Passeios Químicos em Braga

[Aproveitando que estava a participar no congresso SciCom2024, que se realizou este ano na Universidade do Minho, e que fui convidado para organizar um passeio químico em Braga, em setembro próximo, no 2º Congresso da Associação Portuguesa de Professores de Física e Química, e já pensando que, em 2025, Braga será a Capital Portuguesa da Cultura, tirei algumas fotografias e realizei as reflexões que se seguem]


Braga tem mais de dois mil anos de história e uma grande quantidade de interesses patrimoniais, culturais e ambientais. Em particular, há uma grande variedade de guias e trabalhos sobre a cidade, dos quais refiro na bibliografia uma parte dos que consultei para este trabalho (Azeredo, 2008; Costa, 2013; Oliveira, 2014; Sousa, 2016). Há também guias de percursos pedonais da Câmara Municipal de Braga que estão online (Bonus, 2017).

Começo este passeio pelos aspetos ambientais, em particular, sobre a água. Para que uma cidade seja viável é necessário que tenha água suficiente disponível. Em Braga há bastante água, no passado essa disponibilidade era mais devido aos sítios altos que rodeiam a cidade do que devido à água que corre nos rios que estão à sua volta. Entretanto, atualmente, a água de consumo humano é captada no Rio Cávado (Agere, 2024), enquanto que as nascentes que rodeiam a cidade, nomeadamente proveniente do Parque das Sete Fontes, continuam a abastecer os fontanários públicos (Lopes, 2022). Mas lá iremos, por agora quero falar da água proveniente das nascentes em sítios elevados. 

Nunca tinha pensado com atenção na razão porque parecia haver mais água nas montanhas. A minha primeira ideia - algo ingénua - seria que haveria água em toda a parte, mas que só os sítios altos seriam úteis para que essa água descesse por gravidade. Ora, uma consulta dos trabalhos que foram feitos e escritos sobre o assunto mostra que essa ideia estava errada. A explicação corrente é de que este líquido transpira das plantas e evapora dos rios e mares, ficando na atmosfera como vapor. Entretanto, a quantidade de água máxima no estado vapor só depende da temperatura. Por outro lado, a densidade menor do ar quente faz com que este suba, indo condensar nas montanhas e sítios altos que se encontram a temperaturas mais baixas. o meu “erro” mostra, em parte, como funciona a ciência. Estudamos o que fizeram os outros investigadores antes de nós e propomos explicações para os acontecimentos que podemos testar. 

Bastantes vezes (quase sempre) muitas pessoas já estudaram os assuntos, fizeram experiências sobre eles e realizaram revisões que mostram que foi atingido um consenso, o qual já está muitas vezes nos livros de texto (como acontece neste caso concreto). Mas, imaginemos, por hipótese, que eu persistia na minha ideia e queria verificá-la. Teria de desenhar uma experiência robusta para a verificar e deveria comparar com as hipóteses alternativas. O normal será que, com essa experiência, eu confirme o consenso e deveria ficar por aqui, mas, imaginemos de novo, que que obtenho que “tenho razão” na minha ideia. Depois de verificar tudo, vou tentar publicar o trabalho. 

É aqui que os revisores são mais importantes. Se houver um que descubra falhas no trabalho, eu deveria, mais uma vez, ficar por ali, mas imaginemos, de novo, que os revisores fazem eco do consenso e não me convencem. Devo ficar por aqui? O bom senso diz-me que sim, mas um bom cientista é persistente e podem acontecer duas coisas: eu efetivamente tenho razão (o que é muito pouco provável), e devo estar preparado para, mesmo fazendo as experiências mais engenhosas, não ter inicialmente adeptos, embora ao longo do tempo acabe por convencer algumas pessoas de que o consenso anterior tinha problemas. Ou então, persisto na minha ideia contra todos (mesmo estando errado). 

O primeiro caso é o dos cientistas de sucesso que mudaram a forma de ver o mundo e que, por vezes, ficam na história da ciência, o segundo é dos cientistas que se concentram nas franjas do conhecimento e podem ficar na história da ciência pela má de razão de insistir num “erro”. Ambos os tipos, se tiverem estudantes que seguem as suas ideias, acabam por criar nichos que se espalham ou que terminam com eles. Tudo isto, relembro, devido uma ideia errada, mas a ciência avança com a liberdade para errar e corrigir os erros. Entretanto, se as minhas experiências reforçarem o consenso, também estão a contribuir para a robustez da ciência. A maior parte das experiências científicas são nesse sentido. Por exemplo, eu poderia reformular o meu trabalho para aplicar o consenso à dinâmica da água numa determinada montanha que ninguém ainda tinha estudado. Provavelmente não teria problemas em publicar o trabalho. Não seria um grande avanço, mas seria um pequeno passo para reforçar a robustez da ciência e o conhecimento. Entretanto, no processo de aplicação do consenso poderiam surgir dúvidas e voltaria ao princípio. Não me parece, pois o consenso é bastante robusto e vou tomá-lo como certo. De facto, o que as pessoas do público em geral veem são os consensos atingidos e por isso a ciência parece paradoxalmente dogmática, mas não é!     

De acordo com o consenso, forma-se água no estado líquido nos sítios altos devido à diminuição de temperatura, que por gravidade desce para os sítios mais baixos. Estes fenómenos são aproveitados com engenho em Braga, sendo, por exemplo, o funicular do Bom Jesus do Monte movido por um sistema e pesos e contrapesos que usam a massa da água. Por outro lado, no Parque das Sete Fontes, a água desce para os fontanários da cidade. Mas se a água do funicular não se destinava a ser bebida, a dos fontanários foi bebida até ao princípio do século XX. 

A água das fontes e nascentes, antes do tratamento com cloro, só conseguia a sua pureza nas filtrações, que eram feitas tanto de forma artificial como natural. Nesses filtros naturais acumulam-se filmes de bactérias que “limpam” a água. Mas esses processos são muito falíveis pois não asseguram a proteção contra bactérias patogénicas ao longo da rede, o que é conseguido pela adição de ião hipoclorito. Mas a Química tem uma intervenção maior, nomeadamente, na análise da composição da água, verificação e correção da sua acidez e turvação, por exemplo. Como referi, a água para consumo humano da cidade de Braga é captada no rio Cávado (Agere, 2024). Não fui à ETA (Estação de Tratamento de Água), mas tenho grande certeza de que a água é rigorosamente vigiada e que os tratamentos e correções realizados são no sentido de acelerar os processos naturais de purificação e de reforço da proteção contra contaminações ao longo da rede.  

O abastecimento de água a Braga sofria de escassez crónica desde o século XIX (Cordeiro, 2018), mais do que isso, de problemas de salubridade, em particular era foco de epidemias de febre tifóide de que é dado conta em 1901, mas também em 1960 (Cordeiro, 2018). Hoje pode parecer absurdo falar-se de febre tifóide, mas esta doença era infelizmente comum devido às fontes não vigiadas. É preciso não esquecer que esta doença matou um rei português, D. Pedro V, em 1861, e alguns dos seus primos, os quais, ao irem caçar em Vila Viçosa, beberam água de uma fonte contaminada ficaram doentes, acabando por morrer (Rodrigues, 2022). Foi tal o tumulto popular, achando que o rei tinha sido envenenado, que no órgão oficial (que está agora online) foi descrita com todos os detalhes a autópsia do príncipe D. João, a qual teve a participação dos melhores Médicos e Químicos portugueses (Rodrigues, 2022).

Li (não me lembro da referência) que um estudo dos anos trinta do século XX estimava que nas Sete Fontes brotariam 500 mil litros de água por dia. Ora isso é muito pouco nos dias de hoje (em que uma pessoa em média usa 200 litros de água). Assim, estimo que a água das Sete Fontes daria para cerca de duas mil e quinhentas pessoas. Entretanto, a ETA do Cávado tem uma produção diária de cerca de trinta e dois mil metros cúbicos de água (Agere, 2024), permitindo abastecer, assim, cerca de 160 mil pessoas. Com cerca de 3600 metros de condutas, tem cerca de 2250 metros de galerias subterrâneas, nascentes ou mães de água e caixas de distribuição, e desde 2011 é Monumento Nacional (Fontes et al., 2021).

Para a preparação do Passeio Químico no Parque das Sete Fontes, além das questões das quantidades e tratamento da água, olhei com mais atenção para as plantas presentes e para a sua química. Entre as várias que encontrei, chamaram-me a atenção o embude, a dedaleira, a celidónia maior e vários sobreiros selvagens. Do embude, uma planta venenosa comum, falarei mais à frente. A dedaleira é também comum e facilmente identificável pelos seus “sinos” púrpura. É a fonte de um glícosídio com efeitos cardíacos que é ainda usado atualmente em medicina, mas não tem, segundo a literatura, aplicações ancestrais. A celidónia maior é uma planta também comum e facilmente identificável pelas suas flores amarelas e caules que, ao serem quebrados, libertam uma seiva amarela. Alguns usos tradicionais são externos como cicatrizante e cáustico. A minha avó chamava-a “erva das verrugas” que é outro dos nomes tradicionais.  

Visitei, um pouco por acaso, a Igreja de Santa Cruz, que tinha sido restaurada há pouco tempo (Ferreira, s.d.). As folhas de ouro estavam resplandecentes nesta igreja. É o que acontece quando são aplicadas folhas de ouro novas, pois, embora o ouro não reaja com o oxigénio e com outros compostos que estejam na atmosfera, ao longo dos anos, com a acumulação de gorduras, pó e outras sujidades, a superfície deste metal vai ficando baça. As folhas de ouro têm uma espessura típica de um décimo de milímetro e são demasiado frágeis para que a limpeza seja um processo útil. Que eu saiba, são aplicadas novas folhas de ouro no restauro. Note-se que, embora o ouro tenha uma densidade de cerca de 19,4 gramas por mililitro, ou seja um litro de ouro tem de massa 19,4 quilogramas, um metro quadrado coberto com folha de ouro pesaria cerca de 20 gramas e portanto não teria qualquer interesse para hipotéticos “criminosos” roubar folha de ouro que esteja aplicado em igrejas.  

Os monumentos de Braga são quase exclusivamente feitos de granito. Trata-se de uma rocha variável nas cores e composição, mas é mais ou menos assente que é quartzo (o mesmo componente da areia, óxido de silicio, SiO2), feldspato (mais complexo em termos de composição, (Na, K, Ca)(Si, Al)4O8, mas que é também um óxido, neste caso de vários elementos) e mica (vários tipos de minerais da família dos filossilicatos, que são caraterizados por terem em geral camadas de sílica e serem brilhantes; escuros se forem de moscovite, por exemplo, mas rosa, se forem de lepidolite, por exemplo, uma fonte secundária de lítio). 
O grão do granito é muito grande e não podem ser feitas esculturas complexas com este material, mas na fachada da Igreja de Santa Cruz e noutros locais é feito um aproveitamento bastante interessante das limitações e potencialidades deste material. No Santuário do Bom Jesus do Monte, chamou-me a atenção a fonte do pelicano que reproduz a lenda de que esta ave pica o seu próprio coração para alimentar os filhos. Reparei ainda noutras fontes, em particular as que tinham um aviso de que a água era imprópria para consumo. A água pode vir naturalmente de nascentes e mesmo assim ser imprópria para consumo por estar contaminada, sendo em geral estas contaminações de origem biológica, mais do que de origem química. Mas só as análises químicas e bacteriológicas permitem ter a certeza.  

O granito que vi é ligeiramente castanho e esverdeado, talvez também devido à presença de microrganismos. Entretanto, ainda no Santuário do Bom Jesus do Monte, reparei em quatro colunas de granito cinzentas que pareciam diferentes. Inicialmente, pensei ser algum tipo de calcário. No entanto, ao me aproximar reparei que poderiam ser, de facto, de outro tipo de granito, ou poderiam ser desta cor por estarem limpas; não consegui confirmar. Há uma história sobre a dificuldade de transporte destas colunas para o cimo do santuário, mas também não desenvolvi o seu conteúdo. Notei, ainda na Basílica, algumas aplicações de tinta muito branca. São claramente de tintas modernas cujo pigmento é o dióxido de titânio e permite brancos ainda mais brilhantes do que a cal.  

Ainda no Santuário do Bom Jesus do Monte, reparei nos azulejos da Casa das Estampas, nos azulejos coloridos de um edifício do lado direito, nas grutas fingidas ao gosto romântico, nos lagos artificiais, onde se pode andar de barcos a remos, no terreiro dos evangelistas e nos sobreiros, pintados a branco com o último número do ano em que lhes foi retirada a cortiça (2023). O funicular do Bom Jesus do Monte, que funciona com o peso da água, como já referi, foi o primeiro da Península Ibérica. Camilo Castelo Branco adorava o local (Peixoto, 2008; Gomes, 2014), tendo um dos seus livros o nome do santuário (pode ser encontrado online; está em domínio público). 

Como já referi, Camilo gostava bastante do local e voltava sempre que podia, mas em várias cartas queixou-se das pulgas e percevejos (Braga, 2015). Estes insetos que importunavam Camilo podem ser motivos de outras reflexões. Poderíamos pensar em falta de higiene, e, em parte, talvez fosse, mas podemos também ver as coisas noutra perspetiva (Rodrigues, 2022). Os inseticidas que havia na altura de Camilo eram muito perigosos (usavam, por exemplo, arsénio, e não seria sensato usá-los em camas). Só com o aparecimento, primeiro do DDT (diclorodifeniltricloroetano), em 1939, e depois das permetrinas, em 1986 (inspiradas em compostos dos crisântemos), foi possível fazer um controle mais seguro destas pragas, ao ponto de muitas pessoas nunca terem visto uma pulga ou um percevejo.   

Uma nota breve sobre os autocarros elétricos que vi em Braga. Com a eletricidade obtida de formas renováveis e sem produção de dióxido de carbono, estes permitem retirar os gases de combustão das cidades e diminuir os gases que aumentem o efeito de estufa, em geral. Entretanto, será necessário melhorar as suas baterias, fazer investigação e ter desenvolvimento sobre a sua reciclagem e produção, entre muitas outras coisas. Não entrei num desses autocarros, mas consigo imaginar as maravilhas da técnica que encerram: os estofos (provavelmente de algum polímero), os vidros com os seus revestimentos e métodos de produção, os pneus, os anúncios e ecrãs, etc. Na verdade, qualquer coisa que nos rodeie, mesmo já mais antiga, permite-nos algumas reflexões sobre a ciência e a técnica, as quais assentam em centenas ou milhares de anos de desenvolvimento humano.        

Por exemplo, os vitrais que reparei na Sé: de que serão feitos? Como foram feitos? Os cataventos de ferro forjado que podemos ver por toda a cidade: de que são feitos? As misturas de novos e velhos materiais são também desafiantes. É um nunca acabar de possibilidades que, parecendo invisíveis, são relevantes e envolvem desenvolvimentos complexos, assim como a colaboração de centenas de pessoas, alguns delas químicos.

As pessoas em Braga já se habituaram ao INL (Laboratório Ibérico de Nanotecnologia), mas pareceu-me muito curioso o testemunho de um jovem investigador que assinalou a estranheza inicial das pessoas. Este referiu que inicialmente houve alguma desconfiança em relação a este edifício que ocupou o espaço da Bracalândia (parque de diversões que funcionou de 1992 a 2007). Além de ser um edifício muito fechado e de acesso restrito, prometia fazer investigação ao nível atómico, o que “parecia perigoso”! O edifício que pude ver é muito elegante, sendo os vidros enormes duplos e temperados (o que se pode ver com óculos polarizados). Fica ao lado do rio Este, onde a água flui de forma relaxante. Ao lado deste rio, há um passeio bastante agradável, que é aproveitado pelas pessoas para correr ou passear. Chamou-me a atenção um cartaz com as plantas autóctones que não tem uma muito comum, o embude, que se encontra ao longo do rio. Faz sentido, uma vez que é uma planta muito venenosa de Portugal, mas dá uma ideia errada do nosso país. Foi a raiz dessa planta que dois caminheiros comeram e morreram, pensando que era a a raiz de uma cenoura selvagem. A planta é muito comum e vamos encontrá-la também em grande quantidade no Parque das Sete Fontes que já referi.

Antes de abandonar este caminho, queria chamar a atenção para os postes de eletricidade e os seus isoladores. É mais uma coisa em que raramente reparamos, mas os humanos são ávidos de energia e estas instalações lembram-nos bem disso. Aqui queria chamar a atenção para os materiais de que são feitos os postes e os isoladores. O aço anodizado (ou seja recoberto de zinco) e o vidro dos isoladores e o metal dos cabos elétricos. E o que é conduzir eletricidade? É permitir a passagem de eletrões, algo que é feito muito facilmente pelos metais, mas não pelo vidro que é constituído por vários materiais que não permitem o fácil fluxo dos eletrões, como o silício. Curiosamente, o silício dopado com alguns metais pode ser usado como semicondutor o que está na origem da eletrónica moderna. 
Também os cabos condutores de eletricidade são relevantes. A passagem de eletricidade a temperatura ambiente origina sempre perdas de energia por aquecimento (conhecido como efeito de Joule). Isso pode ser minimizado de duas maneiras. Aumentando muito a diferença de potencial, ou seja conduzindo a eletricidade usando altas voltagens, e escolhendo os metais melhores condutores. O melhor condutor é a prata, mas não se está a imaginar que os cabos sejam de prata. Isso pode ser feito em microeletrónica, mas não em grandes instalações, onde o seu uso seria demasiado caro. O segundo melhor metal é o cobre, mas mesmo esse começa a ser demasiado caro e a ser limitado o seu uso. Segundo percebi, usam agora alumínio (pelo menos em parte) e os cabos estão protegidos por um revestimento de plástico.     

Há muitos autores que nasceram em Braga, ou que aqui viveram, que valerá a pena referir, mas vou falar apenas de Francisco Sanches (1550-1622) e Pero de Magalhães Gândavo (ca. 1540-ca. 1580) pelas evocações sobre a ciência que suscitam. O primeiro é de origem judaica, cristão-novo, penso que antepassado do médico Ribeiro Sanches, e também, como este, de fama internacional; médico e filósofo, professor na universidade de Toulouse e autor de uma notável obra (ver e.g. Maia, 2003). Em Braga podemos encontrar uma sua estátua. A sua atitude cética, mas ao mesmo tempo observacional e experimental, irá antecipar várias ideias que iremos encontrar, por exemplo, em Bacon e Descartes (Maia, 2003). Sanches nasceu algures na comarca de Braga ou perto (o próprio refere que nasceu em Túi), mas foi batizado em Braga. Realizou nesta cidade os estudos primários, tendo, perto dos doze anos, rumado a Bordéus, onde tinha família. 
Estudou nesta cidade durante a adolescência e esteve, em seguida, em Roma quatro anos. Rumou, mais tarde, a Montpellier, onde se formou em medicina. Instalou-se a seguir em Toulouse onde foi professor de medicina, mas nunca deixou de exercer esta ciência e realizar dissecação em cadáveres e se manter atualizado. Aparentemente nunca foi incomodado pela Inquisição e teve a sorte de se movimentar em círculos progressistas e abertos. Em Roma, terá apanhado a abertura do Renascimento, em Montpellier a liberdade do cosmopolitismo e em Toulouse viveu num ambiente livre de opressão e nunca teve de fugir. Podemos comparar a sua vida com a de Amato Lusitano, médico português que teve de fugir para evitar ser perseguido, ou Garcia de Orta que gozou em Portugal de alguma liberdade, mas que acabou por ser perseguido na Índia, tendo os seus ossos sido queimados.          

Por outro lado, Gândavo embora fosse de origem flamenga  irá também nascer em Braga. É o autor da notável “História da Província de Santa Cruz” (o Brasil), que é um livro com uma atitude vincadamente experimental, mas que mistura elementos fantasistas. Sebastião Silva Dias (1988), dá especial atenção ao exemplo do método seguido para explicar de forma experimental a produção de âmbar cinzento pelos cachalotes. Infelizmente, a observação rigorosa e experimental que Gândavo descreve, envolve um conjunto de problemas que o empirismo ingénuo não permite resolver e a explicação acaba por se revelar incorreta. De facto, embora a formação de âmbar cinzento esteja relacionada com a alimentação e este material seja expelido no sistema digestivo, a sua produção pelos cachalotes não está relacionada diretamente com o que é comido, mas com uma reação ao que é comido: este é segregado pelo animal como resposta à alimentação baseada em lulas. Na minha opinião, este livro, e esta passagem em particular, é um exemplo das potencialidades das observações empíricas realizadas nas viagens dos portugueses. Do muito conhecido “dar novos mundos ao mundo”. Mas, sem que houvesse continuidade e contraditório, sem um ambiente livre e estimulante, em que se publicavam facilmente os resultados, rapidamente se extinguiu. Ficou a ideia das velhas glórias emolduradas e amarelecidas no cárcere de miséria em que se transformou Portugal. Felizmente, agora não é assim.

E, contrariamente ao que é dito por vezes, na minha opinião Portugal não é um país pobre e tem muito potencial para ser um país mais rico. É certo que tem acumulado dívidas desde há séculos e não se desenvolveu culturalmente até há umas décadas atrás – chegou ao final do século XIX com 80% de analfabetismo e a 1974, ainda, com 25% de pessoas sem saber ler e escrever. Mas tem, e sempre teve recursos minerais (uma maldição, quando não há cultura), e agora as maiores riquezas de entre todas: as do conhecimento e da cultura que tem trazido a escolaridade.   

Estas são algumas das reflexões que me suscitou o que vi em Braga. Estou a melhorá-las e acrescentar novas coisas.  [atualizado a 29 de junho de 2024]

Bibliografia

Agere. Água de consumo. https://agere.pt/agua-de-consumo/ (acedido a 20 de maio de 2024)

Azeredo, António Carlos de. Braga: Bracara Augusta, dois milénios de história. Caminhos Romanos, 2008. 

Bonus. Rede de Percursos Pedestres de Braga. Câmara Municipal de Braga, 2017. https://www.cm-braga.pt/archive/doc/Guia_Percursos_de_Braga.pdf (acedido a 25 de maio de 2024).

Braga, João Paulo. Coração, cabeça, estômago… e um par de calças! Correio do Minho. 18 de março de 2015. 

Cordeiro, José Manuel Lopes. História do Abastecimento de Água a Braga (1913-2013). Braga: Agere, 2018.

Costa, Margarida. Adoro conhecer Braga. Associação Comercial de Braga, 2013.

Ferreira, Rui. A Igreja de Santa Cruz. Irmandade de Santa Cruz, s.d.  

Fontes, Luís; Braga, Cristina; Pimenta, Mário; Guerreiro, Maurício. Sete Fontes : o sistema de captação de água da cidade de Braga (séculos IV-XX). Braga, 2021.

Gomes, Joaquim da Silva. O penedo do amor colocado no Bom Jesus. Correio do Minho, 21 de abril de 2014. https://correiodominho.pt/cronicas/o-penedo-do-amor-colocado-no-bom-jesus/15701 (acedido 12 de maio de 2024)

Lopes, Alexandre. Sete Fontes. 12 de julho de 2022. https://aguasesaneamento.pt/outros/colunistas/sete-fontes/ (acedido a 20 de maio de 2024)

Maia, Idalina . O problema do conhecimento em Francisco Sanches. Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2013.

Oliveira, Eduardo Pires de. Segredos de Braga: Braga top-secret. Centro Atlântico, 2014.

Peixoto, José Carlos Gonçalves. Camilo Castelo Branco no Bom Jesus do Monte. 13 de maio de 2008. https://historiaporumcanudo.blogspot.com/2008/03/camilo-castelo-branco-no-bom-jesus-do.html (acedido 12 de maio de 2024)

Rodrigues, Sérgio P. J. Química e Saúde Pública: Elementos da História de uma relação fundamental. Revista Multidisciplinar 4(2), 57-74, (2022), https://doi.org/10.23882/rmd.22087

Silva Dias, José Sebastião da. Os Descobrimentos e a problemática cultural do século XVI. Presença, 1988.

Sousa, Rogério. Guia simbólico do Bom Jesus: Paixão e alquimia no monte sagrado de Braga. Cronos, 2016.