Passeio químicos no Convento da Arrábida

[Na vinda do congresso SciComPT 2025, que foi este ano na Ilha da Madeira, pude passar no Convento da Arrábida para preparar a atividade que vou realizar 5 e 6 de setembro de 2025 no III Encontro de Professores Portugueses de Física e Química. No convento foram muito simpáticos e, com base nesta visita, escrevi as notas que apresento a seguir. Eu já havia escrito sobre a Arrábida, mas não tinha tido ainda oportunidade de ir ao convento.]

O convento de Nossa Senhora da Arrábida foi fundado em 1542 por Frei Martinho de Santa Maria (?-1546), religioso da Ordem de São Francisco, oriundo da alta nobreza espanhola, o qual havia sido convidado por D. João de Lencastre, primeiro Duque de Aveiro, após um encontro numa peregrinação ao Santuário de Nossa Senhora de Guadalupe, em Espanha, para usar os seus terrenos da Serra da Arrábida para a vida eremita que almejava. A Cartuxa era bastante radical como se pode ver no local. Entretanto, as propriedades dos duques de Aveiro foram confiscadas em 1759 e o título foi extinto, na sequência da condenação dos Távoras. Embora, os monges não fossem provavelmente donos do local, em particular das casas do convento, o fim das ordens religiosas em 1834, acabou por propiciar o fim do convento que devido aos seu isolamento foi vandalizado ao longo dos anos, tendo os duques de Palmela adquirido o convento em 1863. Em 1990, o espaço foi adquirido pela Fundação do Oriente que, desde essa altura, tem procurado dar-lhe funções compatíveis com o seu uso anterior, nomeadamente através de cursos e retiros.      

Uma das imagens mais fortes do convento é a estátua de um monge com os olhos vendados, boca fechada com um cadeado, ouvidos tapados com o capuz e coração com uma fechadura, tendo numa das mãos um silício e na outra uma vela. A estátua evoca o fundador do convento, Frei Martinho de Santa Maria, que está sobre um globo pisando uma serpente (disse a guia pois isso é pouco perceptível). Esta estátua deveria ser pintada pois nos pés ainda se notam restos de várias camadas de tinta. Também é pouco perceptível o que está escrito no globo. As leituras que fiz indicam que a estátua é de 1622 e há menções a Frei Martinho, aos fundadores e a uma passagem do Livro de Isaías (51:1), “olhai para a rocha de onde foste talhados, para a pedreira de onde fostes extraídos”.

Uma coisa que notei é que os vidros das janelas são todos posteriores a cerca de 1950, não parecendo haver vidros mais antigos (uma provável indicação de vandalismo). Como sabemos isso? Até esta data os vidros planos eram produzidos a partir do vidro fundido soprado e arrefecido estendendo-o ou passando-o em cilindros, tendo, assim, irregularidades que são visíveis. Alastair Pilkington desenvolveu um processo em que o vidro era solidificado em estanho líquido (ponto de fusão 232ºC) ficando com superfícies sem irregularidades e sem necessidade de ser polido (no caso da passagem por cilindros). Os únicos vidros que me pareceram mais antigos são os de algumas das relíquias visíveis na capela. Estas devem ter sido guardadas pela família Palmela que vendeu o convento à Fundação do Oriente. 

Há muitos canteiros com malva (Pelargonium graveolans). Este planta atrai abelhões e besouros, mas parece repelir os mosquitos. Uma rápida consulta à literatura refere que a composição do seu óleo essencial, obtida por cromatografia gasosa acoplada a espetrometria de massa, tem diferentes percentagens de citronelol, formato de citronelilo, geraniol, formato de geranilo e linalool (estou a simplificar os nomes). Tratam-se de moléculas terpenóides com dez e quinze átomos de carbono. Hoje em dia, graças a técnicas instrumentais  e à acumulação de literatura, a qual pode ser acedida via Internet, obtemos em minutos o que demoraria meses a obter, ou mesmo que não poderia ser obtido antes. Curiosamente não parece ter na composição do seu óleo essencial citronelal (1) que é muito usado em repelentes de mosquitos.

Chamou-me também a atenção a boca-de-lobo (Antirrhinum majus) que tem vários usos medicinais, mas é sobretudo uma planta modelo para estudar vários efeitos e genéticos e ambientais. Numa base de dados que costumo consultar de artigos científicos indexados (Web of Science, WoS) aparecem mais de 1600 artigos quando se procura por “Antirrhinum majus” e mais de 400 quando se procura “Pelargonium graveolens”.

Encontram-se espalhados pelas sebes e canteiros, exemplares selvagens de Rubia peregrina que tal como a Rubia tintorum (que era cultivada), tinha usos tradicionais em tinturaria, em particular para tingir de vermelho. O pigmento era extraído das raízes, sendo conhecido como garança ou alizarina, sendo que a molécula responsável pela cor é a alizarina.

Os monges não tingiam as suas roupas que eram feitas de tecidos grosseiros e crus. Não encontrei indicação de que tecessem as suas próprias roupas ou que cultivassem as plantas (em particular o linho) para obter o fio, mas remendavam as roupas, o que é visível nas imagens presentes nos azulejos ao lado da capela.  

Há vários exemplares de Agave americana no espaço do convento. Estes catos são facilmente identificáveis pelo seu verde e as riscas mais claras dos lados. Das fibras destes catos faziam-se cordas, podendo num deles ver-se as fibras. Estas fibras são de celulose. Só no século XX apareceram fibras sintéticas e cordas de nylon. Estas fibras são ditas sintéticas pois são fabricadas mas também podem ser consideradas artificias pois não existiam antes na natureza. Em qualquer dos casos, neste momento já fazem parte da Natureza, ou seja a Química contribuiu para estender a Natureza.   

No convento, dei conta da existência de um limoeiro. Um dos principais compostos relacionados com os limões é o limoneno, mas o cheiro a limão é muito complexo, envolvendo outros compostos como o citral. Embora haja por vezes a ideia de que o cheiro de laranjas tem que ver com um isómero do limoneno (isso até foi referido na versão popular do Prémio Nobel da Química de 2021), tal não é verdade. Também as laranjas têm limoneno, mas a mistura tem outras moléculas, originado o odor que identificamos como de laranja. Qual é a lição disto? Deve verificar-se tudo. Embora haja algumas fontes que nos parecem mais seguras, mesmo essas podem estar erradas. E devemos corrigir os erros, claro, mas ter alguma tolerância. Aliás, usando uma citação bastante engraçada de uma citação so livro "Science with a Smile": ficamos muitas vezes surpreendidos por haver alunos que hoje não sabem o que mais tarde damos conta de que está incorreto. 

Como os monges eram eremitas não recebiam peregrinos nem tinham botica para o exterior, mas em situações de epidemias, podiam acolher e tratar doentes. Na igreja, numa sala no segundo piso estavam os noviços.  Como mostrou a guia, dessa sala podia assistir-se à missa, mas não ver o público que assistia à missa. Por outro lado, explicou a guia, os duques de Aveiro, donos dos terrenos, tinham acesso a uma janela de onde poderiam assistir à missa. 

A tinta branca em alguns dos edifícios é moderna, tendo o dióxido de titânio como pigmento. Esta tinta é também plástica e forma polímeros impermeáveis à água, originando assim deformações visíveis nas paredes. Faço notar que embora estas tintas tenham essa desvantagem, as tintas tradicionais têm muitos outros problemas. O pigmento branco poderia ser à base de carbonato básico de chumbo (alvaiade, que é venenoso e escurece por formação de sulfureto de chumbo), ou de cal (hidróxido de cálcio) que nesse último caso era absorvido pela parede (este efeito pode ver-se em várias partes). No último caso, as tintas de cal, tinham de ser aplicadas mais vezes, mas sendo permeáveis e não formando polímeros, não têm as clássicas "barrigas."      

Em várias paredes nota-se um corante vermelho que só uma análise confirmaria a composição, mas será provavelmente óxido de ferro (III). Há outras partes pintadas de amarelo, que na tinta tradicional envolve outro composto de ferro, o hidróxido de ferro (II). Os sais de ferro são muito versáteis. Podemos ter um verde de óxido de ferro (II) e até um escuro com óxido de ferro (II, III). 

O sistema hidráulico desenvolvido pelos monges é visível ao longo de todo o percurso e funciona por gravidade. Os canos antigos são feitos com telhas romanas e a água vai descendo das fontes situadas acima. A água, além de passar na cozinha vai ter a uma lavandaria onde os monges se purificavam com água corrente. No local onde era recolhida a água para o sistema hidráulico, havia formas de regular o caudal da água que desapareceram.

Salta à vista o que parece ser reciclagem de porcelanas, em arranjos artísticos, mas a guia explicou que eram porcelanas que ofereciam aos monges e que estes quebravam para esse efeito. Ao longo de todo o espaço nota-se a preocupação em ter uma arquitetura e decorações “pobres”.  

Em vários sítios, em particular nas escadas para o coro alto, notam-se as dolomias, rochas de cor creme, que são de carbonato de cálcio e magnésio. A estrutura cristalina era bem conhecida, mas só há pouco tempo foi desvendado o mecanismo da sua formação através da simulação computacional do crescimento dos cristais, tendo-se concluido que estes crescem lentamente, sendo feita a lavagem dos defeitos cristalinos (2).   

Na porta da capela e nas enxergas dos monges era usada cortiça. Este material isolava tanto do som como das condições climatéricas. A natureza é relativamente económica nas moléculas que fabrica, mas é muito imaginativa. A cortiça é essencialmente composta de suberina, lenhina e celulose. A suberina é um polímero natural com dois tipos de monómeros, uns aromáticos (compostos derivados do benzeno que têm anéis ciclicos de seis carbonos e seis hidrogénios) e outros alifáticos (compostos de cadeias lineares). Os compostos aromáticos aqui presentes são derivados do ácido cinâmico e os alifáticos são hidroxiacidos com dezoito carbonos. Já a lenhina é constituída por polímeros de vários monómeros, sendo na cortiça o mais comum o guaiacol. Há mais compostos, mas a seguir à suberina e lenhina, temos a celulose que é constituída de monómeros de glicose. É a organização espacial e emaranhado destes polímeros naturais  que origina a cortiça. 

Parece também um emaranhado de nomes, mas para realçar as semelhanças entre os compostos presentes em várias plantas, faço notar que o ácido cinâmico é muito parecido com o aldeído cinâmico que dá o aroma à canela, o guaiacol é o principal constituinte do cheiro a fumo e a glicose é o açúcar das uvas. O amido não existe na cortiça, mas só difere da celulose na forma como se ligam as moléculas de glicose, sendo que a celulose é insolúvel e o amido muito solúvel.  

Na capela pode também ver-se o que parece ser um grampo cravados na pedra usando chumbo que é um metal muito maleável e de baixo ponto de fusão que serve muito para esse efeito de "chumbar."  

Disse a guia, que os pratos dos monges eram feitos de conchas de vieira e os copos de cortiça e que a dieta destes consistia em legumes, peixe e ovos. Estes só tinham uma refeição por dia consumida em silêncio enquanto ouviam um monge a fazer leitura sagradas. A formação das vieiras, que são essencialmente carbonato de cálcio, é surpreendente. Tal como nas árvores cortadas, notam-se nestas linhas mais escuras correspondentes aos seu crescimento, podendo estimar-se os anos da sua vida e ter-se uma ideia das condições por que passaram. Podemos imaginar que os monges no seu silêncio, vida contemplativa e meditação puderam também observar isso. 

Agostinho da Cruz, nos seus sonetos refere essa contemplação minuciosa, mas num deles refere também os peixes que foram pescados e que vai assar (ruivos, salmonetes, carregadas, vesugos, choupas, tainhas e linguados), assim como as árvores e arbusto de que fará os espetos (medronho, aroeira e esteva). Embora estes peixes talvez fizessem parte da sua alimentação, não é claro quanto do poema é imaginação. Em particular, chamou-me a atenção a carregada que parece ter nome vulgar de peixe-remo ou regaleco (Regalecus glesne) que é um peixe das profundidades, bastante grande e, parece, que não muito saboroso. É curioso que a aplicação de inteligência artificial do Google, o Gemini, apresenta no resumo da pesquisa, algo baseado no que foi escrito no Instagram de uma peixaria: este peixe ser “mau para a cicatrização”. Mas essa afirmação não parece não ter base científica, aparecendo nesse texto outros peixes “maus para a cicatrização” como sejam o cação e a cavala. Nunca tal tinha ouvido ou lido! O que queria chamar a atenção com isto, é que não pode aceitar algo só porque está escrito ou foi dito. Deve verificar-se, tanto quanto for possível, e procurar a sua coerência. 

É interessante a imagem de Santa Maria Madalena em terracota, ou seja de argila cozida no forno. É o mesmo material de que são feitas as telhas. Estas eram (e ainda são) obtidas pela cozedura do barro, o qual nesse processo perde moléculas de água e fica rígido, formando-se ligações química adicionais. Continua, no entanto a ser poroso, deixando passar a humidade. Por esse razão não é boa ideia pintar as telhas com tintas poliméricas. A cor vermelha é devida aos óxidos de ferro. Há também em vários locais, em particular junto do refeitório e da cozinha, chão de ladrilhos de barro, obtidos pelo mesmo processo. 

Os materiais cerâmicos tradicionais podem ser separados em quatro grupos: terracota, obtida a partir da argila vermelha com impurezas, textura áspera e muito porosa, com a temperatura de forno entre 800-100 ºC ; faiança, obtida a partir de argila branca com algumas impurezas, textura áspera e porosa, com a temperatura de forno de 1050-1150ºC; grés, obtido com argila de grés cuja cor vai do branco cremoso ao marfim rosado com algumas impurezas e áspera, mas não porosa, com temperatura de forno entre 1100-1300ºC, resistindo ao risco do ferro e vitrificando; porcelana, com argila de porcelana que é composta de caulino, quarto e feldspato, sem óxido de ferro, densa e fina, não poroso, com temperatura de forno 1300-1400ºC, vitrificando.     

A cozinha não tem quase objetos, mas estão penduradas grelhas onde poderia ser assado peixe ou colocadas panelas sobre brasas. Para além disso, tem uma chaminé bastante alta que é visível do exterior e que está coberta por dentro de negro de fumo. Quanto mais alta a chaminé,  maior é a extração do ar. É muito curioso o fenómeno, mas apenas a presença da chaminé faz com que devido à diferença de pressão entre a base e o cimo se gere a extração do ar inferior. Sobre o fumo o que se acumula nas paredes interiores da chaminé, devemos lembrar que são séculos a cozinhar. Este tem uma grande composição de carbono e é basicamente carbono amorfo e hidrocarbonetos poliaromáticos (PAH). O depósito é combustível e para evitar fogos entre outros problemas havia no século a profissão de limpa-chaminés, tendo sido a origem da ligação entre fumo e cancro. Este pode ser usado como corante negro e é usado por exemplo na tinta-da-china. Para além disso, cada carro tem cerca de 200 g por pneu, ou seja cada carro transporta cerca de 1kg. 

É também interessante o relógio que funciona com base na gravidade, como se pode ver pelos pesos. Relacionada com a Química, queria chamar a atenção para o latão que parece ouro. Trata-se de uma liga de cobre e zinco, sendo os melhores resultados de "parecer ouro" obtidos com mais de 35%de zinco. Composições que tenham valores inferiores de zinco começam a dar uma tonalidade avermelhada ao material. Os pontos de fusão, à pressão atmosférica, do cobre e zinco são, respetivamente 1085ºC e 420ºC. O latão, sendo uma liga dos dos dois metais, tem em geral um intervalo de fusão que vai depender da sua composição entre 900ºC e 940ºC, podendo ser maior com ligas com mais percentagem de cobre. Neste caso não há abaixamento significativo do ponto de fusão da mistura devido a um ponto eutético, como no caso da solda de estanho e chumbo. De facto, o estanho tem ponto de fusão 232ºC e o chumbo 327ºC, fundindo a solda a 183ºC. 

Sebastião da Gama (1924-1952), conhecido como poeta da Arrábida, é uma figura que deve ser muita cara aos professores. O seu Diário, escrito enquanto estava a fazer estágio no ensino, cerca de 1947, e editado postumamente em 1958,  continua hoje a ser uma referência importante sobre os métodos pedagógicos centrados nos alunos e a entrega ao ensino. Este havia nascido em Azeitão e sofria de tuberculose, numa altura que esta doença não tinha tratamento, morrendo novo.

Numa palestra  para juízes, Laborinho Lúcio refere que não se espera nem o sacerdócio (o que acha ser demasiado) nem que estes sejam mercenários (o que considera ser muito pouco). Poderíamos dizer ao mesmo aos professores. Os exemplos dos monges da Arrábida e de Sebastião da Gama são  inspiradores pois muitas vezes a entrega conduz à liberdade e à realização, mas é preciso não esquecer o pragmatismo e a organização que nos fazem obter os melhores resultados. 

(1) Os químicos conhecem bem a diferença que faz uma letra. Citronelol é um álcool e citronelal um aldeído que provavelmente tem um odor mais adocicado.

(2)  Kim et al. (2023). Dissolution enables dolomite crystal growth near ambient conditions. Science, 382, Issue 6673, 915-920. DOI: 10.1126/science.adi3690

Referências

Ana Assis Pacheco, “Humilde e abreviada arquitectura”: os arrábidos e a materialização da Estrita Observância (1542-1698), Lusitania Sacra, 44, 111-136, 2021. 

José Tolentino Mendonça, A atualidade de Frei Agostinho da Cruz, Setúbal, 2020.

Eva Pascual. Conservar e Restaurar Cerâmica e Porcelana. Editorial Estampa, 2005.

Fundação do Oriente. Convento da Arrábida. 2025.

Paulo Pereira, Paula Benito. Convento da Arrábida: a porta do céu. Fundação do Oriente, 2006.


Passeio Químico em Setúbal

[Aproveitando que fui preparar um Passeio Químico no Mosteiro da Arrábida para o III Encontro de Professores Portugueses de Física e Química, visitei Setúbal brevemente e fiz algumas fotografias, mas acabei por não visitar uma parte das coisas que queria. Visitei, no entanto, o Museu do Trabalho, que fica instalado numa antiga fábrica de conservas, andei um pouco pela cidade, comi choco frito e escrevi este texto.]

Setúbal é uma interessante cidade na foz do Rio Sado. Para além da história e dos personagens como Bocage, que está imortalizado num estátua colocada bastante alta e a cantora Luísa Todi, e muitas outras coisas, saltam à vista as chaminés das antigas fábricas de conservas.

Já referi, a propósito do Passeio Químico na Arrábida, as salgadeiras de peixe romanas, conhecidas como cetéreas. A partir do século XVI, o “tempo do peixe” deu lugar ao “tempo do sal” e, a partir do século XIX, ao “tempo das conservas”, que entretanto deu lugar agora a outros tempos. Ao longo da cidade podemos ver muitas chaminés de fábricas de conservas desativadas. Nalguns textos encontrei alguma perplexidade com isso, mas os diferentes autores acabaram por se decidir pela ideia de memória.  

A forma como funcionavam antigamente as “fábricas de peixe” ou de conservas pode ser vista no Museu do Trabalho, também denominado Museu Giacometti, que está instalado nas antigas instalações da fábrica Perines de conservas de peixe. Esta ainda usava latas de conserva de folha de Flandres (aço recoberto de estanho) que eram soldadas e abertas com uma chave caraterística. Mais recentemente as latas de conserva são de alumínio, sendo usado um verniz designado por BADGE (do inglês Bysphenol A DiGlycidyl Ether). Este não foi retirado, mas em 2024 a UE fez uma diretiva em que se retirava a bisfenol A, o qual só poderia ter valores inferiores a 0.05 mg/kg.
Note-se, mas uma vez a evolução tecnológica e científica. As latas de folha de Flandres iniciais era o estanho que estava em contacto com os alimentos. Nas latas de alumínio, era o seu óxido. Isto começou a a ser considerado inaceitável, tendo começado a ser usado um verniz. Esse verniz liberta bisfenol A e há 20 anos atrás Lopes e Pereira referem um limite de 1 mg/kg, o qual é hoje em dia 200 vezes menor (0.05 mg/kg). Isto reflete o nosso maior conhecimento e capacidades analíticas. 

No museu é também mostrado como eram impressos os rótulos de papel destas conservas antigas, usando litografia. Esta técnica baseia-se na incompatibilidade da gordura com a água. A pedra litográfica recebe uma imagem com tinta à base de gordura, sendo coberta em seguida com goma arábica acidificada. A goma arábica, que é um polisacarídio, liga-se bem a essa tinta mas não à água com que a pedra é humedecida. A partir daqui a imagem fixa na goma arábica pode ser usada para fixar mais tinta e realizar as impressões. 

Podem ainda ver vistos outras atividades antigas como uma loja. Parecem só estar disponíveis os materiais tradicionais em metal, madeira, porcelana e vidro. Mas, se olharmos com atenção, embora não sejam tão visíveis e ubíquos os polímeros sintéticos como são hoje em embalagens, móveis e equipamentos, estes estão presentes nas tampas de alguns frascos.     


Voltando às chaminés, é na maior empresa de Setúbal, a Navigator, que encontramos a maior caldeira a gás natural portuguesa (li em notícias), a qual pode ser convertida para utilização de hidrogénio verde. A queima de gás natural, essencialmente metano (CH4) produz menos cerca de 20% de CO2 que a queima de fuelóleo para a mesma energia obtida, mas a queima de hidrogénio é ainda melhor pois não produz nenhum dióxido de carbono (2H2+O2→ 2H2O).

Em 1859, a iluminação a azeite cedeu o lugar à iluminação a gás, mas não encontrei o lugar dos gasómetros. Como já referi em muitos passeios, em todas as grandes cidades, a partir de meados do século XIX, o gás, que era obtido com o aquecimento do carvão, era usado para iluminação. Em Setúbal, apenas em 1927 foram encomendados os primeiros estudos, e só a partir de 1930 a eletricidade só começou a ser usada nas casas. 

A desativada central termoelétrica de Setúbal é um exemplo interessante da evolução tecnológica. Esta começou a ser parada em 2012 e o espaço está agora quase limpo, tendo as suas duas chaminés sido demolidas em 2020. Esta central havia sido projetada antes do choque petrolífero de 1973 e funcionava a fuelóleo. As suas quatro unidades podiam fornecer cerca de mil megawatts (MW), consumindo cerca de 64 mil toneladas de fuleóleo por dia. A sua eficiência era da ordem dos 40% e já por aqui vemos como era considerada hoje antiquada, havendo atualmente centrais de ciclo combinado que atingem mais de 60% de eficiência. Ainda mais relevante, era muito poluente e só nos anos 1990 começaram a ser instalados (pois só nessa altura se generalizaram) sistemas computadorizados de monitorização e despoiradores eletrostáticos.    

A aquicultura no estuário do Sado tem tido um desenvolvimento significativo, associado ao declínio da salinicultura e à transformação das salinas em viveiros de peixe. Produz-se dourada, robalo, linguado e ostra, entre outras espécies. Como já referi, no recente Passeio Químico na ilha da Madeira, a aquicultura ultrapassou a pesca em quantidade disponibilizada, sendo que envolve muitos desafios em relação à qualidade e segurança alimentares, sustentabilidade ambiental e bem estar animal. Os peixes mais “esquisitos” em termos de dieta acabam por ser os mais difíceis de domesticar e alimentação é um dos principais fatores para o sucesso desta atividade. Como estes têm milhares de sensores para o paladar, a formulação cuidadosa dos alimentos envolvem muito trabalho e investigação química.   

A cultura da vinha assume uma grande importância no setor agrícola do concelho. O moscatel de Setúbal é um vinho fortificado ou licoroso. É parada a fermentação do mosto com a adição de aguardente ficando a graduação entre 17 e 18º. Nesse aspeto é parecido com o vinho do porto. A origem da expressão “sol em garrafa” intrigou-me, sendo atribuída ao francês Léon Douarche. Só num local referiam os anos 1930 para essa ideia. Por outro lado, em 1949 numa introdução ao romance “Horizonte cerrado” Alves Redol refere que a expressão “sol engarrafado” era usada para o vinho do Porto. 

Não visitei o Balneário Dr. Francisco de Paula Borba, o Portal da Gafaria ou o Mercado do Livramento (era fim de semana). O Balneário foi concluído e inaugurado em maio de 1926. Este servia os utentes da Misericórdia mas também o público em geral. Estava divido em três classes, sendo que na primeira classe as cabinas de imersão eram equipadas com banheiras inglesas de ferro esmaltado. Mas outras duas classes as cabines de imersão eram de brecha da Arrábida e cimento. Todos tinham casas de banho e dispositivo de desinfeção pelo vapor. No telhado ficavam dois tanques com capacidade de 10 mil litros (penso que somadas as capacidades). Este balneário deve fazer-nos refletir sobre várias coisas. Primeiro, os equipamentos de banho nas casas não eram comuns como são hoje. Em 1970, num censo nacional, mais de 50% das casas portuguesas não tinham água canalizada, banho, retrete ou luz. Por outro lado, a estratificação da sociedade que fez com que existissem três classes. Se notarmos os equipamentos das várias classes, reparamos que não eram muito diferentes (tirando as banheira de ferro esmaltado na primeira classe, as quais eram importadas), mas havia uma separação muito vincada entre as pessoas, embora a água fosse a mesma. O Portal da Gafaria, situado na Avenida da Portela, evoca um tempo em que a lepra era uma doença para a qual não havia cura e que os doentes eram isolados. Trata-se de uma doença, conhecida desde antiguidade e de evolução lenta, causando deformações. Só a partir dos anos 1940 apareceram alguns medicamentos para o seu tratamento, sendo hoje curável em ambulatório. As gafarias são hoje apenas memórias de um tempo antigo. 

Uma outra doença que existiu no estuário do Sado, mas também existiu nos estuários do Tejo, Mondego, e outros rios, e mesmo em Berlim, em geral em zonas temperadas com águas paradas, era o malária, ou paludismo. Hoje, as pessoas receiam que a doença venha de África para a Europa, mas já tivemos malária aqui, tendo as pessoas febres intermitentes. Tal como em África, as principais vítimas eram as crianças pequenas. Como acabou aqui na Europa? Com a drenagem dos pântanos e a morte dos mosquitos com DDT (diclorodifeniltricloroetano). De facto, em meados do século, campanhas uso maçico do inseticida acabaram com a doença na Europa. Ao mesmo tempo, apareceram tratamentos melhores para além da quinina, conhecida desde a expansão marítima. Poderíamos ficar a falar sobre malária de química interminavelmente, mas temos de acabar.  

A SAPEC foi criada em 1926 para explorar as pirites do couto mineiro do Lousal, mas rapidamente incluiu outros negócios como os adubos. Estas minas foram desativadas nos anos 1980, havendo agora no local um Centro de Ciência Viva que através da Fundação Frédéric Velge, está ligado à SAPEC. Há em Setúbal outras empresas relacionadas com a Química. Já referi a Navigator e a SAPEC e vou em seguida referir a Carmona. A grande fábrica de engarrafamento da Coca Cola situa-se também em Lisboa. Embora não seja um negócio químico,  envolve um conjunto operações que vão desde o uso de dióxido de carbono no refrigerante, baixar o pH com ácido fosfórico (E338), obtenção do caramelo por vias ácidas e básicas, etc. que podem ser interessantes para explorar. Há muitas outras, mas chamou-me a atenção a Lallemand que produz leveduras. Não sendo as leveduras um produto químico, estas proporcionam muitas reações químicas que nos interessam com as da fermentação alcoólica. 

A fábrica das baleia é um aspeto curioso e menos conhecido da cidade. Funcionava junto à União Elétrica Portuguesa (UEP), relativamente perto da entrada da SAPEC, na estrada da Miterna. Nos três anos que a sociedade se manteve ativa foram capturadas 408 baleias e 54 cachalotes que produziram 2013 toneladas de óleo. Fechou em 1928 mas voltou à atividade de 1947 a 1951. Também já referi várias vezes as razões pelas quais se capturavam baleias. No século XX, a principal razão era o uso do seu óleo para a produção de margarinas e para óleos finos. Hoje em dia, essas utilizações foram todas substituídas pelas melhores formas de obter óleos vegetais e alteração química dos óleos minerais (obtidos do petróleo) lubrificantes. Além disso, há toda um conjunto de novas indústrias de reciclagem e reutilização de óleos minerais e outros produtos petrolíferos (em Setúbal, a Carmona, por exemplo). Os óleos vegetais são reciclados para a produção de biodíesel e detergentes, por exemplo. Nas idas às escolas costumo perguntar aos estudantes se sabem o que é o quadrado branco com B7 que aparece nas bombas de gasóleo. Alguns já repararam, mas em geral não sabem. Indicam que 7% de biodíesel é acrescentado (legalmente esse é o mínimo, havendo uma empresa que tem 15%). Por outro lado, os óleos minerais dos carros são regenerados e reutilizados. 

Tirei um fotografia de uma árvore das garrafas (Callistemon citrinus) que está na origem de um herbicida, a mesotriona. A empresa que começou a comercializar esta molécula, indica ter sido descoberto com base numa observação de 1977 de que debaixo desta árvore não nasciam infestantes, sendo sido comercializado a partir de 2001. É hoje um produto que já não está protegido por patentes, não deixando de ser curioso que a marca inicial (Callisto) use como símbolo uma flor da árvore. Outro herbicida muito conhecido é o glifosato que foi descoberto nos anos 1970 e é hoje também um genérico, mas é muito conhecido pela marca que primeiro o conteve (Roundup). De entre os muitos outros herbicidas aprovados, refiro o triclopir que é também genérico, mas é muito conhecido pela marca Galron

Nesta altura do ano, as árvores das garrafas estão em flor por todo o país. Sabemos hoje muito mais sobre elas e sobre a o mundo natural do que sabíamos há centenas de anos e isso deve acrescentar beleza e admiração, não as retira nem as destrói. Também acrescenta mais responsabilidades, é certo, pois não podemos evocar a ignorância nem o privilégio. E devemos às pessoas que lutaram e trabalharam, e ainda lutam e trabalham, para fazer um mundo melhor, em particular, poetas, pensadores e trabalhadores de Setúbal, não ter medo de sonhar com os olhos abertos.    

Referências

António Cunha Bento, Francisco Moniz Borba. O balneário: Memória de Setúbal, 2017

Augusto Martins. Breve História da Baixa de Setúbal. Edição de autor, 2016.

EDP – Eletricidade de Portugal SA. Central Térmica de Setúbal, 1993.

José A. Salvador. Moscatel de Setúbal: o príncipe dos Moscateis. Edições Afrontamento, 2010.

José Manuel Madureira Lopes, Alberto Manuel de Sousa Pereira. A Indústria das Conservas de Peixe em Setúbal, Estuário, 2015.

Maria do Carmo Vieira da Silva. Descobrir Setúbal: Itinerários Pedagógicos. Escola Superior de Educação de Setúbal, 1992.

Nuno Marques (coord.) Setúbal, uma baía aberta ao mundo: Retrato da Economia do Concelho. Câmara Municipal de Setúbal, 2021.

Rui Canas Gaspar. Histórias, coisas e Gentes de Setúbal. Edição de autor, 2015.