Passeio Químico em Salamanca

Salamanca é uma cidade relativamente perto da fronteira com Portugal e já lá estive várias vezes, mas desta vez pensei mais nos aspetos químicos. Os monumentos e palácios da zona histórica, assim como as esculturas e relevos nas suas fachadas, são maravilhosos em si, mas começo por referir as pedras de que são feitos. Vários artigos que li referem arenitos dourados de Villamayor, localizada a cerca de seis quilómetros do centro da cidade. Estes arenitos têm composição variável mas nos artigos referiam cerca de 60 a 80% de quartzo, essencialmente SiO2, feldspato e uma quantidade variável de óxido de ferro III, Fe2O3, entre 0,7% e 2,3%. Como as esculturas são tão finas e detalhadas, o grão tem também de ser muito fino. E para o aspeto dourado é importante a presença do ferro que dá essa cor. Por outro lado, os arenitos são muito porosos e isso origina vários problemas de conservação como vários dos trabalhos de investigação que li indicavam. Muitos deles referiam estudos de consolidação com polímeros. Muitas vezes, o que parece que não se degrada envolve muito trabalho. 

Para que uma cidade antiga fosse viável, era necessário, além de água suficiente (neste caso providenciada pelo Rio Tormes), que estivessem disponíveis materiais de construção fáceis de usar relativamente perto. Nesse aspeto Salamanca é um lugar afortunado, pois as rochas permitiam todo o detalhe que se se observa. Nunca tinha pensado nisto desta forma, mas parece-me que faz sentido. A região de Segóvia e Ávila tem outros tipos de rochas dominantes nos edifícios: calcárias e dolomíticas. Podem parecer semelhantes, mas não são de todo. Obviamente um geólogo diria muito mais coisas, mas para um químico pode bastar saber que os arenitos envolvem essencialmente sílica enquanto que as rochas calcárias e dolomíticas, envolvem carbonatos, cálcio e magnésio.    

Os turistas concentram-se em procurar a imagem da “rã” na fachada da catedral e o “astronauta,” acrescentado num restauro, realizado já nas últimas décadas do século XX, na fachada da universidade. Nós não os procurámos, mas fizemos algumas visitas mais turísticas e subimos às torres das duas catedrais. Em Salamanca, a catedral velha e a catedral nova (que demorou vários séculos a ser construída) estão encaixadas e nessa visita pode observar-se como de facto estão unidas. Também nessa visita, pudemos ver as traves de madeira que foram colocadas após o terramoto de 1755, o qual causou vários problemas estruturais. 

Incidentalmente, reparámos que uma torre da universidade parecia inclinada e, talvez estivesse mesmo devido ao terramoto. Muito interessante eram as funções do sineiro das catedrais. Tinha materiais para fazer pequenas reparações, nomeadamente de pintura, reboco e limpeza. Numa vitrina podemos ver uma simulação dos pigmentos que usava e alguns das coisas que retirava. Na vitrina está arames, areia, anil (neste contexto deve ser azul ultramarino, um sulfossilicato de sódio e alumínio) e cal (imagino que seja cal apagada, Ca(OH)2). Noutra vitrina, havia uma exposição sobre o arquivo da catedral e como eram guardados os documentos. Estavam lá uma caixa de chumbo e o selo dos documento guardados. Notava-se algum esbranquiçado, nomeadamente no selo, provavelmente de óxidos deste metal.

De cima, pudemos ver com outros olhos os vitrais das catedrais, as pinturas e a cobertura com folha de ouro. Os vitrais eram obtidos com vidro colorido que era soprado (e por isso tem irregularidades) e era colocado em molduras de chumbo, metal que tinha a vantagem de ser relativamente mole. A cor tem origem em variados fenómenos óticos, tanto de através de pigmentos (caso do ferro II que dá uma cor verde, o ião cobre que dá uma cor azul clara, o ião cobalto que dá um cor azul escura, entre outros) ou, por exemplo, através de efeitos de difusão da luz devido ao tamanho das partículas (por exemplo, um vermelho intenso é devido a nanopartículas de ouro). Sobre a pinturas poderíamos alongar-nos muito, mas eu quero falar da folha de ouro. Esta pode ser obtida com espessuras de cerca de 0,0001 centímetros e adere fortemente às superfícies onde é aplicada devido às ligações intermoleculares. Sendo a densidade do ouro cerca de 19,4 gramas por centímetro cúbico, cada metro quadrado coberto tem cerca de 19 gramas de ouro.   

Uma coisa que me chamou sempre a atenção em Salamanca foram os escritos a vermelho escuro nas paredes. Em vários sítios referiam o sangue de boi das touradas usado em escritos antigos (no guia que tinha, o qual já tem mais de vinte anos, referiam também [1]). Isso sempre me pareceu problemático, mas achei que era aceitável se envolvesse o almagre, um óxido de ferro que é vermelho. Uma pesquisa mais profunda para este passeio, conduziu-me a outros estudos que afirmavam que nunca foi usado sangue de boi [2]. Que tal ideia remonta às comemorações dos setecentos anos da universidade entre 1953 e 1954. Servia, segundo o artigo, os interesses dos nacionalistas a ideia de virilidade que transmitia. Pela mesma razão, começou a ser a associado o “Victor,” um símbolo que contêm as letras deste nome, ao doutoramento (esse símbolo encontra-se amiúde associado aos doutoramentos Honoris Causa que são referidos nas paredes da universidade antiga). No entanto, os investigadores Ángel Weruaga Prieto e Rodríguez-San Pedro, referem que esse símbolo era usado para a hierarquia da universidade e não especificamente para o doutoramento [2]. É assim que agora se conta, mas é relevante saber que nem sempre foi assim.

Na visita que fizemos à universidade velha, pudemos ver algumas das suas salas, a capela e a biblioteca antiga (no caso da biblioteca, foi a primeira vez que a vi – no meu guia de 2000 [1] só havia uma imagem muito antiga, não estando provavelmente disponível o acesso a esta na altura em que foi escrito). Havia alguns objetos em exposição, nomeadamente um modelo anatómico muito interessante e um antigo laser de árgon, mas o enquadramento era confuso. Algumas das salas não tinham grande interesse e só se podia ver a biblioteca, que estava bastante escura, por uma espécie de aquário ao contrário. Na ocasião consegui tirar algumas fotografias dos letreiros das estantes. Foi particularmente interessante ver um letreiro com “Filosofia e História Natural” e outro com “Química Medicinal” (neste caso a fotografia ficou desfocada). A zona da Universidade nova não se visita em geral, mas os edifícios são também muito interessantes.  

Um dos escritores mais conhecidos associado a Salamanca é Miguel de Unamuno que foi reitor da sua universidade. Por acaso li recentemente um livro dele menos conhecido que podemos considerar de tese: “Amor e Pedagogia.”A casa-museu com o seu nome estava fechada e por isso não a pudemos visitar. Associa-se também a Salamanca a obra clássica da escrita Picaresca, o anónimo “Lazarilho de Tormes.”  Há  também uma simulação de loja massónica com os objetos que o governo franquista, inimigo desta organização, foi apreendendo. Mas não tivemos tempo de vistar desta vez. 

Referências

[1] Ricardo Garcia Herrero, Susana González. Salamanca : Vive y Descubre. Everest, 2000.  

[2] Francisco Gomes. Tampoco se hicieron con sangre de toro. El Norte de Castilla. 7 de agosto de 2016. https://www.elnortedecastilla.es/salamanca/201608/07/tampoco-hicieron-sangre-toro-20160807122453.html  (acedido 2 de janeiro de 2024). 

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