Vamos fazer um curto passeio químico em Faro. Estive lá pouco tempo e anoiteceu rapidamente, mas apanhei a maré baixa na Ria Formosa (todo aquele verde que se vê nas fotografias são as plantas que estão submersas) e o magnífico pôr-do-sol.
Na rua Filipe Alistão, na parede da casa onde fica um take-away, há um conjunto de desenhos relacionados com DNA (ácido desoxirribonucleico) e o RNA (ácido ribonucleico), que chama a atenção para várias coisas, em particular para a evolução durante 4 biliões anos e meio, para chegarmos às células que temos hoje, e, que tem, num canto, um desenho do vírus da Covid-19.
Será difícil fazer um resumo da biologia molecular num artigo de divulgação, mas vou tentar. Antes, talvez faça sentido referir algumas coisas. Um livro, “a química da vida”, foi determinante para a minhas escolhas futuras. Mas, quando o comprei, e, mais tarde, quando entrei na faculdade já estava desatualizado. Os livros de bioquímica por onde estudei, entre o início e o fim do curso de química ficaram desatualizados. O livro de bioquímica que consulto agora, provavelmente já está também desatualizado. É assim a ciência, pula e avança, mas muitas vezes só o futuro e que nos mostra isso. Há, no entanto, um conjunto de ideias que se mantém e eu vou tentar referir apenas essas.
O “dogma central” da biologia molecular é que o fluxo genético é do DNA para o RNA e deste para as proteínas. A vida é controlada por proteínas, que são espécies de máquinas moleculares feitas por sequência bem definidas de aminoácidos, moléculas que, por sua vez, são ao mesmo tempo ácidos e aminas. Existem cerca de vinte aminoácidos comuns, a partir dos quais são feitas as proteínas, ligando-se os ácidos com as aminas em sequências e números bem definidos. Essas sequências são a estrutura primária das proteínas e, conforme a sequência dos aminoácidos, localmente, as proteínas tomam formas particulares, de que as mais comuns são as espirais e as folhas. Tal é conhecido como estrutura secundária. Como estas sequências são muito grandes, quando as estruturas locais voltam a encontrar a molécula mais à frente, isso vai causar novas alterações da estrutura que é conhecida como estrutura terciária. Finalmente, uma proteína pode ser constituída por várias sequências de aminoácidos, das mistura das quais de novo se modifica a estrutura, o que que é conhecida como a estrutura quaternária.
Como se pode imaginar, o problema da forma das proteínas é muito complexo, mas, nos seres vivo isto é feito de maneira muito rápida e as proteínas têm sempre a mesma forma, a qual corresponde a um mínimo de energia enorme comparado com todas as outras possibilidades. Não tinha ainda sido resolvido satisfatoriamente este problema, até que em 2021 publicaram um artigo que indicava ter resolvido esse problema usando inteligência artificial (IA). Basicamente, o algoritmo “aprendeu” a obter a forma correta de proteínas, usando uma base de dados muito grande (são milhares de milhões) de estruturas conhecidas destas moléculas. Há um senão (que não é pequeno), para além de não se se saber o que o algoritmo aprendeu: essas estruturas são de raios X e são portanto de cristais, e as proteínas podem não ser assim rígidas nos sistemas vivos. Uma indicação dessa fragilidade é que o algoritmo IA reproduzia pior as formas em sistemas líquidos em muito menor número obtidas por ressonância magnética nuclear (RMN). De qualquer forma, é um feito notável e mostra novos caminhos para o conhecimento químico. Os algoritmos IA podem aprender sem que as regras sejam bem conhecidas, algo que nós também fazemos rotineiramente na nossa vida.
As proteínas são destruídas e refeitas a velocidades muito grandes. Nas nossas células, para fazer novas proteínas, o DNA que tem origem a partir dos genes presentes no núcleo, é transcrito para o RNA, chamado mensageiro pois vai do núcleo até aos ribossomas, onde cada três bases (um codon) é “lido” originando um aminoácido particular. Entretanto, o RNA transferência, junta esses aminoácidos na sequência particular da proteína codificada. Este processo repete-se até o RNA mensageiro encontrar um codon que não codifica nenhum aminoácido. Este processo é muito mais complicado, mas tentei apresentar os fatos essenciais.
Tanto o DNA como o RNA são também costruídos por proteínas, que são também enzimas, denominadas polimerases, as quais por sua vez são também feitas da mesma forma. E tudo isto acontece ao mesmo tempo e a velocidades enormes. Ocorrem erros, chamados mutações, nessas transcrições, mas a muito grande maioria é corrigido. Se não for, podemos ter um cancro ou incorporar a mutação para as gerações futuras.
Olhemos agora com mais detalhe para o processo. O DNA tem um esqueleto de açúcares e fosfatos onde estão, em sequência, as bases azotadas adenina (A), citosina(C), guanina (G) e timina (T). Estas estão aos pares unindo-se por ligações de hidrogénio à sequência da outra tira: a citosina com a a guanina (C-G) e a adenina com a tirosina (A-T). Tudo isto é em geral representado de forma esquemática e colorida, para se perceber melhor, mas cada moléculas tem os seus hidrogénio, carbono e outros átomos. E cada um desses átomos tem as suas densidades eletrónicas e as ligações entre eles têm a sua polaridade. Facilmente se nota que há 4x4x4=64 possibilidades. Três delas são de paragem, dois aminoácidos só têm uma possibilidade, mas a maior parte pode ser codificado de várias maneiras (é preciso notar que há 64 possibilidades mas são só usados cerca de 20 aminoácidos).
Com a química que se aprende no secundário pode-se perceber muitas coisas. É relevante referir que alguns aminoácidos são mais sensíveis à luz visível e podem ser detetados pela interação destes com esta luz. Para além disso, alguns aminoácidos têm átomos de enxofre que, quando a molécula se decompõe, formam outras moléculas que cheiram a “ovos podres”. Isto é um nunca mais acabar de informações! Mas não se consegue perceber bem a biologia molecular sem perceber a química.
Entretanto, o RNA, feito a partir do DNA, tem as mesmas três bases deste (A, C e G) e uma nova base, o uracilo (U). Uma timina do DNA dá origem a uma adenina do RNA, mas uma adenina do DNA dá origem a um uracilo do RNA. Uma citosina do DNA dá origem a uma guanina do RNA e vice versa, ou seja temos T-A, A-U, C-G, G-C.
Nas bactérias e vírus é algo diferente (e há uma grande diversidade), podendo, por exemplo, os vírus entrar nas células e “escravizá-las” colocando o seu RNA a produzir novas proteínas e vírus. As proteínas das bactérias, sendo diferentes das que nós temos, podem ser impedidas de ser feitas, ou feitas de forma defeituosa, por moléculas conhecidas como antibióticos. O número de possibilidades é muito grande e, claro, tudo isto vai evoluindo, aparecendo novas mutações e possibilidades.
Até à invenção, em 1984, por Kary Mulis (1944-2019), do processo de que toda a gente já ouviu falar, o PCR (Polimerase Chain Reaction), os processos de identificação das sequências do DNA eram muito lentos, podendo demorar meses. Mullis, que ganhou o prémio Nobel em 1993, encontrou um método rápido e fácil de gerar um número virtualmente infinito de cópias do DNA, podendo identificar-se a presença de uma molécula de DNA apenas (mas há um problema que são as contaminações). O PCR desenvolve-se por ciclos, em que em cada um dos quais ocorrem cópias das duas tiras do DNA. Podemos imaginar que quantos mais ciclos tivermos mais cópias teremos, facilitando a identificação. Isto permite obter a sequência do DNA nalgumas horas. E como cada molécula de DNA é característica de um dado indivíduo, estirpe ou espécie, podemos com enorme precisão identificar a presença do vírus e das suas diferentes estirpes. Com esta ferramenta, podemos facilmente fazer testes de paternidade, identificar criminosos e sequenciar genomas (toda a informação hereditária de um organismo que está codificada em seu DNA), o que já era feito antes do PCR ser usado para testar a presença de vírus. O genoma humano, de muitos organismos e o do vírus da Covid-19, assim como das suas estirpes, são conhecidos.
Entretanto, é preciso refrear algum do entusiasmo que existe com a genética. Sequenciar um genoma, por exemplo, não nos leva diretamente ao indivíduo, nem poder encontrar um gene de uma doença, garante que essa doença se desenvolva. Muitas coisas são ambientais e muitas outras ainda não são bem conhecidas. Mas a possibilidade de correção de defeitos e muitas outras, como por exemplo a da medicina personalizada, são imensas. As possibilidade da ficção também. Por exemplo no “Parque Jurássico” de Michael Crichton (1942-2008), são feitos dinossauros a partir do DNA encontrado em fósseis. Tudo no livro é bastante razoável e verosímil, mas esta fantasia é ainda impossível.
Tenho também umas coisas a dizer sobre a história da descoberta DNA. Há bastante tempo que havia a ideia que havia transmissão de caracteres de para para filhos, não se sabia era como. Tudo se alterou com a descoberta do DNA. A estrutura do DNA foi publicada por James Watson (n. 1926) e Francis Crick (1916-2004) em 1953 a partir de um grande conjunto de dados de que os mais conhecidos são os de Rosalind Franklin (1920-1958) e de Linus Pauling (1901-1994). Entretanto, o prémio Nobel foi atribuído a Watson, Crick e Wilkinson, parecendo que foi esquecida Rosalind Franklin. Não é verdade. Quando o prémio Nobel foi atribuído em 1962 esta tinha já morrido de cancro dos ovários, sendo Maurice Wilkinson (1916-2004) o seu orientador da altura. Parece ser mais ou menos certo que Watson e Crick eram “ratoneiros” que usavam toda a informação que encontravam, mas de alguma forma é assim a ciência. Parte-se de informação que já existe para obter informação nova. Parece que a peça que faltava era um espectro de raios X de Franklin e que Pauling achava que era um tripla hélice baseado num espectro imperfeito. Há outra pessoa que é preciso recordar: Frederick Sanger (1918-2013). Este foi a única pessoa a ganhar dois prémios Nobel da Química, um pela sequência das proteínas e outro pela sequência das bases no DNA.
No castelo, situa-se a antiga fábrica de cerveja, que começou a ser construída em 1935, pela Sociedade Portuguesa de Malte e pela Lusitânia, mas que nunca chegou a funcionar. É uma antiga fábrica de cerveja que nunca produziu nenhuma! Este passeio já vai longo e em
vários outros falei da cerveja e tenciono falar mais quando escrever o passeio em Maastricht. Por algo só queria lembrar o que é o malte. Cevada que começa a germinar e que vai de seguida ao forno para secar. A partir do seu amido fermentado é feita a ceveja.
Toda a região do Algarve é muito rica em fósseis. No guia de geologia e paleontologia urbana de Faro são indicados vários percursos. Nem de propósito (pois só li esse guia depois) fotografei uma rua onde a calçada têm as quatro formas de calcário referidas: branco, preto, cinzento e rosa. O calcário é essencialmente carbonato de cálcio, mas adquire diferentes cores conforme os contaminantes. O calcário negro e cinzento será provavelmente devido a diferentes quantidades de matérias de carbono e o calcário rosa a sais de ferro.
Também em toda a cidade, há “ilhas ecológicas” com locais para reciclar papéis, plásticos, metais e óleos usados, e ainda para colocar lixo indiferenciado. Sobre isso
já falei anteriormente. Não tenho a certeza, mas as árvores que se veem na fotografia são grevílias,
árvore sobre a qual tinha também já escrito. Há uma publicação sobre as árvores de Faro, ou não fosse esta cidade a do botânico José Maria Brandeiro que tem uma rua com o seu nome. Perto da rua com o seu nome fica o elegante palácio de Belmarço, sobre o qual não direi nada – basta olhar. Mas vou referir as mezinhas populares do livro “Para grandes males grandes remédios”. A maior parte são fruto da ignorância e miséria, mas há coisas interessantes como mastigar cravinho para as dores de dentes (é um remédio milenar que envolve a molécula eugenol que ainda hoje é usada nos dentistas – aquele cheiro a cravinho não vos era familiar? - em massas provisórias ) e a “alva de cão” que são as fezes secas de cão que adquirem tonalidade branca. Acontece que essa tonalidade tem a ver com a alimentação, que envolvendo roer ossos, se reflete na cor, acho eu, e não por serem de cão.
A caminho de Faro, pela via do Infante, passámos por uma cimenteira que que no Google Maps parece ter um lago artificial, entre várias outras coisas que não percebemos bem. Depois, ao sairmos da auto-estrada, fizemos os últimos quilómetros da estrada mais famosa de Portugal, a N2, que vinda de Bragança, acaba em Faro, ao final de 738 quilómetros. Há coisas que não vi, como teatro Lethes e a adaptação do antigo matadouro municipal a biblioteca municipal. Sobre esse útimo aspecto - o dos antigos matadoutos municipais - há bastantes coisas que me interessam, em particular pela sua história, envolvendo o declínio destas estruturas e a suas adapções para usos culturais. Temos de voltar!
Bibliografia
Jeremy M. Berg, John L. Tymoczko, Lubert Stryer. Biochemistry, 5th Edition. New York: Freeman, 2002.
Luís Azevedo Rodrigues, Margarida Agostinho. Guia de geologia e paleontologia urbana: Faro. Ciência Viva de Lagos, 2012.
Museu Municipal de Faro. Para Grandes Males Grandes Remédios. Faro, 2012.
União das Freguesias de Faro. Breve história da cultura de Faro. Faro, 2018.
União das Freguesias de Faro. Guia das árvores de Faro. Faro, 2020.
[versão preliminar de 12 de Janeiro de 2022, com acrescentos de 13 de Janeiro de 2022]