Em 2011, no Ano Internacional da Química, a convite o Centro de Ciência Viva da Floresta (CCVF) de Proença-a-Nova realizei um passeio químico por Proença-a-Nova para o qual tive o apoio e colaboração de vários dos membros do Centro, em particular da Catarina Antunes. De facto, o passeio foi delineado sem que eu tivesse estado previamente em Proença, a partir das fotografias e percurso sugerido, num total de mais de quarenta paragens. Por várias razões, nomeadamente falta de tempo, a publicação do texto distribuido aos participantes no passeio, e as fotos do passeio ficaram inéditos. Faço agora essa publicação, com algumas adaptações, mantendo a coloquialidade e o diálogo que se conseguiu no passeio, agradecendo aos membros do CCVF que cederam as fotos e ajudaram a delinear o percurso.
O percurso iniciou-se no Parque do Comendador João Martins e contou com um bom número de participantes. A primeira paragem foi junto a um salgueiro-chorão. Os salgueiros estão ligados a um dos primeiros fármacos semi-sintéticos, que é também um dos mais bem sucedidos: o ácido acetilsalicílico, conhecido como aspirina. Da descoberta das propriedades medicinais da casca desta planta, passando pelo isolamento da salicina e do ácido salicílico, até à síntese do ácido acetilsalicílico, este medicamento faz-nos um resumo da história da química medicinal. Hoje em dia são aprovadas cerca de quarenta novas entidades farmacêuticas por ano (ou de forma sucinta, fármacos), sendo que de de 1981 a 2014 foram aprovadas 1562. Esta realidade corresponde a milhares de potenciais fármacos que ficaram pelo caminho nas várias fases do desenvolvimento ou dos testes clínicos. Desses 1562 fármacos, mais de metade são de origem completamente sintética, sendo a sua descoberta baseada na pesquisa em bases de dados de moléculas (algumas previamente não existentes) com critérios que vão das relações entre actividade e estrutura até a qualidade da ligação a proteínas que são alvos terapêuticos. A outra metade, é baseada ou inspirada em fármacos naturais, podendo ser semi-sintética. Embora a origem natural seja ainda uma fonte potencial e importante de fármacos, a maioria dos mais recentes não tem origem natural.
Em seguida, passámos junto a uma tília, cujas flores são bem conhecidas pelas propriedades medicinais que se lhe atribuem. Ao longo dos tempos têm sido identificados os seus inúmeros constituintes e verificado que alguns têm efeito calmante, anti-espasmódico e diurético. A descoberta de moléculas naturais eficazes como fármacos ou com outras funções é muito importante, como referido acima. Mas não é por ser natural que o chá de tília está isento de riscos. Há indicação de que deve ser evitado por cardíacos e, claro, por grávidas e bebés. Com o calor notam-se as suas folhas cobertas de óleos essenciais que fazem parte da protecção desta planta contra a perda de água. Algumas variedades híbridas de tília são muito sensíveis aos afídeos que extraem e armazenam esses óleos e são “pastoreados” pelas formigas, causando por vezes a queda destes no solo. Notem-se as cores das folhas. A que são estas devidas estas cores?
Passámos em seguida junto à estátua do Comendador João Martins. A química estuda e procura controlar e usar as propriedades dos materiais, assim como as suas transformações. A ligação entre a metalurgia e a química é por isso muito estreita. A estátua do Comendador é de bronze, uma liga de cobre e estanho que é muito menos maleável do que o cobre. Com o tempo o bronze, assim como o cobre, ficam cobertos com sais verdes de cobre que funcionam como uma camada protectora embora sejam nalguns casos seja ligeiramente solúveis. Note-se os escorrimentos verdes que há por vezes nestes materiais.
O parque tem bastantes outros motivos de interesse químico que na
altura não referi, nomeadamente o chão e os passadiços de tábuas de cor
castanha feitas pelo aglomerado de um polímero com serradura de madeira,
originando um material de elevada resistência e durabilidade; o aço
inoxidável das estruturas dos passadiços e das construções; entre outras
coisas.
Parámos em seguida junto a um ácer. Algumas variedades de ácer são famosas pelas colorações de outono das suas folhas. Nas alturas do ano com mais luz, nas células das folhas há clorofila que é verde e está continuamente a ser formada, carotenóides que são amarelos e antocianinas que têm cores do violeta ao vermelho, dependendo das plantas. Estas antocianinas são uma espećie de protector solar das plantas (que não podem sair do lugar). Quando a produção de clorofila baixa, no outono, as cores dos outros pigmentos tornam-se mais visíveis. Finalmente, quando todos os pigmentos desaparecem, a presença de taninos é responsável pela cor castanha das folhas secas. O ácer foi uma das plantas mais promissoras na pesquisa em larga escala realizada, nos anos 70 do século XX, por princípios activos anticancerígenos. Foi nessa altura que se descobriu, no tronco de uma espécie relativamente rara de teixo, o taxol, o qual é agora sintetizado a partir de um composto extraído das folhas do teixo vulgar. A sua produção é semi-sintética, a partir de uma origem renovável, evitando-se a destruição da espécie mais rara. Entretanto, o taxol, que é um medicamento ainda muito usado para alguns tipos de cancro, tornou-se um genérico de baixo custo com utilização relativamente baixa, que pode, como outros do mesmo tipo, sofrer, infelizmente e ocasionalmente, de períodos de escassez por não estar a ser produzido, ou a sua produção estar a ser canalizada para os paises que mais pagam por ele.
Tudo
o que se disse sobre as folhas do ácer serve para o liquidambar, assim
como para qualquer outra árvore de folha caduca. E também o liquidambar,
para além da sua beleza, é um pretexto para contar algumas histórias
com química. A primeira envolve o medicamento oseltamivir conhecido pela
marca registada Tamiflu(TM) que é importante no tratamento e profilaxia
da gripe e é um exemplo muito bem sucedido do desenvolvimento racional
de um fármaco. Esse desenvolvimento foi realizado como uma espécie de
puzzle: sabia-se qual o alvo terapêutico do virus da gripe e procurou-se
desenvolver uma molécula que se ligasse o melhor possível a este alvo,
contribuido para a inactivação do virus. A síntese industrial desta molécula começa com um produto natural, o ácido chiquímico, que está presente em todas as plantas, mas se obtém normalmente de uma espécie aparentada ao anis estrelado. No entanto dada a procura anormal, há cerca de um ano, por esta planta, procuram-se outras plantas como fonte deste ácido; o liquidamber é uma das mais promissoras. O ácido chiquímico é fundamental para as plantas produzirem os aminoácidos aromáticos, fenilalanina, triptofano, tirosina e histidina, através do mecanismo do chiquimato. Tratam-se de aminoácidos que os animais não produzem, tendo de ser obtidos de plantas de forma directa, ou indirecta. É este mecanismo que os animais não têm que o herbicida glifosato inibe, levando à morte das plantas. A outra história envolve o nemátodo do pinheiro e fica reservada para quando chegarmos junto dos pinheiros.
Paragem junto a um carvalho americano e referência às bugalhas desta espécie de árvores que estão na origem do nome do ácido gálico. As bugalhas, devido à sua riqueza em taninos (grupo de moléculas de estrutura e dimensão variável que têm na sua estrutura o ácido gálico), foram muito usadas na produção de tinta para as canetas de tinta permanente. O processo envolve sais de ferro que em presença dos taninos originam uma tinta muito escura e solúvel. É de notar que permanente não significa que seja uma tinta que não se apague, mas sim que pode ser usada de forma contínua sem necessidade de tinteiro externo como as penas e canetas de aparo. Estas canetas foram substituídas, em termos práticos, pelas esferográficas e marcadores que usam tintas sintéticas; e também as tintas das canetas de tinta permanente são hoje em dia em boa parte sintéticas. A riqueza de pigmentos e corantes sintéticos existentes é actualmente enorme, mas a tinta da china, obtida do negro de fumo, uma forma amorfa de carbono, tem ainda um papel importante nas tintas negras modernas, no que concerne ao outro conceito de “permanente”: ser durável e não solúvel em água.
Os paineis fotoivoltaicos colocados nas janelas da Câmara Municipal de Proença-a-Nova são um motivo de interesse particular. Os painéis fotovoltaicos comuns são feitos de sílica e no seu fabrico, contrariamente, ao que se poderia pensar há muita química, sendo que a sua produção envolve muita energia e a utilização de materiais tóxicos. Uma grande preocupação dos químicos é o desenvolvimento de métodos eficientes e limpos de obter energia. As células fotovoltaicas de Gratzel são feitos de pigmentos orgânicos, muito mais económicos que a sílica, e são uma alternativa promissora a esta, logo que se consigam desenvolver células mais duráveis.
Um loureiro é uma árvore bastante comum que não deve ser confundido com o louro-cerejo. As suas folhas são muito usadas em culinária e estão referenciadas como tendo actividade anti-bacteriana, anti-fúngica, insecticida e anti-inflamatória, entre outras, mas muitos dos compostos que contêm podem ter efeitos adversos. Nas suas folhas podemos encontrar vários terpenóides comuns a outra plantas que vamos encontrar no passeio: eucaliptol, alfa-pineno e canfeno. O seu cheiro característico é dados pela mistura complexa de dezenas destes compostos.
Paramos junto a uma olaia. Qualquer que seja a planta já um químico, um bioquímico, ou um farmacêutico, procurou identificar os seus constituintes e ver se têm algum princípio activo. Havia em 2011, 54 milhões de compostos químicos registados e todos os minutos são descobertos mais de uma dezena! Em Dezembro de 2017 estão registados mais de 134 milhões! Com os conhecimentos e métodos que se tem hoje é relativamente fácil, embora por vezes trabalhoso, fazer a caracterização química desses compostos. A sua estrutura e grupos químicos dão boas indicações sobre a possibilidade de terem actividade biológica relevante, mas o primeiro teste indicativo é o estudo da interacção com diferentes tipos de células em laboratório.
A partir dos frutos do medronheiro faz-se muitas vezes aguardente de medronho. O fruto sofre fermentação ao abrigo do contacto com o ar formando-se etanol (na presença de oxigénio forma-se ácido acético). Uma vez terminada a fermentação, o material resultante é destilado obtendo-se a aguardente. Trata-se de um processo que origina por vezes mais metanol do que o aceitável (menos de 1% do álcool puro obtido). Por isso as análises e a produção regulada são muito importantes, já que o metanol é venenoso, podendo causar cegueira e morte. Como não poderia deixar de ser, foi já identificada capacidade antioxidante e neuro-protectora nos frutos do medronheiro. Esse resultado é bastante comum para os frutos e plantas e por si só não é indicador de grandes benefícios para a saúde como certas pessoas, nomeadamente naturopatas, sem treino científico sério, procuram assinalar de forma tendenciosa tomando como base a literatura científica.
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