colchicina, as quantidades desta molécula presentes nos comprimidos devem ser controladas e não depender apenas de preparações tradicionais. Em muitos casos a gota resulta de alimentação incorrecta, mas noutros, como no caso do médico e Nobel Egas Moniz, pode resultar de uma deficiência bioquímica congénita ou adquirida. Além da gota, existem mais de cem doenças reumáticas desde a fibromialgia até ao lupus, passando pela artrite reumatóide, a osteoartrite e a tendinite [3]. Estas dores e doenças acompanham a humanidade desde tempos imemoriais, mas hoje sabermos diagnosticá-las e tratá-las um pouco melhor. E a química continua a ter um papel importante na procura de novos analgésicos, anti-inflamatórios e materiais biocompatíveis para minorar problemas com as articulações. Sem a química, a humanidade pouco mais tinha avançado do que roer bolbos de açafrão de outono, rilhar cascas de salgueiro e sofrer resignada.
[1] GEORGE E. EHRLICH, Ann. Rheum. Dis.(1967), 26, 562 (acedido 3/11/2104)
[2] EDWARD F. HARTUNG, Ann. Rheum. Dis.(1954) 13, 190 (acedido 3/11/2104)
[3] NIAMS Questions and Answers about Arthritis and Rheumatic Diseases (acedido 3/11/2104)
[versão preliminar de 3 de Novembro de 2014]
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
Sem comentários:
Enviar um comentário