[Tinha estado em Vouzela em 2020, altura em que pensei neste projeto e fiz algumas fotografias. Calhou ter estado há pouco na Vila e nas horas vagas completei-o]
Vouzela e a envolvência transmitem beleza e calma. O centro da vila é muito elegante com as suas ruas com piso de pedra e as casas bem cuidadas, muitas delas antigas e brasonadas. As paisagens são muito bonitas e há locais arqueológicos de vários tempos e de todos os tipos. No início de 2024, estava quase concluído o Centro de Ciência Viva, com entrada pela rua por detrás do antigo Mercado Municipal que foi desenhado por Raul Lino e que também estava em obras quando lá fui. O Centro de Ciência Viva vai incluir um borboletário e terá como temas principais a ecologia e a alimentação, se não me engano.
O loendro, como é referido no guia, é um arbusto muito comum aqui. Trata-se de um rododendro (Rododendron ponticum), não da planta venenosa que é comum em todo o país e que é por vezes confundida com esta, tendo em alguns locais o mesmo nome: o oleandro (Nerium oleander). São bastante diferentes e só alguma falta de atenção aos pormenores os pode confundir, na minha opinião. As moléculas emblemáticas das duas espécies são também muito diferentes, mas não vou falar mais deles pois não fui aos jardins de loendros que o meu guia indicava serem imperdíveis. Fui, no entanto, ao Museu Municipal. Este tem uma interessante exposição permanente sobre o ciclo do linho. Trata-se de uma fibra vegetal, usada desde tempos imemoriais, que se transforma no tecido por um conjunto de processos complexos e demorados, muitas vezes conhecidos como “tormentos do linho.” A fibra é essencialmente celulose (um arranjo insolúvel de moléculas de glicose ligadas umas às outras em fila), sendo esta retirada e separada das palhas dos caules das plantas secas, que são colhidas inteiras, por processos basicamente semelhantes em todo o mundo e bastante duros. As fibras são depois fiadas, lavadas repetidamente, sendo as meadas “coradas”. Esta última operação é usada para clarear os fios através da oxidação da matéria orgânica que lhe dá as cores mais escuras. Para o efeito, era preparada uma solução com a cinza branca de madeira queimada (em geral de oliveira) e água, que dada a composição da cinza, é em termos químicos alcalina, tendo muitos sais de que se destaca o carbonato de potássio. As meadas eram cozidas no forno em panelas de ferro com cinza e sabão. O fio era seco, dobado, urdido e tecido. E, finalmente, a teia obtida era clareada com processos semelhantes aos anteriores com lavagens e solução de cinza. Todo o processo é demorado, envolve muitas pessoas, é muito duro e usa muita água e recursos. Nos anos 60-70 do século XX foi praticamente abandonado, mas volta agora como memória e atividade artesanal que é de novo valorizada.Os pastéis de Vouzela são muito apreciados. Em termos de materiais são semelhantes aos de Tentúgal, mas não vou aqui tecer qualquer comentário sobre quais são melhores. Os de Vouzela são excelentes, basta dizer isso. Já escrevi longamente sobre a obtenção de massa finíssima de trigo antes e sobre o recheio de ovos moles. Quero apenas chamar a atenção para o facto de na farinha de trigo ser o glúten que permite a elasticidade da massa quando crua e as espessuras muito pequenas na massa pronta. Os pastéis de Vouzela são por fora de massa extremamente fina de trigo. O recheio dos pastéis é feito de ovos moles. Existem várias receitas, e, em particular, os pastéis de Vouzela estão envoltos em vários segredos, mas este é basicamente uma solução de gemas de ovo com uma calda de açúcar. A mistura das gemas com agitação, a temperatura a que esta está, a granularidade e quantidade do açúcar, assim como a concentração da calda, fazem com que os ovos moles fiquem com maior ou menor textura e fluidez. Podem também ser adicionadas algumas farinhas, nomeadamente de arroz, mas penso que na dos pastéis de Vouzela não. O recheio dos pastéis de Vouzela pareceu-me não ter nada mais do que ovos, açúcar e água. É bastante fluido e fino, mesmo depois de algum tempo passado sobre o fabrico, em todas as versões que provei, sendo nisto, em geral, diferente dos pastéis de Tentúgal e dos ovos moles de Aveiro que tradicionalmente são feitos com os mesmos materiais. As ruínas do couto mineiro da Bejanca estão em terrenos privados e não estão adaptadas para as visitas. Extraía-se volfrâmio (também conhecido por tungsténio, símbolo químico, W) e estanho (símbolo químico, Sn). O estanho já se extraía desde o tempo dos romanos. O volfrâmio só se tornou importante com a segunda guerra mundial para ser utilizado em ligas metálicas resistentes ao impacto. De 1939 a 1943, estas minas empregaram mais de 3000 pessoas de forma direta. Pode imaginar-se toda a economia que envolvia, assim como os tráficos paralelos, etc. Há várias terras com nomes que parecem alusivos às minas e aos minerais como "Carregal do Estanho" e "Caparrosa" (nome antigo de alguns sulfatos metálicos)Deve notar-se que o volfrâmio é um metal não radioativo que não tem nada que ver com o metal radioativo urânio (simbolo químico, U) que foi extraído nas minas da Urgeiriça, já aqui referidas. Chamo a atenção para isto, que me parecia muito simples, pois falei com uma pessoa que parecia confundir.
Quando procurava as ruínas das antigas instalações mineiras, passei por um carro de recolha de lixo e locais de recolha seletiva. Não pude deixar de reparar no nome que estava no carro e nas roupas dos trabalhadores: PreZero. Trata-se de uma empresa do Grupo Schwarz, do qual também fazem parte os supermercados Lidl. Curiosamente, a PreZeo faz também a recolha do lixo da cidade de Amesterdão, nos Países Baixos (sei isso porque estive lá há pouco tempo). Soube depois que a recolha do lixo é da responsabilidade da Associação de Municípios do Planalto Beirão da qual Vouzela faz parte. Penso que com esta empresa procuram tratar de forma mais sustentável e eficaz os seus resíduos, mas não tive tempo para investigar mais. Nós não prestamos muita atenção aos serviços de recolha de resíduos, à água nas torneiras, aos esgotos, etc. mas, no caso dos resíduos, se falha a sua recolha damos rapidamente conta da sua acumulação. Vemos isso nos países em que essa recolha é deficiente. Podemos diminuir a nossa produção de resíduos, mas a recolha, separação e tratamento são sempre fundamentais. São Francisco Gil de Santarém (1185-1265) nasceu em Vouzela e morreu em Santarém. Estudou medicina em Paris, onde se tornou dominicano. A sua vida e obras estão envoltos em muitas lendas, em particular é associado a um pacto com o diabo em Toledo, sendo por isso considerado o “Fausto Português”. Curiosamente, escrevi já aqui sobre Toledo e Santarém, mas não fiz qualquer menção a Frei Gil por não ter dado importância à história para um passeio químico. Mas em Vouzela, dei, no entanto, conta da sua relevância. De facto, não tinha notado como a sua associação à medicina e procura de sabedoria o vai levar à alquimia, precursora da Química, tal como a medicina antiga e a metalurgia. Não vi nenhum escrito de Frei Gil sobre a alquimia, mas acho que pode presumir-se que a estudou. Eça de Queirós começou a escrever um livro sobre a vida de São Frei Gil, mas não o terminou. O manuscrito termina quando Frei Gil se dirige para Toledo, aliciado por um cavaleiro desconhecido. Segundo o plano de Eça, Gil assinaria o pacto com o Demónio para assistir às aulas da Universidade das Artes Negras. Passaria a ter todos os gozos, mas depressa se cansaria. Teria aventuras, mas depressa se fartaria. Queria saber mistérios, mas o Diabo não lhos podia mostrar. Apaixonar-se-ia, mas afinal a mulher era a Morte. A seguir renegava a sua vida anterior, penitenciava-se, metia-se num convento e passaria a ajudar novos e velhos. Seria tão bom e paciente que o seu pacto seria revogado com interseção da Virgem Maria. Eça provavelmente quereria retratar um “Fausto Português”, um pouco ingénuo, bastante volúvel, contente consigo próprio e com uma segunda oportunidade bem sucedida, mediada pela Virgem Maria. Quase nada do que é o Fausto original e do que se passa na história de Goethe. Nesta, quando Fausto fica contente com as suas obras, o Diabo executa o contrato e leva a sua alma.A capela de São Frei Gil é uma das últimas obras rococó em Portugal tendo no local, como relíquia, a queixada inferior do santo, diz o guia. Chamou-me a atenção a talha dourada, que, como já referi noutros passeios, consiste em folhas de ouro finíssimas (cerca de 0,0001 centímetros) que cobrem madeira. Sabendo que a densidade do ouro é de 19,4 gramas por mililitro, temos cerca de menos de 20 gramas de ouro por metro quadrado (é fácil fazer a conta: 0,0001x100x100x19,4 gramas é o valor aproximado da massa num metro quadrado).
Referências consultadas
Armando Carvalho (Coord.) Vouzela : Parque Natural Local Vouga-Caramulo. Foge Comigo, 2017.
Associação dos Arqueólogos Portugueses. Colóquio comemorativo de S. Francisco Gil de Santarém. Lisboa, 1991.
Eça de Queirós. S. Frei Gil. Colares Editora, 2002.
Manuela Barile (Coord.) Linho: Histórias ao Longo de um Fio. Edições Nodar, 2019.