[No dia 24 de novembro de 2025 realizei um Passeio Químico com alunos e professores na Escola Básica e Secundária Martinho Árias de Soure e antes reuni informação para um passeio químico nesta vila que escrevo aqui]
A entrada principal de Soure é feita por uma ponte com três secções na confluência dos rios Anços e Arunca, tendo uma elegante roda de tirar água em funcionamento. O castelo fica ao lado, e foi saqueado e destruído várias vezes pelos mouros no século XII, tendo sido doado aos Templários, primeiro por D. Teresa e depois por D. Afonso Henriques.
A água corria abundantemente e estava turva e castanha devido às partículas em suspensão. Como sabe o senso comum, quanto mais pequenas são as partículas mais tempo ficam em suspensão, sendo que abaixo de determinadas dimensões a emulsão pode ser estável. Isso acontece quando a repulsão entre as partículas compensa as suas atrações e não há formação de partículas de maiores dimensões (maiores do que cerca de um micrometro) que precipitariam por ação da gravidade, a qual se sobreporia à ação do movimento Browniano que as mantém em suspensão. Aqui estas questões não se aplicam, pois a água em movimento induz fenomenos de caos que mantém a turvação da água. Foi nisto que pensei quando cheguei e olhei para os rios, mesmo antes de entrar na vila. A cultura do arroz tem ainda um papel relevante com uma cooperativa de produtores e julgo que fábricas de descasque. O arroz nasce em terrenos alagados e o seu cultivo envolve muita água. Não sei como foi em Soure, mas perto de Coimbra a cultura do arroz enfrentou alguma resistência das populações locais, pois a presença de água estimulava a presença de mosquitos que transmitiam a malária, a qual era conhecida por paludismo ou febres intermitentes. Essa doença desapareceu nas zonas temperadas com a eliminação dos mosquitos mas era comum até à Segunda Guerra Mundial em toda a Europa, inclusive em cidades como Berlim. O grão de arroz é constituído essencialmente de amido, que é um polímero de glicose (na verdade há dois tipos de polímeros de glicose no amido: a amilose e a amilopectina). Não tendo glúten, que é uma mistura de proteínas que existe no trigo e noutros cereais, para algumas pessoas, alérgicas ou intolerantes ao glúten, é melhor. O cozimento do arroz é realizado para amolecer o grão que absorve água e neste processo fica mole e comestível. Na parte de trás da Escola Fica uma grande quinta que tem vacas, a Quinta das Nogueiras, que tem na entrada uma elegante estátua de uma rede grossa de aço inoxidável, representando um touro e uma imagem estilizada de uma nogueira do que me pareceu de bronze (mas será provavelmente de aço cor-ten). Também dignos de nota são os vidros laminados usados na vedação. Exteriormente, a construção envolve uma grande riqueza de materiais e processos, mas acontece o mesmo com as que parecem mais modestas. No que concerne às vacas parecem estar ali para a produção de carne, mas vou discutir a produção de leite. É paradoxal que só com a evolução da ciência e técnica é que se pode dar estrutura objetiva à ideia de "pureza". De facto, o leite não tem nada adicionado e pode ser verificada rigorosamente a sua composição. Embora continue a ser perigoso cosumir leite cru (ou seja sem ser pasteurizado e sem ser tirada gordura) e não o recomende, pois podem sempre existir contaminações, podemos hoje em dia com muito mais segurança que nos tempos antigos utilizá-lo. A pasteurização surgiu por 1870, mas só apareceu comercialmente, primeiro na Alemanha, em 1882, e no resto do mundo no séculos XX.A Ultra High Pasteurization (UHT) apareceu em 1958 e o leite sem lactose nos anos 2000. Com a pasteurização e o rigoroso controle de qualidade, o leite, que era um meio privilegiado para a transmissão de várias infeções como a tuberculose e a febre tifoide, tornou-se muito mais seguro. Um aspeto interessante é os dos três tipos gordura no leite: gordo, meio-gordo e magro (estes nomes são bastante enganadores e há várias propostas para os mudar). As designações correspondem a limites mínimos de gordura, respetivamente 3%, 1.5% e 1%. Ora no leite, as proteínas estão dentro das partículas de gordura e baixar a percentagem de gordura origina baixa das percentagens de proteína.
Diz Nelson Correia Borges que a vila foi muito renovada na segunda metade do século XVIII, época da qual há ainda casas com fachadas bem ordenadas, sendo os Paços do Conselho feitos em estilo neo-manuelino com cantarias de João Machado. S. Rijo venera-se na capela de S. Mateus, sendo a paga dos favores feita com prendas insólitas e irreverentes: espigas de milho roubadas no caminho, pulgas aprisionadas num canudo, uma cambalhota no adro da capela e até, pasme-se, mostrar o traseiro ao santo! Já tenho o livro há algum tempo e sempre achei bastante piada a este trecho e vontade de ir à romaria, mas nunca se propiciou. Há com certeza alguma química na irreverência saudável!Ainda segundo este autor, a atual igreja de Santiago foi mandada construir por D. Manuel I, ainda antes de ser rei. Estava fechada quando lá fui e não entrei. Mas notei a bonita fonte em frente, onde se podem ver os efeitos dos sais presentes na água e os grampos usados para segurar as pedras (olhando melhor para a fotografia, podem não ser bem vísiveis).Na rua que conduz aos Paços do Conselho há um elegante monumento aos mortos da Primeira Guerra Mundial. Esta guerra que originou cerca de oito milhões de vítimas, foi a primeira em que se usaram gases químicos modernos os quais logo em seguida foram banidos. Estima-se que que tenha causado cerca de 180 mil vítimas, mas ficou no imaginário das pessoas como uma coisa muito bárbara, como se matar com bombas, balas e baionetas e de fome e doença não o fosse também.
O que quero dizer com isto, é que as guerras são sempre más começando com a ideia de que o inimigo é fácil de vencer e culpado de tudo e mais alguma coisa e vai evoluindo até se aceitarem as coisas mais inaceitáveis. No final, resta um monte de escombros, uma grande extensão de terras inabitáveis e uma quantidade impressionante de vítimas. Ainda há terras que não podem ser cultivadas em França onde ficavam a maior parte das trincheiras da Primeira Guerra Mundial e ainda há lugares com bombas enterradas não rebentadas, com ossos humanos de vítimas das guerras, assim como minas em muitos lugares. Que é que a Química tem a ver com isto? Quase nada, mas tendo contribuído para a tecnologia militar muitas parece ser a culpada em vez dos verdadeiros culpados que são os serem humanos que comandaram isto. A antiga Fábrica de Fiação de Tecidos do Paleão, que macerava, fiava e tecia linho, agora fechada, era possuidora de uma das mais antigas e imponentes máquinas a vapor portuguesas. Esta é agora propriedade da Fundação Belmiro de Azevedo e pode ser vista no Norte Shopping. No início do seu uso, cada fábrica tinha em geral só uma máquina que através de correias de transmissão servia toda a fábrica para as operações necessárias. As máquinas a vapor, como o próprio nome indica, funcionavam com a pressão originada pelo vapor, o qual era aquecido com um combustível que poderia ser carvão ou lenha. Estas máquinas eram muito pouco eficientes e poluentes, sendo que a sua maior eficiência era obtida conseguindo aquecer o vapor a temperaturas mais altas, o que se poderia obter com maiores pressões, o que por seu lado causava outros problemas. A máquina a vapor foi desenvolvida por James Watt que terá ficado chocado com a menor eficiência das máquinas anteriores.Houve alguns contributos portugueses para as melhorias destas máquinas, nomeadamente de Bento de Moura Portugal (1706-1760) que foi preso no Forte da Junqueira a mando do Marquês de Pombal onde viria a morrer passados seis anos. Não foi preso devido aos desenvolvimentos propostos, mas antes pelas suas ideias religiosas e políticas, mas por aqui se vê como se tinha apreço pela liberdade de pensamento. Muitos outros fizeram propostas (estou-me a lembrar do visconde de Vilarinho de S. Romão), mas as contribuições portuguesas são praticamente insignificantes, penso eu, também por essa "mania" nacional de perseguir quem faz coisas diferentes. Mas embora tenha sido um revés importante o fecho da fábrica anterior, na zona Industrial de Soure podemos encontrar várias empresas relevantes, inclusive ligadas à química. A multinacional Exlabesa, líder mundial no fabrico de componentes industriais de alumínio, a Omya o maior produtor mundial de minerais essenciais e um distribuidor internacional de produtos especializados, e ainda a Reciclocentro, empresa de reciclagem de vários materiais.
Indústrias relevantes do concelho de Soure são também a exploração de minas de gesso e as pedreiras, mais para o lado do Rabaçal. A análise dos calcários de Tapeus referida por Carlos Lobato indica em geral mais de 95% de carbonato de cálcio, tendo uma amostra 97% e outra 99%.
Na escola as grelhas de saneamento parecem ter (não vi) a conhecida frase “o mar começa aqui”, mas devemos meditar nisto de várias maneiras. Primeiro, que num sistema de saneamento bem planeado a circulação das águas pluviais não se mistura com as águas dos esgotos domésticos que podem ser em muito menos quantidade e têm de ser tratados. Segundo, isso faz com que essas águas tenham acesso muito mais fácil aos rios e mar e portanto devem ser usados de forma conveniente. Há também na escola, uma estrutura em forma de cegonha onde se podem colocar plásticos para reciclar. Como já referi noutros passeios, os plásticos permitem em geral maior sustentabilidade e a expansão das possibilidades, mas têm de ser usados com parcimonia e sensatez. A redução dos usos desnecessários e a reciclagem são fundamentais.Estas são algumas notas que posso ir atualizando, mas, por agora, parecem-me estar completas.
Bibliografia
Nelson Correia Borges. Coimbra e Região. Editorial Presença, 1987
Jorge Custódio. A máquina a vapor de Soure. Fundação Belmiro de Azevedo, 1998.
Fernando Macedo, Miguel Helfrich. Vila de Soure : um passeio. Edição de Autor, 2009.
Carlos Pires Lobato. Calcários de Tapeus – Soure : elementos técnicos para diagnóstico da cozedura em fornos de cal. Separata do Boletim de minas, 18(2), 1981.
Isabel Morgado. Soure : uma mui antiga terra da Estremadura. Câmara Municipal de Soure, 1996.
Vera Lúcia Rodrigues. Retratos de Soure. Edições Colibri, 2025.
Russell W. Currier, John A. Widness. A Brief History of Milk Hygiene and Its Impact on Infant Mortality from 1875 to 1925 and Implications for Today: A Review. Journal of Food Protection, 81(10), 2018, 1713–1722. doi:10.4315/0362-028X.JFP-18-186














Sem comentários:
Enviar um comentário