Passeios químicos na ilha da Madeira

[Eu já não ia à ilha da Madeira há cerca de vinte anos. Aproveitando que participei no congresso SciComPT 2025, nas horas livres, muitas vezes muito cedo, fui a alguns locais que tinha selecionado para tomar algumas notas e fazer fotografias para um passeio química. A ilha está muito modificada, em particular os túneis permitiram vias rápidas para chegar rapidamente a muitas partes da ilha.]

A ilha da Madeira é constituída por rochas vulcânicas. A alteração ao longo tempo de algumas destas rochas deu origem a argilas que servem de suporte à água que origina nascentes em todas as altitudes, em particular nas zonas mais altas, onde a pluviosidade é superior. A ilha é muito acidentada e íngreme, chegando-se em poucos quilómetros do nível do mar a lugares acima dos mil metros. Também as costas são muitas vezes muito escarpadas (no Cabo Girão atinge-se a altura de quase seiscentos metros), havendo por vezes desabamentos e tendo-se formado ao longo do tempo pequenos espaços junto ao mar conhecidos como fajãs que são muito férteis onde é realizada a agricultura. 

É preciso notar que o ponto de ebulição da água diminui, com a altitude, sendo 95ºC a 1500 metros e 93ºC a 2000 metros, por exemplo. Atingindo-se rapidamente valores muito elevados de altitude, há grande condensação do vapor de água presente nas massas de ar húmido e formação de precipitação, dando origem a muitas vezes a grandes enxurradas e aluviões. Deve também notar-se que embora todos estes fenómenos sejam complexos, se verifica que a precipitação aumenta linearmente com a altitude.
Os aluviões devidos às terras que se deslocam e as enxurradas são relativamente comuns na ilha, sendo a primeira referência a aluviões já no século XVI. Havendo tanta água nos lugares altos, desde cedo esta foi canalizada nas conhecidas levadas de que há dezenas na Ilha da Madeira, mas por outro lado para evitar inundações foram realizadas obras de regularização das margens de ribeiras, o que muitas vezes não teve bons resultados. Por outro lado, o ponto de fusão do gelo não é muito afetado pela altitude, podendo considerar-se o mesmo valor do nível do mar, ou seja 0ºC. No entanto, é comum estar bom tempo no Funchal e ver-se nevar nos picos que rodeiam a cidade pois estes estão a menor temperatura e há mais água disponível. 

O Poço da Neve, que fica a 1650 metros, era um local onde se armazenava neve para fazer gelados. Este tem cerca de oito metros de profundidade. Hoje em dia podem obter-se gelo facilmente (as pessoas podem observar e fazer a sua produção nos congeladores dos frigoríficos, por exemplo), mas antigamente isso não era possível, e a única forma de o obter era conservando-o quando se formava naturalmente. A história das vantagens e problemas envolvidos nos frigoríficos, assim como a sua forma de funcionamento, já foi referido em vários passeios.   

As paredes da Sé do Funchal podem ser vistas como um catálogo das rochas vulcânicas disponíveis, havendo quase uma dezena de tipos de rochas vulcânicas em mais de duas dezenas de tonalidades. Não tive tempo de entrar, mas as fotos que vi do interior são muito bonitas, em particular a talha dourada que também já referi noutros passeios. Tinha pensado ir ao mercado do Funchal mas não tive tempo de ir lá pois o pouco tempo que tinha foi gasto a esperar numa farmácia do centro. Enquanto esperava e observava as pessoas a levar dezenas de medicamentos e cosméticos, alguns deles fundamentais, outros nem por isso, refleti sobre esta evolução e aumento da complexidade. Temos hoje em dia quase dois milhares de moléculas aprovadas como medicamentos, muitas delas de grande complexidade e cada vez menos bioinspiradas, validados por estudos clínicos e várias fases de aprovação, e são aprovadas cerca de quatro dezenas por ano (mas também são retiradas do mercado outras), para tratamento de doenças de que se morria e nem se sabia que existiam. Claro que há ainda vários problemas e temos novas questões, mas é muito interessante refletir sobre este aspeto.   

O clima da Madeira desde cedo foi considerado benéfico para o tratamento da tuberculose, numa altura que não havia outros tratamento para esta doença além dos "bons ares," a boa alimentação e o descanso. São em número muito grande os doentes desta doença que passaram pela ilha, sendo de referir a princesa Sissi, bem conhecida pelo filme e outras obras que narram a sua história, e Júlio Dinís. Deste último, há uma estátua na baixa do Funchal que encontrei quase por acaso. Júlio Dinís era o pseudónimo do médico José Gomes Coelho, o qual, na sua passagem pela ilha, fez herbários e escreveu uma parte dos seus livros. Como se sabe, este escritor morreu dessa doença que hoje pode ser tratada com alguns tipos de antibióticos, mas não a penicilina que é pouco eficaz contra esta doença. A partir de meados dos anos 1940, com a descoberta da estreptomicina e o uso da isoniazida, e sobretudo a partir de meados dos dos anos 1965, com a descoberta da rifampicina, a doença começou a ter melhores prognósticos. Contudo, a micobactéria responsável por esta doença é muito difícil  de combater, envolvendo misturas de antibióticos no seu tratamento que é realizado durante bastante tempo.   

O Jardim Botânico do Funchal é relativamente pequeno, mas faz jus à exuberância da vegetação e flores locais. Eu tinha pouco tempo e procurei os canteiros com as plantas úteis, aromáticas e usadas tradicionalmente em têxteis (assinalados no mapa do Jardim). Só encontrei os primeiros, em particular com vários tipos de bananeiras e legumes, mas o linho, por exemplo, que é uma planta anual e podia não ser visível na altura, não vi. Não detetei haver canteiro com plantas tintureiras, mas penso que deveria haver, pois a Madeira tem bastante tradição de usar cores nas roupas, em particular os vermelhos, provavelmente tradicionalmente devido à Rubia spp. e o azul, provavelmente devido ao pastel dos tintureiros. 

Encontrei quase por acaso, cicuta e rícino, que deveria fazer parte de um canteiro com plantas venenosas. Mas, se o rícino encontrei na ilha, não vi cicuta, embude ou erva-moira, plantas venenosas bastante comuns no continente. Vi no entanto trombeteiras (Datura spp.) que são também venenosas e, que, se não me engano, as suas sementes causaram a morte de um adolescente na ilha. 
Foi na minha primeira passagem pela Madeira, há quase 20 anos, que comecei a interessar-me pela identificação de plantas, com um livro que trouxe da ilha.

A história da produção de açúcar na Madeira começou quase ao mesmo tempo que a história da expansão marítima. Para além do açúcar, era explorado o mel (ou melaço) que é um produto líquido, de cor escura, confeccionado a partir da cozedura e concentração do sumo de cana, e a aguardente. A produção de aguardente só se iniciou por meados do século XIX e hoje em dia já não se fabrica açúcar na ilha da Madeira. Dos textos que li, nota-se algum desconhecimento da química envolvida nos processos e, podemos dizer com ironia, que antigamente, afinal, “não era bom”. 

Em todos os processos a cana é esmagada e obtido um caldo, a garapa. No caso do mel e açúcar esse caldo é fervido até atingir uma determinada cor e grau (ou seja concentração, a qual só indiretamente tem que que ver com a temperatura pois o ponto de ebulição aumenta com a concentração). Para o mel procura-se manter o pH em cerca de quatro, adicionando-se, se necessário, ácido cítrico ou outros ácidos naturalmente existentes na cana. Isto é também realizado no caso do sumo de cana para aguardente, usando-se antigamente ácido clorídrico e sulfúrico, e, para ajudar à fermentação, fermento de pão e sulfato de amónio (é caso para dizer, com ironia, que “antigamente não era bom…”), sendo que o sumo obtido é depois destilado. No caso da açúcar usava-se cal para precipitar as impurezas e ajudar a formar cristais. Simplificando, parece que os pH mais baixos ajudam a manter todos os componentes, criando mel e aguardentes mais aromáticos, enquanto os pH altos ajudam a precipitar esses componentes, obtendo-se um açúcar mais puro. Queria chamar a atenção para o facto de o entendimento básico dos processos pode ser feito com base em conhecimentos simples de Química.  

O cultivo dos canaviais é limitado essencialmente a uma estreita faixa no litoral sul. As canas são atacadas por uma lagarta sendo antigamente usada estricnina para a matar. Hoje devem usar-se inseticidas mais seguros e, conhecendo-se o ciclo, da lagarta, outros tratamentos.  A caminho do Cabo Girão vi um canavial (mas não fotografei). O da figura vio-o no Jardim Botânico. Na Calheta situam-se alguns dos mais conhecidos engenhos, mas antigamente havia muito mais. 

O vinho da Madeira é um dos produtos agrícolas mais conhecidos da ilha. Para o fazer, é acrescentada aguardente ao mosto, parando a fermentação, ficando assim o vinho doce, sendo comuns graduações entre 17º e 22º (que corresponde a uma percentagem de volumes de álcool sobre o volume total). O que faz o vinho único são as castas usadas e o processo de envelhecimento que simula as condições de uma viagem por mar, pois reza a lenda que as cargas enviadas por mar pareciam mais saborosas.  

Muitos percursos de baleias passam na ilha da Madeira, além de que o mar é profundo perto de terra, assim era mais fácil a sua caça. No entanto, a caça à baleia só começou na Madeira no final dos anos 1940 com o recrudescimento da procura do seu óleo para a produção de margarinas, penso eu. Como já referi em vários passeios, a caça à baleia tinha a ver com a procura do seu óleo que, no século XIX, era usado para fazer velas e outras formas de iluminação. No Caniçal, onde estes animas eram desmanchados, em boa por ser a região mais desabitada da ilha, podemos agora visitar um museu relacionado com estes animais. Neste museu há uma parte dedicada à memória da sua caça e outra dedicada à biologia e observação destes cetáceos.

No Caniçal fica também a Zona Franca Industrial (ZFI) onde podemos ver várias indústrias, algumas relacionadas com a Química. Eu tive muito pouco tempo para estudar a questão e observar, quando lá estive, mas salta à vista o letreiro enorme da Insular, que é uma empresa madeirense centenária.  Vemos também algumas chaminés, tanques de combustível e muitos painéis solares. 

As chaminés que se veem parecem ser da Central Térmica do Caniçal, Esta central privada está equipada com  geradores a diesel/fuleóleo, assegurando a produção de uma parte da energia consumida na ilha da Madeira (vi valores diferente em vários sítios), penso que cada vez menor. Na Vitória situa-se uma outra central térmica a diesel/fuleóleo, muito maior, tendo nos últimos anos sido inaugurada neste local uma central térmica que usa gás natural.

Este último tipo de central térmica é muito mais eficiente, chegando aos 60%, enquanto que as centrais térmicas a diesel são menos eficientes (pela ordem dos 40%), além de que eram mais poluentes, embora com equipamentos de limpeza dos gases e de controlo automático se tenham tornado muito melhores. Fica também na ZFI a MadeBiotech que realiza investigação sobre biocombustíveis, nomeadamente, se não me engano, sobre o uso de algas e aproveitamento de restos de peixe. Para completar as fontes de energia elétrica, existem na Ilha da Madeira várias centrais hídricas, eólicas centrais fotovoltaicas e uma central de baterias.

No Caniçal encontrei também instalações de aquicultura situadas no mar. Nos últimos anos a aquicultura ultrapassou a pesca em volume de peixe disponibilizado. Esta prática pode ser mais sustentável, mas envolve muito desafios em relação à qualidade e segurança alimentar, assim como o bem estar animal. Embora usualmente não se pense n«muito nisso envolve muita química e não me estou a referir a antibióticos e outros medicamentos dados aos peixes. Refiro-me a algo muto óbvio, mas tão simples como complexo, o sentido do paladar dos peixes. Estes têm milhares de receptores para analisar os alimentos que estão na água. Para além disso, os peixes carnívoros (uma boa parte dos que mais gostamos) são mais poluentes que os vegetarianos e também os mais difíceis de contentar com dietas vegetarianas. Assim, há muito investigação envolvendo estes aspetos.      

Como é obvio, ficou uma grande parte de coisas por ver. Tenho de voltar.

[versão inicial de 19 de abril de 2025; pequenas alterações em 27 de abril de 2025]

Referências

Alberto Vieira, Filipe dos Santos. Açúcar, Melaço, Álcool e aguardente. Notas e experiências de João Higino Ferraz (1884-1946). Governo Regional da Madeira, 2006. 

António Marques da Silva. Apontamentos de Etnografia Madeirense (São Jorge e Norte da Ilha). Direção Regional da Cultura, 2016.

João Mimoso Loureiro. A água na Ilha da Madeira. Caracterização hidrológica. As grandes Aluviões 1600-2010. Eletricidade da Madeira, 2010.

Marco Livramento. Levadas da Madeira: uma herança para o mundo. Diário de Notícia – Madeira, 2022.

Museu Etnográfico da Madeira. O Engenho. Direção Regional da Cultura, 2016.

RTP. Madeira Profunda. Temporada 1 e Temporada 2, Episódios 1-12, 2023, 2024.