Passeio Químico em Espinho


[Fui realizar uma palestra à Escola Manuel Laranjeira sobre a Química e os Objetivos do Desenvolvimento das Nações Unidas e, pelo caminho, consegui passar no  Museu Municipal desta cidade e tirar algumas fotos para um rascunho de um Passeio Químico. O convite foi feito pela professora Ana Maria Tavares que desenvolveu o tema com os estudantes. Entretanto, comunicou-me - eu não sabia! - que 16 de junho, o dia em que disponibilizei o Passeio Químico, era o dia da cidade de Espinho!]

As praias de Espinho são famosas, mas não é delas que irei falar. A cidade é relativamente recente e cresceu a partir da maior procura das férias nas praias, que surgiu durante o Liberalismo em Portugal, com a ideia de que o banho de mar era bom para a saúde. Visitei o Museu Municipal, que foi a antiga fábrica de conservas “Brandão, Gomes” (1) e a Escola cujo patrono é Manuel Laranjeira (1877-1912). Começando por este último, perguntei aos estudantes se sabiam de que este tinha morrido. Suicidou-se com um tiro, mas estava aparentemente deprimido e debilitado por sofrer de várias doenças.  

Alguns estudantes lembraram-se da tuberculose. Sim, também tinha tuberculose, aliás como outro médico escritor, Joaquim Gomes Coelho, que usou o pseudónimo de Júlio Dinis. Durante o seu tempo,  e até aos anos 1950, era uma doença, em geral, incurável. Mas, Manuel Laranjeira tinha também sífilis, que era bastante comum na altura. Esta última doença não era, em geral, mortal, mas podia ser incapacitante e conduzia, muitas vezes, nos seus estágios finais, à loucura. E amiúde, a transmissão da doença não era por via sexual direta, contrariamente à ideia que a sociedade tem de que a doença tem algo a ver com uma vida dissoluta. Podia, por exemplo, ser a ama que a transmitia ao bebé que a transmitia à mãe e esta ao pai. Ou podia transmitir-se, no parto, da mãe para o filho. Felizmente, a doença é muito sensível à ação dos antibióticos. E, assim, com o seu tratamento e com a profilaxia, de que foram pioneiras as instituições militares, quase desapareceu. Mas, antes destes tratamentos, para combater a loucura, chegou a ser usada a malarioterapia (conhecida também por piroterapia) que foi alvo do Prémio Nobel da Fisiologia ou Medicina, de 1927, de Julius Wagner-Jauregg. Nessa altura, os hospitais psiquiátricos tinham mosquiteiros para inocular malária! Porque referi tudo isto? Porque um dos objetivos do desenvolvimento das Nações Unidas é a Saúde (objetivo três) e porque é preciso reconhecer que a Química trouxe muitas melhorias para a saúde pública (Rodrigues, 2022a). 

Para a tuberculose, para a sífilis e doenças mentais temos atualmente tratamentos que não havia no tempo de Manuel Laranjeira, embora ainda existam várias dificuldades. Um outro problema que temos hoje são as diferentes velocidades na evolução da medicina. Nos países desenvolvidos, a tuberculose e a sífilis são residuais, e procura-se desenvolver a medicina personalizada, com moléculas cada vez mais especificas, para doenças complexas, ao mesmo tempo que muitas das doenças são devidas à abundância e ao sedentarismo. Por outro lado, nos países menos desenvolvidos e envolvidos em guerras e catástrofes, são comuns a tuberculose, a SIDA e a malária, as quais são  classificadas como doenças negligenciadas. Para melhorar a saúde tanto de uns como de outros, precisamos, além de novas moléculas e tratamentos, de outros desenvolvimentos (os objetivos do desenvolvimento das Nações Unidas acabam por estar todos ligados). A diminuição da pobreza (objetivo um), fim da fome (objetivo dois), ter água de qualidade e saneamento (objetivo seis), estão claramente relacionados com a melhoria da saúde (objetivo três, como já referi). De facto, melhor qualidade de vida é conseguida primeiro com melhor alimentação, depois com higiene e, só finalmente, com melhores tratamentos para as doenças. E todos os objetivos do desenvolvimento das Nações Unidas estão, direta ou indiretamente, relacionados com a Química, como já referi, (Rodrigues, 2018; 2022b). 

Em particular, a educação de qualidade (objetivo quatro) e a igualdade de género (objetivo cinco), parecem não ter nada que ver, mas têm: maior educação leva ao desenvolvimento e maior autonomia, liberdade e igualdade. Um exemplo que costumo apontar é o do Prémio Nobel da Química de 1965, Robert Woodward, que só foi para a universidade devido a ter uma bolsa. Mais exemplos poderia apontar como o de Frederick Sanger (agraciado com dois prémios Nobel da Química, 1958 e 1980). Um outro exemplo, é de Gertrude Elion, Prémio Nobel da Fisiologia ou Medicina em 1988. Esta começou a sua investigação durante a Segunda Guerra Mundial, quando se tornou mais fácil às mulheres participarem nessas atividades. Hoje em dia, a igualdade de género é mais ou menos assente no mundo, nas até meio da segunda metade do século XX, havia muitos preconceitos em relação às mulheres na investigação e desenvolvimento. O aumento da cultura das populações traz melhorias de qualidade de vida. Infelizmente, Portugal, um país que nunca foi pobre em recursos, não desenvolveu a sua maior riqueza que era o conhecimento e desde há séculos que se apresenta como um país pobre. Mas a sua pobreza continuada tem sido devida à falta de conhecimento. No final do século XIX a percentagem de analfabetismo era de 80% (aproximadamente 70% para os homens e 90% para as mulheres). As desigualdades eram enormes.

As elites que procuraram desenvolver o país, com boas intenções, é certo, mas nunca conseguiram resolver este problema básico, talvez por nunca o terem enfrentrado a sério e por, muitas vezes, aceitarem as ideias de inferioridade dos portugueses de forma acrítica. Radica aqui o aparente paradoxo de um país considerado pobre em termos médios, produzir e ter, por vezes, coisas semelhantes às dos países ricos e cultos. As elites estavam imersas numa cultura semelhante à dos paises ricos, enquanto que o resto do país vivia na pobreza e incultura. Ora as elites nunca perceberam claramente, até quase ao fim do século XX, que essa desigualdade era devida essencialmente à Escola. Com educação de qualidade para todos, diminui-se a pobreza e as desigualdades de género, melhoram-se as condições de trabalho, etc.         

No Museu Municipal há bastante destaque para a pesca usando a arte xávega. Esta forma de pesca, que envolve estender uma rede no mar que é puxada para terra, foi, e continua a ser praticada, em todo o país, mas na região de Espinho e Ovar é especialmente conhecida. Os pescadores são conhecidos como vareiros. Ao procurarem em Lisboa melhores condições de vida causaram muta impressão às elites. As mulheres que vendiam peixe ficaram conhecidas como "varinas." Até meados do século XX, não existiam polímeros sintéticos. Os plásticos (alguns tipos de polímeros sintéticos) vieram substituir as bóias de vidro e de cortiça e tornar as redes de pesca mais resistentes. 

No museu podemos ver que as redes, cordas e bóias, mesmo as antigas, já têm esses desenvolvimentos. Mas nem tudo é bom, claro. A utilização de redes, bóias e cordas de nylon, e outros plásticos, veio contribuir para o lixo marítimo de plástico. Sabemos hoje que é a longevidade e a resistência destes materiais que faz com que estes sejam problemáticos. Em particular, as principais contribuições para o lixo plástico marinho são as redes que “continuam a pescar” depois de perdidas. Mas hoje em dia, sabemos muito mais coisas. O desenvolvimento de plásticos biodegradáveis pode melhorar muito estes aspetos problemáticos. E tenho de referir que a arte xávega contribui relativamente pouco para o lixo marinho (a maior contribuição é da pesca industrial), mas, mesmo assim, é relevante.

As salas do Museu mostram a forma como se vivia nas casas dos pescadores. Uma das coisas que salta à vista é a falta de água canalizada. Mas não são só os pescadores que tinham essa falta. Toda a população se abastecia de água nas fontes e nascentes que por vezes estavam contaminadas e contribuíam para epidemias e para a grande mortalidade infantil e juvenil. A juntar a isto, temos que o saneamento era deficiente e a conservação dos alimentos era feita de forma rudimentar. Como já referi, e vale a pena referir de novo, a água canalizada, o tratamento da água, o saneamento e os métodos de conservação dos alimentos vieram contribuir em muito para a melhoria da saúde pública (Rodrigues, 2022a).    

Umas notas sobre a fábrica de conservas “Brandão, Gomes e Companhia Lda”. Esta fábrica estendia-se quase até ao mar e fazia muitas outras conservas além das de peixe. Já falei sobre este tipo de fábricas em Portimão. Aqui, queria referir uma história que é contada por Morais Gaio (1984), a qual ilustra bem a falta de cultura das populações e a sua vontade de desenvolvimento. Os vareiros viam que um francês e os seus criados tinham sardinhas todo o ano, mas não percebiam como. Até que um vareiro mais “indiscreto” conseguiu perceber que isso tinha a ver com a conservação do peixe em salmoura.
Já expliquei várias vezes como o sal pode conservar os alimentos, mas fá-lo-ei de novo. As bactérias típicas não podem viver em altas concentrações de sal pois a pressão osmótica faz com que a água que está no seu interior saia para equilibrar as concentrações de sais no interior e exterior. Assim, as bactérias morrem por “falta” de água. De uma maneira geral é o que acontece ao se espalhar sal sobre alimentos para os conservar. Voltando à história das sardinhas conservadas em salmoura. Contada num livro sobre a fábrica de conservas, parece ligar-se com as lendas da sua criação, e mostra como a vontade de conhecimento faz avançar as coisas, mas também mostra como a falta de escolas pode retardar o desenvolvimento por não propiciar a abertura de horizontes. Felizmente, tudo isso é passado, mas é importante lembrarmo-nos que as nossas maiores riquezas são a cultura e o conhecimento.

(1) Ver, por exemplo, Morais Gaio (1984). O nome parece estranho e por vezes aparece sem vírgula, mas o nome completo da firma era “Brandão, Gomes & Companhia Lda.”

 Morais Gaio (1984). Fábrica de conservas "Brandão, Gomes" : fragmentos da memória de Espinho. Nascente – Cooperativa de Ação Cultural. 

Rodrigues, Sérgio P. J. (2018). Acerca das contribuições da química para os objectivos de desenvolvimento sustentável das Nações Unidas. Atas do III Congresso Internacional Educação, Ambiente e Desenvolvimento. Instituto Politécnico de Leiria, Leiria.

Rodrigues, Sérgio P. J. (2022a). Química e Saúde Pública: Elementos da História de uma relação fundamental. Revista Multidisciplinar 4(2), 57-74,  https://doi.org/10.23882/rmd.22087

Rodrigues, Sérgio P. J. (2022b). Acerca das Contribuições da Química para os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável das Nações Unidas – Atualização de 2022. Em Meio ambiente: princípios ambientais, preservação e sustentabilidade 3. Atena, pp.1-12.