Passeio Químicos por Febres com Carlos de Oliveira

[Vou inaugurar uma nova forma de Passeio Químico: envolvendo um escritor, no caso presente Carlos de Oliveira em Febres, onde fica a casa Museu com o seu nome. Este texto é baseado num artigo que publiquei há uns anos numa revista científica, expurgado das partes mais académicas (mas nem por isso menos interessantes, na minha opinião). Escrevi, na altura, que a obra de Carlos de Oliveira permite uma grande variedade de leituras. O seu pai foi médico na Gândara e viveu a infância em Febres. O que se segue é a adaptação do artigo (basicamente retirando as referências e algumas partes sem greande interesse para aqui) acompanhado de mais alguns comentários e fotografias que tirei em Febres. Quem quiser ler o artigo completo pode fazê-lo pois está online.] 

Carlos de Oliveira revia e refazia os seus livros vezes sem conta, mesmo depois de publicados. Além disso, procurava documentar-se de forma incessante. Chamou-me a atenção a pesquisa sobre a “sílica”, o material de que é feita a areia, presente no barro, e que é usado para obter a porcelana, referida em “Finisterra: Paisagem e Povoamento”.     
A obra de Carlos de Oliveira é relativamente pequena (falta na edição completa, da Editora Caminho, o livro “Alcateia” que foi reeditado recentemente), mas são virtualmente infinitas as pistas a que esta conduz. 

A Gândara era, na altura da infância de Carlos de Oliveira, um lugar muito pobre. Diz Carlos de Oliveira no “Aprendiz de Feiticeiro”:

Meu pai era médico de aldeia, uma aldeia pobríssima: Nossa Senhora das Febres. Lagoas pantanosas, desolação, calcário, areia. Cresci cercado pela grande pobreza dos camponeses, por uma mortalidade infantil enorme, uma emigração espantosa. Natural portanto que tudo isso me tenha tocado (melhor, tatuado).  

Quase não havia estradas, a iluminação era artesanal e a malária era endémica. Com a drenagem dos pântanos, a diminuição dos mosquitos e os tratamentos para a malária, esta doença desapareceu. É agora uma região muito diferente, mas a memória ainda existe e o mundo, embora por vezes fantasista, que Carlos de Oliveira descreve, era bem real e tatuava (como ele refere que aconteceu consigo). 

O filme de Margarida Gil sobre Carlos de Oliveira, começa com um forno de cal. Já não há nenhum forno destes a funcionar na Gândara, mas havia nesta região muitos. Aquecia-se a rocha calcária (essencialmente carbonato de cálcio, CaCO3) num forno, e, quando se atingia uma alta temperatura (900-1000ºC), formava-se cal viva (óxido de cálcio, CaO) e libertava-se dióxido de carbono (CO2). Entretanto, a cal viva reage com a água e forma-se cal apagada (hidróxido de cálcio, Ca(OH)2). A cal apagada servia para pintar as casas, entre outras coisas. Curiosamente, lentamente, a cal vai reagindo com o dióxido de carbono do ar e convertendo-se em carbonato de cálcio (CaCO3), o que é uma espécie de fecho poético do ciclo. Também se usava (ainda se usa) a cal viva com água e com sulfato de cobre (CuSO4, conhecida como calda bordalesa), a qual, sendo ácida devido ao cobre, ficava mais básica, devido ao hidróxido e penetra melhor nas videiras.

A resina, ou como na Gândara se diz, “o cerne”, é omnipresente na obra de Carlos de Oliveira. A descrição que faz da sua ascendência em “Aprendiz de Feiticeiro” é bastante reveladora, mostrando também que a sua família tinha algumas posses, num local tão pobre. Escreve Oliveira:

Venho de famílias arenosas (pântanos, pinheiros, dunas), gente por assim dizer alimentada a cerne, avós carpinteiros de soalhos, pranchas, móveis trabalhados, grandes plantadores e lavrantes de madeira.

Os pinheiros eram explorados pelos resineiros e eram uma parte da pequena economia local. Os pinheiros exsudam a resina para os copos (conhecidos na Gândara como “cacos”) característicos que eram na altura feitos de barro, mas são hoje de plástico. O resineiro fazia um corte no pinheiro e usava ácido sulfúrico para este continuar a sangrar. Da resina extrai-se uma parte volátil, a terebintina, e uma parte sólida, o pez louro, que é mesmo dourado. A terebintina pode ser usada como solvente ou como material de base para muitas reações químicas. O pez louro é também usado para muitas coisas, nomeadamente para limpar os ferros de soldar.

A fantasia da procura da “fórmula” (formulação) da porcelana em “Finisterra: Paisagem e Povoamento”, conduz-nos a vários caminhos. Desde logo a história da porcelana, cuja formulação foi muito mais difícil de obter do que é descrito no livro. Obter a formulação da porcelana deu muito trabalho e envolveu muitas aventuras. Convém aqui referir, uma coisa óbvia para as pessoas da área, mas nem sempre bem entendida pelos leitores: a literatura não tem de ser exata ou factual, mas as personagens podem ser exatas e factuais mesmo que sejam uma fantasia. A literatura fixa-se de outra forma (como escreveu Umberto Eco, a Emma Bovary será para sempre como Flaubert a descreveu, mas, acrescenta o autor do presente artigo, o arsénico já não é atualmente usado nas nossas casas para matar ratos). A literatura é imutável à sua maneira, enquanto que a ciência é aditiva e atualiza-se de muitas formas. 

Para fazer porcelana é preciso caulino, um material rochoso fundamental que é muito mais raro do que o barro usado para obter telhas e tijolos. Incidentalmente, em a “Casa na Duna” Mariano Paulo espera salvar a sua quinta com uma fábrica de telhas que o progresso técnico se encarrega de mostrar que está condenada. Mas além da crueza da realidade, temos a poesia da ciência. Muitas pessoas não se apercebem, mas precisamos que a literatura nos mostre como gostar da ciência, para ajudar a perceber a vida e, claro, para sonhar. E “sonhando a obra nasce”, na frase repetida à exaustão de Fernando Pessoa. O narrador  de “Finisterra” procurava uma porcelana finíssima, tão fina que parecia voar. A porcelana buscada poderia ser fina, mas o que Carlos de Oliveira refere ainda não existia na altura. Era um sonho, uma fantasia, talvez uma ideia poética. Mas já existe hoje: o aerogel de sílica é a concretização da porcelana que voa!   

No poema “Casa”,

A luz de carbureto

que ferve no gasómetro do pátio

e envolve este soneto

num cheiro de laranjas com sulfato

(as asas pantanosas dos insectos

reflectidas nos olhos, no olfacto,

a febre a consumir o meu retrato,

a ameaçar os tectos

da casa que também adoecia

ao contágio da lama

e enfim morria numa cama)

a pedregosa luz da poesia

que reconstrói a casa, chama a chama.

Carlos de Oliveira refere o “carbureto” [que eu não encontrei na Gândara nem me lembro de ter visto nesta região, mas Oliveira refere-o algumas vezes e de forma bastante precisa (1)]. Neste, colocam-se pedras (artificiais, claro) de carbeto de cálcio, CaC2, as quais, reagindo com água, produzem o hidrocarboneto acetileno (etino,C2H2) que arde com uma chama muito branca. Não vi o “carbureto,” mas ainda vi as candeias, os candeeiros a petróleo e os lampiões a petróleo e a gás. A luz elétrica foi na Gândara um avanço relativamente tardio. A questão da luz branca é muito curiosa pois os hidrocarbonetos ardem em geral com uma luz fraca e de cor azul (vê-se isso nos fogões a gás). Pensa-se que esta cor branca intensa será devida às partículas de cálcio presentes na chama. 

Neste poema, refere-se também o cheiro das laranjas com “sulfato”, material que ainda hoje se vê nas laranjas não lavadas. Trata-se de sulfato de cobre (que é azul de forma natural) e é usado para “sulfatar” as laranjeiras combatendo os fungos (devido ao cobre, que é venenoso para eles). O cheiro dos sais de cobre é muito característico mas é também muito curioso e complexo esse efeito. Os metais não têm cheiro por si só. O que cheiramos são os produtos das reações que os metais catalisam. Isso pode ser bastante poético, na minha opinião. Quando cheiramos moedas não cheiramos na realidade o metal, mas em boa parte os produtos únicos e pessoais do nosso suor que reage nelas. O caso do cobre é algo diferente, mas é também bastante poético. A Ciência não “rouba” a poesia, como por vezes é referido, antes pode acrescentar novos estratos de mistério e maravilha. Não seria apenas por acaso que Coleridge assistia às demonstrações científicas de Humphry Davy, ou que Charles Dickens pediu emprestados os apontamentos das lições de Michael Faraday. 

Finalmente, uma nota sobre como as alterações dos textos nos dão informação sobre a evolução científica e técnica. No original de “Pequenos Burgueses”, de 1948, não há referência ao uso de um raticida denominado “trigo-roxo” que irá aparecer na edição de 1981. Trata-se de um rodenticida que tem por base o anticoagulante varfarina a que os ratos eram muito sensíveis. Entretanto, os ratos tornaram-se mais resistentes a este tipo de substâncias, e é agora usada a bromadilona que foi introduzida na Grã-Bretanha pelos anos 1980, a qual é muito mais perigosa para humanos e animais. São atualmente desta substância a maioria dos rodenticidas disponíveis. Carlos de Oliveira, que faleceu em 1981, já não assistiu a estes novos desenvolvimentos.

Febres é conhecida por ser uma terra de ourives e, no seu centro, além da casa de Carlos de Oliveira, podemos encontrar um Monumento ao Ourives. Este era um comerciante que se deslocava de bicicleta com uma caixa de metal onde tinha o ouro e a prata. Estes comerciantes já não se deslocam de bicicleta, mas ainda este fim de semana reparei em vários ourives num mercado na região. Não me lembro de Carlos de Oliveira ter dado grande atenção a esta personagem, pelo menos para a pesquisa do artigo que escrevi, eu próprio não dei. Mas é mais uma vez uma atividade bastante química. O ouro tem uma grande densidade (19.4 quilogramas por litro), sendo muito maleável. Assim, está presente em ligas com outros metais, em geral o cobre. Embora houvesse análises oficiais, cujos resultados eram indicados pelo “contraste”, na dúvida um desses comerciantes podia fazer algumas análises químicas simples (algo que os joalheiros ainda fazem hoje em dia, pois os aparelhos de fluorescência de raios X são muito caros). Essas ligas de ouro, são essencialmente deste metal, correspondendo 24 quilates a ouro puro e 18 quilates, por exemplo, a 75% em massa de ouro. Portugal tem a particularidade de muito do ouro antigo ter 80% deste metal, ou seja 19,2 quilates. 

Mas as coisas são curiosas. Para o ouro de 18 quilates, já vimos que temos 75% em massa deste metal, mas se a liga for apenas de cobre, temos 87% em volume deste metal, sendo apenas 13% do volume de cobre. Mas em termos de átomos temos cerca de 50% de cada um dos elementos. 

Em Febres, há uns anos, a Casa de Carlos de Oliveira, servia também de biblioteca e julgo que de posto da junta de freguesia e correios, o que lhe dava a possibilidade de estar sempre aberta. As últimas notícias que tive já não eram tão animadoras. Temos de lá ir e ver.

Bibliografia

Sérgio P. J. Rodrigues. Carlos de Oliveira e a Química. Metamorfoses, 18 (2021) 166-174. https://revistas.ufrj.br/index.php/metamorfoses/article/view/46689 

(1) No entanto, no “Museu Etnográfico Dr. Louzã Henriques,” na Lousã, situada a cerca 50 km de Febres e 25 km de Coimbra, já fora da região a que se convencionou chamar Gândara, podem ser encontrados vários aparelhos desses na exposição relacionada com o mundo rural.


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