Passeios Químicos no Sul de Itália

[Como tenho feito noutros anos, aproveitei as férias que fizemos no Sul de Itália, em particular na Puglia, para referir alguns aspetos químicos em que reparei. Fiz uma pesquisa inicial, mas fui complementando o passeio com outras reflexões que localmente fui fazendo. Não consegui colocar todas as fotografias que tinha para ilustrar este texto, nem sequer coloquei as melhores (acho eu), mas procurei colocar as que estavam mais relacionadas com o que escrevi.]

Bari é para um químico italiano, um nome muito curioso, pois é a mesma palavra usada para o elemento químico 56, o bário. Chegamos a esta cidade ao fim do dia e havia muita animação na rua e um caos de estacionamento. Nas ruas junto ao mar, os carros estavam em segunda fila e havia carros estacionados por todo o centro histórico, com as as praças e ruas cheias de pessoas. Mas tudo isso se esfumou magicamente pela meia-noite, ficando a cidade muito calma. 

Um dos aspetos que tinha investigado, foi o acidente com armas químicas que aconteceu em 1943, no porto de Bari, durante a Segunda Guerra Mundial. Um navio americano com gás mostarda foi bombardeado pelos alemães, originando cerca de cem vítimas devido ao gás. A incidente foi mantido secreto pois as armas químicas estavam proibidas durante a Guerra e os americanos disserem publicamente que só as usariam como retaliação em relação ao uso de armas químicas por parte dos alemães. Não procurei, nem encontrei, qualquer referência a isso, mas uma visita ao museu local mostrou-me, o que depois fui verificando: que quase não há referências à Segunda Guerra Mundial, mas há muitas (neste museu havia) à Primeira Guerra Mundial.

É costume evocar a ideia (estafada) da desorganização italiana e das diferenças entre o Norte e o Sul, que os “semáforos são obrigação em Milão, sugestão em Roma e decoração em Nápoles”, etc. Não é verdade, as pessoas são semelhantes à partida, simplesmente, o Sul tem estado na periferia e abandonado à sua sorte e aos seus problemas. No meio da beleza da paisagem, da tolice e do génio, iremos encontrar alguns problemas horríveis e muitas soluções fantásticas em que a generalidade dos turistas não repara (e eu estou a incluir-me nesse conjunto), mas também a generalidade dos italianos. Ao longo do passeio, irei referindo algumas ligadas à química em que reparei, mas tenho a consciência que há muitos mais em que não reparei.  

De Bari seguimos para Polignano a Mare, Monopoli (sim, o nome é idêntico ao do jogo) e Alberobello. Há povoações muito bonitas, com praias fantásticas de águas muito azuis e mornas (a temperatura da água variava entre 25 e 27ºC). Fomos a uma praia no Polignano a Mar, julgo que Lama Monaquile, que é de rochas e tem uma ponte muito interessante. Foi aqui que reparei pela primeira vez nas rochas calcárias esburacadas e rendilhadas. Iremos encontrar esse efeito de várias maneiras ao longo da viagem.

Polignano a Mare é uma povoação típica desta parte do país, muito organizada no que concerne ao trânsito e estacionamento. Reparei no monumento relativo à Primeira Guerra Mundial, mas onde havia também uma placa relativa aos soldados mortos em missões de paz atuais, e numa caldeira que usa gás natural (essencialmente metano) para aquecer a água.  Depois encontrei “Metano” escrito em bombas de gasolina. Depreendi que têm bastantes carros movidos a gás natural. A combustão do metano (CH4) liberta um pouco de menos de dióxido de carbono do que os combustíveis normais e é mais limpa, mas, além de continuar a produzir CO2, exige depósitos de gás que aceitem até cerca de 160 atmosferas.     

Monopoli é uma povoação lindíssima, mas reparei em duas chaminés muito altas na zona portuária. O que eram? Verifiquei que era uma antiga fábrica de cimento abandonada que várias organizações têm tentado requalificar. E aproveito para fazer um aparte. Eu “não procuro só as coisas feias” como já fui acusado, mas não deixo de as ver. Eu reparo e valorizo muito as belas, mas entendo que as “menos belas” fazem parte da realidade humana e que, de certa forma, são também belas. Partilho do aforismo atribuído a John Constable de que “nunca vi uma coisa feia na minha vida” e concordo com o que é atribuído a Coco Chanel de que “nada é feio se estiver vivo”.      

Alberobello é a famosa povoação dos Trulli (Trullo no singular) que são casas de pedra com telhado cónico, também de pedra, as quais eram originalmente construídas sem ligante entre as pedras, havendo várias versões, mais ou menos lendárias, sobre a sua origem. Muitas destas têm a ver, claro, com miséria e condições locais, mas também com a invenção humana. Uma coisa que me chamou a atenção foi as diferenças de cor entre telhados e as paredes exteriores. Como alguns telhados estavam ao alcance pude verificar que o tom mais escuro era devido aos fungos que crescem nas rochas e que, por outro lado, o branco das paredes se devia provavelmente a estas serem pintadas ou caiadas. É uma povoação cada vez mais turística, com exposições dos “verdadeiros trulli” (ver mais à frente), artesanato relacionado, etc.  


Foi aqui que reparei numa planta que identifiquei como sendo alcaparras (Capparis spinosa) cujos botões das flores são postos em vinagre e por vezes uso nos meus pratos. Nunca imaginei que era isso e que a planta era tão comum aqui, crescendo nos muros. 

Entrei, por acaso, numa loja de vinhos que estava vazia e o dono achou que teria “capturado” um bom cliente e fechou a porta. Os vinhos eram caríssimos e senti que entrei numa “armadilha para turistas” mas acabei por provar um vinho (que nem achei grande coisa – tendo depois bebido num restaurante um de muito melhor qualidade) de uma casta de que nunca tinha ouvido falar: “Primitivo”. 

Trata-se de uma casta tinta que dá origem a vinhos complexos e caraterísticos que podem ter graduações em etanol altas (vi num supermercado 15% - volume de etanol em volume de água) muito cultivada aqui e que tem a caraterística principal de amadurecer mais cedo (daí o nome). Depois reparei em extensões enormes de vinhas desta variedade, com uvas que já pareciam maduras. Como é conhecido, o vinho é obtido da fermentação da glicose das uvas, originando etanol, sendo parado o processo antes de atingir o seu fim que é a produção de ácido acético.
Dito assim, parece simples, mas a produção de vinho envolve muitos outros aspetos que já aflorei antes. A denominada graduação é uma percentagem de volume em volume de etanol em água. Eu costumo fazer com os alunos do primeiro ano uma aula antes da Festa das Latas em que estimamos as concentrações e discutimos, sem moralismos as questões da segurança, e outros aspetos científicos relacionados com o consumo de álcool (quem quiser saber mais pode ler o artigo que escrevi sobre o assunto). Uma nota sobre o “Primitivo Branco”. No restaurante a que fomos, pedimos vinho a copo, e quem nos atendeu referiu essa possibilidade. Nós escolhemos um copo de “Primitivo” clássico e outro de “Primitivo Branco”. Entretanto, eu não encontrei nos supermercados a versão branco, tendo só encontrado o rosé. O branco só seria possível a partir de uvas tintas com aplicação de uma técnica de bica aberta. Nesta forma de fazer vinho, o sumo é separado das cascas que são a fonte das antocianinas responsáveis pela cor.     

De Alberobello fomos dormir em Locorotondo, encantadora localidade com um centro histórico de forma muito redonda e com casas muito brancas. Notava-se que essa beleza e organização era conseguida com muita manutenção. A localidade é notável também pelo cultivo dos aspetos culturais e históricos. Trouxe de lá uma monografia local que tem um interessante artigo sobre o Trullo de Marziolla, que é uma das mais antigas construções deste tipo, não tendo cimento a unir as pedras, e não sendo tão pronunciada a diferença entre as cores das paredes e telhado (nas fotografias que vi). Está situado numa propriedade privada e não fomos lá. 

É notável a construção de muros e paredes de pedra que permite a condensação da água que está na atmosfera. Nas zonas secas isso é fundamental para as plantas e também para as pessoas. Nesta região há centenas de quilómetros de muros e parece tratar-se de uma técnica tradicional com muito interesse (mais à frente, ao referir Matera, chamo atenção para o facto de isso ser também reconhecido na atribuição do estatuto de Património da Humanidade). Ao meditar sobre isto, pergunto-me se não será esse fenómeno que torna as casas com paredes grossas de pedra mais frescas, da mesma forma que a água fica fresca nas bilhas de barro, em vez da usual explicação da capacidade térmica. Depois da condensação da água nas pedras, a sua lenta evaporação com o calor, pode contribuir para o arrefecimento, uma vez que a evaporação é um fenómeno endotérmico. 

Estima-se que existam na Puglia cerca de 60 milhões de oliveiras, 15 milhões destas com mais mil anos, estando, atualmente, cerca de 10% doentes, atacadas por Xyllela fastidiosa, a qual é uma bactéria que, não tendo impacto na qualidade do azeite, pode causar a morte da árvore. Este número impressionante de oliveiras reflete-se em extensões enormes com esta árvore. No século XIX, algumas pessoas ficaram muito ricas com a venda de azeite para iluminação a países como a Grã-Bretanha. Deve notar-se que antes do aparecimento do petróleo e da eletricidade e com o desenvolvimento de candeeiros que produziam muitas luz à custa do uso intensivo de óleo, provocou este aumento de procura muito grande. Paralelamente, desenvolveu-se a caça às baleias pelo óleo que se obtinha. 

Não há tratamentos eficazes contra a Xyllela fastidiosa, embora desde há vários anos sejam estudados métodos para a combater. Vi um trabalho que me pareceu muito interessante com óleos naturais. Os inseticidas, para o inseto vetor, são uma outra possibilidade, por vezes evocada, mas provavelmente pouco eficaz. Outra possibilidade é o cultivo de variedades ou híbridos mais resistentes, mas isso não resolve o problemas das oliveiras milenárias.

O alerta foi dado em 2013 e, em 2015, teve início um processo judicial insólito contra 10 cientistas acusados de “criar a doença”. Eu tinha nos meus arquivos vários artigos sobre esta questão (inclusive um artigo da revista Nature), datados de 2015, pois pareceu-me, na altura, muito importante e crítica a questão. Fui agora consultar esses artigos e ver o que aconteceu depois. Já em 2015, apontava-se para que a acusação fosse infundada e, mais do que isso, absurda, mas só em 2019 o caso foi arquivado. Segundo percebi, estava em causa um conjunto de questões, desde a doença ser, ou não, considerada endémica ou recente (sobre isso parecia que estava a ser chegado a acordo com os peritos da acusação em 2015). 

Neste contexto, é preciso notar que uma doença ser considerada endémica e antiga ou recente tem efeitos completamente diferente, sendo que no segundo caso leva a restrições e quarentenas que teriam efeitos devastadores na economia da região. Por outro lado, havia na altura (e penso que ainda hoje) acusações de pressão imobiliária e a recusa intransigente do uso de inseticidas, etc. Sobre os trabalhos e resultados científicos que serviram de base ao processo, vale a pena refletir, mesmo sendo estes maioritariamente da área da Biologia. Os dados brutos analisados pelas diferentes equipas apontavam para várias sub-espécies e variedades da bactéria e foram muitas vezes interpretados de formas diferentes, corrigidas e alteradas as análises. É assim que funciona a ciência, mas chegar a tribunal é um caso extremo.  

Da observação das oliveiras milenárias que há na região, fomos para Ostuni, conhecida como a cidade branca. A pressão turística é muito grande e eu espero que a Locorotondo, sendo muito mais cuidada, não lhe aconteça o mesmo. E isso é possível, com ganhos para todos, como referirei a propósito de Matera. A localidade é interessante, com vistas até ao mar nas quais se vêm os campos com oliveiras e vinhas, mas também indústrias. Via Google Maps identifiquei uma de produção de plásticos e outra de processamento de azeite. 

Fomos dormir a Lecce, cidade que é uma agradável surpresa. Trata-se de uma cidade cosmopolita muito bonita, com imensos atrativos. É especialmente, interessante a pedra branca esculpida pelo tempo que faz notáveis rendilhados para acrescentar aos já complexos, e barrocos, iniciais. Na Basilica di Santa Croce, uma beleza incrível do barroco local, que tinha ar de ter sido restaurada recentemente, é feito uma notável integração desse efeito. Vale a pena ficar a olhar para os pormenores da sua fachada, onde se encontram aspetos que parecem hoje bastante bizarros, explicados detalhadamente aqui

A pedra era para mim um problema, pois parecia por vezes um calcário (essencialmente CaCO3) mole de grão grosso (um pouco como a pedra de Ançã, mas mais mole e granuloso) ou outras um arenito muito fino (essencialmente SiO2) e não tinha forma fácil de o testar (lembrei-me agora que com vinagre talvez o conseguisse). Mas, obviamente, a ciência é acumulativa e construída sobre o conhecimento já obtido e centenas ou milhares de pessoas já fizeram essa pergunta. Várias páginas indicaram-me que é sem sombra de dúvida um calcário, que ficou conhecido como o “mármore dos pobres”. 

Outra coisa que me fascinou foram as pedras que pareciam novas, mas eram simplesmente as pedras antigas cobertas com um cimento de uma cor e uma textura, provavelmente feito de pó de rocha, que parecia ser uma rocha nova. E muitas vezes para a integração visual fosse mais harmoniosa  eram picadas as aplicações novas.  

Em Lecce reparei pela primeira vez noutro produto turístico: uma loiça em formato de balão, com um fio, que os vendedores associam a este objeto. Na minha opinião trata-se de uma ideia bastante paradoxal, pois a densidade da loiça (cerca 1.8 g/mL) é muito superior à do ar (cerca 1.4 g/L) e mesmo à da água (cerca de 1 g/mL). Mas a imaginação deve ser valorizada e, pensando bem, pode ser um paradoxo interessante, ter um balão que de maneira nenhuma se eleva nos ares sem a nossa ajuda. Mais à frente, no entanto, numa feira local vi queijo Caciocavallo, que tem precisamente o mesmo formato, mas ao contrário: uma bolsa redonda pendurada por um fio. Não sei se há alguma relação, mas achei muito curioso. 

Com sede em Lecce formos à gruta da poesia, para onde, supostamente, poderíamos saltar (tínhamos visto muitas fotografias sobre isso). O meu filho mais novo, de forma sensata, perguntou “e como é que saímos de lá?”. Vimos que havia umas escadas de pedra, mas era proibido saltar. Acabámos por ir a um sítio ao lado (cerca de 200 metros) bastante parecido, onde, embora não se devesse saltar podia-se entrar, que tinha umas escadas de ferro. A água como de costume estava com uma excelente temperatura. A salinidade aqui é relativamente elevada (36-38 g de sais por quilograma de água do mar), sendo que o valor típico é de 35 g/kg, ou seja cerca de um quilograma de água da mar, tem 35 gramas de sais dissolvidos.  

No mapa do local reparei que havia uma gruta denominada “da bauxite”, mas não fui lá. A bauxite  é o mineral de onde se extrai a alumina (Al2O3) para obter alumínio por eletrólise deste material fundido. Mas para baixar a temperatura de fusão, usar-se o mineral criolite (Na3AlF6) que é extremamente raro e foi minerado até à extinção, em 1987, na Groenlândia. Este mineral continua a ser usado, mas é agora obtido de forma sintética a partir de fluoreto de cálcio (CaF), sulfato e cálcio (CaSO4) e hidróxido de alumínio (Al(OH)3).     

Otranato foi outra encantadora povoação que visitámos e onde almoçamos. Foi aqui que mais uma vez alarguei os meus horizontes culinários com a sugestão de um pesto de limão e laranja que dava um sabor delicioso à minha salada.
No porto, estava ancorado um navio que tinha escrito Gold Energy, e que segundo o meu filho, era de nacionalidade norueguesa. Parecia-me um nativo de apoio às plataformas petrolíferas, e confirmei depois que era.

Em Galatina, visitámos a basílica de Santa Catarina de Alexandria. Trata-se de uma uma igreja do século XIV que está toda coberta de frescos. Como em toda a região, há muita influência dos Normandos, que em conjunto com as tradições locais, geram resultados muito interessantes. Mas o aspeto mais interessante, estava para vir. Em Galatina, quase por acaso, comprei um livro sobre as tradições da dança terapêutica após a picada de uma tarântula e percebi, finalmente, as pandeiretas, fitas, e outros objetos turísticos, que encontramos em todo o lado nesta região. Inicialmente, pensei que tratava de um dos fenómenos de alucinação coletiva que ficaram associados a danças sem parar. Não, era o caso. Trata-se de um fenómeno muito mais antigo e diferente. Num mundo rural incerto e perigoso, as picadas das tarântulas, que raramente são fatais, e as mordeduras de cobras, originavam fenómenos de torpor e dor intensa para os quais não havia tratamento.
Quase só restava a fé e a água benta que, desencadeando a libertação de endorfinas, servia de alívio e possibilidade de melhoria. Depois apareceu a música e os rituais. Os músicos procuravam o “tom certa da tarântula” com rápidas variações de ritmo, levando o paciente (quase sempre uma mulher jovem) a dançar, contribuindo assim, supostamente, para o alívio e a mais rápida recuperação, sendo por outro lado a cerimónia mágico-religiosa conduzidas por mulheres. O livro é interessante, também pelas fotografias.

Fizemos um pouco de praia na Torre de Santo Andrea, que tem uma excelente paisagem circundante e está muito organização em termos de estacionamento (pago, claro). Fomos de seguida à praia de Santo Isidro, que tem torres de ambos os lados (todas as praias que vimos aqui têm torres, e nalgumas vimos aquilo que pareciam  bunkers, provavelmente ainda da Segunda Guerra Mundial), onde almoçamos. Seguimos em seguida para Porto Servaggio, que fica numa reserva natural. Vamos a pé cerca de dois quilómetros para chegar à praia pelo meio de pinhais cheios de cigarras a cantar, mas vale a pena.

A caminho de Nardò, onde íamos dormir, passámos por Brindisi, mas quase não parámos. Trata-se de uma cidade que parece pouco bonita, infelizmente, talvez em parte devido ao desenvolvimento industrial, em particular químico, e ao aeródromo militar. Falarei um pouco mais desta relação pouco virtuosa com a indústria mais abaixo, mas queria desde já referir esses aspetos. Pois deveria ser precisamente ao contrário. O desenvolvimento industrial deveria estar associada às mais belas paisagens artificiais e procurar a melhor qualidade do ar, água e solo, numa busca de sustentabilidade permanente e genuína (evitando o greenwashing) para que a generalidade das pessoas se sentisse bem com ele, uma vez que muito produtos obtidos se tornaram necessários. 

Daqui seguimos para Matera, tendo passado perto de Taranto (onde não parámos) que é uma cidade portuária. Notava-se da estrada que era também uma cidade muito industrial. Mas o que achámos mais impressionante foi uma cobertura metálica fechada e enorme. O que estaria debaixo? Depois de alguma pesquisa verificámos que cobria as escórias da antiga siderurgia e ocupava uma impressionante área equivalente a 56 campos de futebol (700 metros de comprimento por 254 metros de largura) com 77 metros de altura no ponto mais alto. Embora tivesse custado cerca de 370 milhões de euros, ajudou a resolver o problema das poeiras contaminadas que eram levadas pelo vento e pensa-se que será uma solução para outros lugares de mineração a céu aberto. 

Em Matera sentia-se bastante serenidade e a cidade não era ferozmente turística como outras cidades que visitámos, mas por outro lado, eu senti-me bastante turista. A cidade ficou famosa por terem sido aqui filmados o “Evangelho Segundo São Mateus” de Pasolini e "A Paixão de Cristo"de Mel Gibson. Trata-se de uma das cidades mais antigas da humanidade ainda com pessoas, comparável com Aleppo e Jericó. O documentário, de 2019,  “Mathera”, de Francesco Invernizzi, dá uma ideia do que os turistas não vêm ou nem reparam com atenção. 

Os Sassi, as grutas mais famosas habitadas, eram habitações miseráveis com só uma porta onde vivia toda a família e os animais. Mas algumas dessas grutas tinham frescos com mais de mil anos. Nos anos 1950, todo o espaço antigo estava em ruínas e pensou-se acabar com ele, ou, então, cinicamente (como diz Raffaello de Ruggeri, na altura presidente da Câmara da Cidade), para "mostrar como se vivia antigamente". Mas não se evoluiu nesse sentido. Houve um movimento de recuperação, começaram a ser encontradas capelas em grutas com frescos e o lugar foi classificado como Património da Humanidade pela Unesco.

Eu tinha-me perguntado como obtinham a água, pois o rio ficava muito abaixo e o documentário é muito claro sobre isso. Uma das maravilhas de Matera é o seu extraordinário sistema hídrico que envolve cisternas para recolher a água da chuva e condensação e conduzi-la para as grutas e para chafarizes. A declaração da Unesco também valorizou isso.

Tivemos de voltar a Bari e dedidimos ir para Norte, para a Monte de Sant'Ângelo, onde fica um interessante santuário de São Miguel, numas grutas, respeitante a aparições do século V. Mas antes formos à praia! Na direção da praia de Punta Rosa, reparei numa grande fábrica de vidro plano na cidade de Manfredonia. Como já referi várias vezes, este material é solidificado sobre estanho liquido para obter vidro plano de grandes dimensões. Depois, na volta, ao descer da Floresta Umbra para a costa, reparei numa enorme pedreira a céu aberto. Alguma pesquisa, levou-me a encontrar outras industrias, mas não explorei muito o assunto.

Paradoxalmente, dada a riqueza que parece criar e a necessidade extrema de cuidados, depois de um acidente muito grave de 1976, Manfredonia apresenta atualmente uma paisagem urbana desqualificada (pelo menos na parte que eu vi). No acidente, uma quantidade estimada entre 12 e 39 toneladas de um aerossol de arsénio (segundo um trabalho que li, K3AsO3 e HAsO3), usado numa chaminé de produção de amoníaco,  foi libertado para a atmosfera, caindo num espaço de 15 km2. Mesmo que o número fosse muito mais pequeno, tratar-se-ia igualmente de um acidente muito grave. 

Morreram logo muitos animais e várias pessoas ficaram gravemente envenenadas. Segundo li, começou-se por desvalorizar e esconder o problema, houve algumas medidas de mitigação, como oxidar o arsénio para compostas mais insolúveis, mas, para uma comunidade que vivia essencialmente da agricultura e da pesca, foi devastador. Agora o local está indicado como sendo uma região de preocupação nacional, mas, sinceramente, não se nota. A circulação rápida pela cidade que fizemos revela um ambiente desqualificado, como já referi, com ruas esburacadas, prédios sujos, mal pintados e desorganizados, sinais e marcas e trânsito apagados, sem espaços verdes, etc. As praias são todas Lido (que para quem não sabe são a versão paga de praia – não temos isso em Portugal) com estacionamento algo caótico. Ao lado fica uma zona húmida pantanosa que faz parte do Parque do Gargano e que bem poderia ser mais valorizada.

Este acidente tem, entretanto, sido muito estudado, tanto em termos da segurança e política industrial como epidemiológicos. O que salta à  vista é o desconhecimento que ainda hoje temos do aconteceu realmente (três artigos científicos que consultei indicavam valores bastante diferentes das quantidades, assim como dos compostos envolvidos), assim como a ligeireza com que o problema foi tratado pelas autoridades. Não pode nem deve ser assim, como já referi. As cidades não têm de ser feias só porque são industriais, nem por serem industriais têm de ser feias. Muitos dos produtos  são fundamentais para a nossa vida, mas isso não implica que sejam produzidos em condições insalubres. Os custos disto, são muito maiores do que os da segurança e da estética. Ao provocarem desconfiança justificada, quando se procura instalar uma mina ou fábrica perto de nós, estas acabam por ir parar ao locais mais pobres e com menor poder de revindicação, perpetuando a situação.
Gostaria de acabar com a Floresta Umbra. Trata-se de uma floresta essencialmente de bétulas que tem na sua base alguns azevinhos, gilbardeiras e poucas mais espécies que conseguem resistir à sombra (daí o nome) causada por estas árvores. Havia um lago muito bonito, uma cerca com veados e um pequeno mercado de produtos locais (foi neste que vi o queijo). Uma boa parte das árvores estavam atacadas por trepadeiras que quase sempre levam à morte da árvore hospedeira, penso que por enterrarem fundo as suas raízes (a natureza não é boa em si: é como é). Por isso, muito troncos das trepadeiras estavam cortados (para mantermos o ambiente que queremos, temos de fazer algumas intervenções). 

Quando chegámos, pelas dez horas da manhã, havia muito poucos carros. Entretanto, seguimos um percurso pedonal com cerca de sete a dez quilómetros, tendo só encontrado pelo caminho um casal com um cão. Mas, quando voltámos (fazendo outros sete a dez quilómetros, pelo menos), agora pela estrada, o local estava cheio de carros. Pelo caminho fui reparando que a maioria das rochas era de um material que parecia ter um interior de silex, mas tinha várias camadas e só as rochas partidas evidenciavam isso. 

Há imensas coisas para fazer e ver na Puglia, mas sobretudo o que está bem ou mal faz-nos pensar em nós. Toda a viagem é também uma viagem interior, de alguma forma. Havia por vezes lixo a mais nas ruas e autoestradas. Mas estavam mais limpas as estradas de vegetação. Se, no primeiro caso, é uma questão de civismo e organização, no segundo também. Havia praias e locais lindíssimos que tinham ao lado a maior desorganização e estadas esburacadas e sujas para lá chegar, mas havia sítios extremamente organizados e limpos. Não é uma fatalidade, os sítios organizados e limpos, podem ultrapassar os lugares desorganizados e sujos, tanto no Sul de Itália, como em Portugal, com trabalho, dedicação, atenção e consistência. Se virmos imagens antigas da Suécia, Islândia, ou de outros lugares que hoje nos parecem paradisíacos, vemos que a mudança é possível.   

Referências

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Leccenelsalento.it. Basilica di Santa Croce. https://www.leccenelsalento.it/basilica-s-croce/ (acedido a 14 de agosto de 2025)

Lars Öhrström, Cryolite, May 2012, https://www.chemistryworld.com/podcasts/cryolite/3005746.article (acedido 18 de agosto de 2025).

L. Liberti, M. Polemio, Arsenic accidental soil contamination near Manfredonia. A case history, Journal of Environmental Science and Health . Part A: Environmental Science and Engineering 16 (3) 297-314, 1981. https://doi.org/10.1080/10934528109374983

Antonio Lillo e Zelda Cevellera (eds.) Locorotondo. Rivista di Economia, Agicoltura, Cultura e Documentatione della Valle d’Itria 59, agosto de 2024. 

Cristina Mangia, Marco Cervino, Emilio Antonio Luca Gianicolo, Arsenic contamination assessment 40 years after an industrial disaster: measurements and deposition modeling, Air Quality, Atmosphere & Health 11, 1081-1089, 2018. https://doi.org/10.1007/s11869-018-0610-4

Vittorio Ricapito. Ilva di Taranto, al via la copertura dei parchi minerari. Emiliano contro il governo: "Danni gravissimi". La Repubblica – Bari, 1 de fevereiro de 2018. https://bari.repubblica.it/cronaca/2018/02/01/news/ilva_al_via_copertura_parchi_minerali_ilva_emiliano_dal_governo_danni_gravissimi_-187812116/ (acedido 16 de agosto de 2025)

Sérgio P. J. Rodrigues, Ethanol in class and at home: guided inquiry-based learning, 8th International Conference on Higher Education Advances (HEAd'22), Valencia, 2022. https://doi.org/10.4995/head22.2022.14411

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R. Di Staso, D. Wollschläger, M. Blettner, E. Gianicolo, Mortality risk associated to arsenic exposure after a major disaster. Results from the Manfredonia occupational cohort study 1976–2021, International Journal of Hygiene and Environmental Health 261, 114428, 2024.https://doi.org/10.1016/j.ijheh.2024.114428

Passeios Químicos: Ação de Formação para Professores em 10 de julho de 2025

[Descreve-se sucintamente uma Oficina de Formação para Professores que teve lugar no dia 10 de julho de 2025 no âmbito das Abordagens Interdisciplinares para a Docência na Universidade de Coimbra (AIDUC)]

Iniciámos o passeio no átrio da Física. Dei aos professores presentes na Ação de Formação duas latas (vazias) de água tónica para observarem. Alguns deles referiram pequenas diferenças nas cores e nos sons emitidos quando as latas eram apertadas, outros referiram as massas ligeiramente diferentes. Quando lhes perguntei hipóteses para a composição, referiram o alumínio, mas não tinham em geral ideia de qual fosse o outro material. Quando usei um iman para atrair a lata, todos os presentes concordaram que deveria ser uma liga de ferro. Claro que podemos fazer outros testes e verificações. Não tive tempo de o fazer, mas poderíamos determinar as massas das latas (12,372 g a lata que é essencialmente de alumínio e 23,111 g a que é essencialmente de ferro), assim como a sua área (237,49 centímetros quadrados) e, assim, estimar a espessuras das paredes, considerando as densidades do ferro (d=7,87 g/mL) e do alumínio (d=2,70 g/mL). As espessuras que obtive são respectivamente cerca de 0,19 mm para a lata de alumínio e 0,13 mm para a lata de ferro. Queria com isto chamar a atenção para a aprendizagem ativa e para o uso de materiais que se podem encontrar no dia-a-dia. E também para as questões económicas que envolvem todas as actividades. Hoje em dia é praticamente impossível encontrar latas de refrigerantes de ferro pois é mais económico fazê-las de alumínio, mas se houver desenvolvimentos tecnológicos que beneficiem o uso de ferro, ou até variações dos preços dos materiais, a situação pode inverter-se.

Planeava falar dos alumínios anodizados das portas da Física e da Química, assim como dos vidros planos (desse aspecto falei mais tarde), mas a conversa derivou para um modelo da molécula da penicilina que lhes ia mostrar no átrio do Departamento de Química. Assim, no vão do Edifício da Física e da Química começamos a falar da penicilina e da sua descoberta. Foi referido, claro, Alexander Fleming e a “descoberta por acaso” da molécula, mas todos concordaram que não foi completamente por acaso, pois Fleming estava bem preparado e soube identificar a oportunidade. Chama-se a isso “serendipidade”, mas não me lembro de o ter referido no momento. Fleming havia estado como médico na Primeira Guerra Mundial e procurava ativamente um medicamento para as infecções. A maior descoberta de Fleming foi pensar que aquele material poderia ser um novo medicamento, mas não conseguiu isolá-lo. Quem fez isso foi Howard Florey e Ernst Chain, e as suas equipas, durante a Segunda Guerra Mundial. Nessa altura foi constituído um projeto secreto envolvendo cerca de três mil pessoas, com contribuições públicas e de empresas, para obter penicilina para os militares aliados. Este projeto tinha dois objetivos: fazer o isolamento da penicilina e produzi-la em grande quantidade, e produzir a molécula de forma sintética, também em grande quantidade. O primeiro objetivo foi cumprido ainda a tempo de contribuir para o esforço de guerra, mas o segundo teve de esperar pelo fim dos anos 1950.

A penicilina é um bom exemplo de como funciona a ciência moderna. Envolve equipes, muitas vezes multidisciplinares, com homens e mulheres e precisa de financiamento. Embora as equipas de Florey e Chain tenham conseguido isolar a penicilina na Grã-Bretanha, a produção em massa só ocorreu nos Estados Unidos com as sugestões de uma das primeiras engenheira químicas americanas, Margaret Rousseau, e a contribuição de uma mulher que ficou conhecida como “Mary Mould” (Mary Steven) sobre a qual há pouca documentação. Embora, na altura, não tenha sido ainda, infelizmente, atingida a paridade de género, vemos que esta está em evolução. Entretanto, a estrutura química da penicilina vai ser identificada por Dorothy Hodgkin em 1945, abrindo o caminho para a síntese total por John Sheehan e a sua equipe, em 1957, abrindo caminho para o desenvolvimento de penicilinas semi-sintéticas. Eu tinha um modelo da benzilpenicilina e mostrei como era a estrutura da ampicilina e da amoxicilina. Hoje em dia a maior parte das moléculas usadas como medicamentos não são bioinspiradas mas o mundo natural continua a ser uma fonte provável de novos medicamentos e mecanismos de ação. 

Daqui fomos ver, no segundo piso, a obra de João Nascimento (1941-2013) sobre a História da Química. Esta esteve durante muito tempo arrumada, mas foi exposta este ano de 2025. Muitos dos professores lembravam-se dela, em particular do painel com o “Lavoisier decapitado”. Eu fiz um pequeno enquadramento em que referi que o artista havia sido contratado em 1973, para produzir obras para decorar o interior do edifício, mas só em 1975 entregou as oito obras encomendadas, assim como as suas memórias descritivas. Muito provavelmente Nascimento sentiu-se mais livre e pode incluir paineis mais provocadores como o do “Lavoisier decapitado”, apresentado no “momento mais dramático da sua vida”, segundo escreveu na memória descritiva, acrescentando a célebre frase atribuída a Lavoisier “nada se perde tudo de transforma”. O autor inscrevia-se numa corrente artística irónica que procurava criar efeitos de surpresa. Nestes paineis as molduras foram pintadas, algo que muito dos professores só agora se aperceberam agora pois puderam ver a obra de perto. Na Física está exposto um quadro que poderemos considerar ainda mais provocador onde está pintada a parte de trás de uma tela onde um artista faz anotações casuais e testes relativos ao tipo de tintas de acrílico usadas, na qual Nascimento pintou as madeiras e travões da tela. Ao mesmo tempo tem uma anotação sobre o número de mortos causados pelas explosões atómicas de Hiroshima e Nagasaki, pintando também uma gravura com um cogumelo atómico. As outras obras são também interessantes. Vimos a pintura de dimensões que está no primeiro piso e que é alusiva aos estados da matéria.

Mas voltando à obra relacionada com a História da Química, a qual tem dois metros de altura por sete de largura, tendo sete paineis. Segundo a memória descritiva do autor, o primeiro painel faz alusão à “natureza sem Química”, outro ao início da ciência e outro ao “Químico Cético” de Robert Boyle. O maior dos paineis é do famigerado Lavoisier decapitado que tem uma guilhotina e sua cabeça cortada, com a pintura de bastante sangue. Outro painel é alusivo a Dalton, mas realça a descoberta por este autor do Daltonismo, em vez do desenvolvimento da moderna teoria atómica. Tudo isso deriva da liberdade artística do autor, como é óbvio. Nos restante dois paineis está representada a difração da luz, o que deve ter agradado bastante aos professores da altura, pois a espectroscopia sempre foi um campo forte na investigação no Departamento. Guardei para o fim o painel mais enigmático: a representação de Norbert Wiener e de um olho de mosca ampliado que parece um agregado de átomos. Não sabemos qual era a intenção do autor pois na memória descritiva é apenas descritivo, mas até poderia ter havido alguma confusão com um nome muito mais relevante da História da Química, Alfred Werner. Curiosamente, agora Wiener faz muito sentido dado ter teorizado a cibernética que está relacionada com a atual Inteligência Artificial (IA).  

Fomos ainda ver o anfiteatro com a tela da Tabela Periódica e passámos para o  outro lado da rua, para observar um fresco na Faculdade de Medicina.  Chamei a atenção para Bernardino António Gomes (1768-1823) e a descoberta da cinchonina que abriu o caminho para a descoberta da quinina por Pelletier e Caventou. Trata-se de uma descoberta importante para a ciência portuguesa que foi rapidamente anulada por polémicas. Referi depois, António Egas Moniz (1874-1955) o único Prémio Nobel português ligado à ciência. Escrevi sobre ele mais detalhadamente, mas por agora vale a pena referir que o procedimento cirúrgico chamava-se leucotomia pré-frontal e foi desenvolvido numa altura (anos 1930) em que não havia tratamentos eficazes para doenças mentais, os quais só virão a aparecer nos anos 1950. Referi ainda Garcia d’Orta e Amato Lusitano

Perto da outra porta da faculdade de medicina referi as moléculas termocrómicas da cor de uma caneca e o elemento gálio que tem um ponto de fusão de cerca de 30ºC (do qual tinha uma amostra que pude liquefazer). 

Fomos em seguida observar o painel alusivo à Física e Química na parede da Biblioteca Geral. Referi na altura a piada que a Química sofria de uma “tragédia ortográfica”: o “Q” ficava depois do “F” no dicionário, mas chamaram-e a atenção para o facto de “ser uma tragédia moderna” pois antigamente escrevia-se “Physca” e “Chymica”. Noutro ano formos por outros caminhos. 

Daqui fomos para a Porta Férrea e para o interior do Pátio das Escolas onde discutimos a oxidação do ferro, a erosão das rochas, as cores muito brancas das paredes e os vidros antigos.

Estávamos a ficar sem tempo e fomos até à entrada do Jardim Botânico, onde recolhemos em solução aquosa um pó branco que estava nas paredes dos Arcos do Jardim. Com umas gotas de cloreto de bário forma-se um precipitado o que é uma boa indicação de ser um sulfato. É de facto, sulfato de cálcio, tendo o enxofre origem na atmosfera devido aos carros. Finalmente, referimos o eucalipto que cheira a limão e tinha amostras de citronelal (o composto responsável pelo cheiro) e de geraniol e eucaliptol, isómeros desse composto de fórmula C10H18O. 

Despedimos-nos com a certeza de haver muito mais coisas para observar, testar e explicar.

Passeio químicos no Convento da Arrábida

[Na vinda do congresso SciComPT 2025, que foi este ano na Ilha da Madeira, pude passar no Convento da Arrábida para preparar a atividade que vou realizar 5 e 6 de setembro de 2025 no III Encontro de Professores Portugueses de Física e Química. No convento foram muito simpáticos e, com base nesta visita, escrevi as notas que apresento a seguir. Eu já havia escrito sobre a Arrábida, mas não tinha tido ainda oportunidade de ir ao convento.]

O convento de Nossa Senhora da Arrábida foi fundado em 1542 por Frei Martinho de Santa Maria (?-1546), religioso da Ordem de São Francisco, oriundo da alta nobreza espanhola, o qual havia sido convidado por D. João de Lencastre, primeiro Duque de Aveiro, após um encontro numa peregrinação ao Santuário de Nossa Senhora de Guadalupe, em Espanha, para usar os seus terrenos da Serra da Arrábida para a vida eremita que almejava. A Cartuxa era bastante radical como se pode ver no local. Entretanto, as propriedades dos duques de Aveiro foram confiscadas em 1759 e o título foi extinto, na sequência da condenação dos Távoras. Embora, os monges não fossem provavelmente donos do local, em particular das casas do convento, o fim das ordens religiosas em 1834, acabou por propiciar o fim do convento que devido aos seu isolamento foi vandalizado ao longo dos anos, tendo os duques de Palmela adquirido o convento em 1863. Em 1990, o espaço foi adquirido pela Fundação do Oriente que, desde essa altura, tem procurado dar-lhe funções compatíveis com o seu uso anterior, nomeadamente através de cursos e retiros.      

Uma das imagens mais fortes do convento é a estátua de um monge com os olhos vendados, boca fechada com um cadeado, ouvidos tapados com o capuz e coração com uma fechadura, tendo numa das mãos um silício e na outra uma vela. A estátua evoca o fundador do convento, Frei Martinho de Santa Maria, que está sobre um globo pisando uma serpente (disse a guia pois isso é pouco perceptível). Esta estátua deveria ser pintada pois nos pés ainda se notam restos de várias camadas de tinta. Também é pouco perceptível o que está escrito no globo. As leituras que fiz indicam que a estátua é de 1622 e há menções a Frei Martinho, aos fundadores e a uma passagem do Livro de Isaías (51:1), “olhai para a rocha de onde foste talhados, para a pedreira de onde fostes extraídos”.

Uma coisa que notei é que os vidros das janelas são todos posteriores a cerca de 1950, não parecendo haver vidros mais antigos (uma provável indicação de vandalismo). Como sabemos isso? Até esta data os vidros planos eram produzidos a partir do vidro fundido soprado e arrefecido estendendo-o ou passando-o em cilindros, tendo, assim, irregularidades que são visíveis. Alastair Pilkington desenvolveu um processo em que o vidro era solidificado em estanho líquido (ponto de fusão 232ºC) ficando com superfícies sem irregularidades e sem necessidade de ser polido (no caso da passagem por cilindros). Os únicos vidros que me pareceram mais antigos são os de algumas das relíquias visíveis na capela. Estas devem ter sido guardadas pela família Palmela que vendeu o convento à Fundação do Oriente. 

Há muitos canteiros com malva (Pelargonium graveolans). Este planta atrai abelhões e besouros, mas parece repelir os mosquitos. Uma rápida consulta à literatura refere que a composição do seu óleo essencial, obtida por cromatografia gasosa acoplada a espetrometria de massa, tem diferentes percentagens de citronelol, formato de citronelilo, geraniol, formato de geranilo e linalool (estou a simplificar os nomes). Tratam-se de moléculas terpenóides com dez e quinze átomos de carbono. Hoje em dia, graças a técnicas instrumentais  e à acumulação de literatura, a qual pode ser acedida via Internet, obtemos em minutos o que demoraria meses a obter, ou mesmo que não poderia ser obtido antes. Curiosamente não parece ter na composição do seu óleo essencial citronelal (1) que é muito usado em repelentes de mosquitos.

Chamou-me também a atenção a boca-de-lobo (Antirrhinum majus) que tem vários usos medicinais, mas é sobretudo uma planta modelo para estudar vários efeitos e genéticos e ambientais. Numa base de dados que costumo consultar de artigos científicos indexados (Web of Science, WoS) aparecem mais de 1600 artigos quando se procura por “Antirrhinum majus” e mais de 400 quando se procura “Pelargonium graveolens”.

Encontram-se espalhados pelas sebes e canteiros, exemplares selvagens de Rubia peregrina que tal como a Rubia tintorum (que era cultivada), tinha usos tradicionais em tinturaria, em particular para tingir de vermelho. O pigmento era extraído das raízes, sendo conhecido como garança ou alizarina, sendo que a molécula responsável pela cor é a alizarina.

Os monges não tingiam as suas roupas que eram feitas de tecidos grosseiros e crus. Não encontrei indicação de que tecessem as suas próprias roupas ou que cultivassem as plantas (em particular o linho) para obter o fio, mas remendavam as roupas, o que é visível nas imagens presentes nos azulejos ao lado da capela.  

Há vários exemplares de Agave americana no espaço do convento. Estes catos são facilmente identificáveis pelo seu verde e as riscas mais claras dos lados. Das fibras destes catos faziam-se cordas, podendo num deles ver-se as fibras. Estas fibras são de celulose. Só no século XX apareceram fibras sintéticas e cordas de nylon. Estas fibras são ditas sintéticas pois são fabricadas mas também podem ser consideradas artificias pois não existiam antes na natureza. Em qualquer dos casos, neste momento já fazem parte da Natureza, ou seja a Química contribuiu para estender a Natureza.   

No convento, dei conta da existência de um limoeiro. Um dos principais compostos relacionados com os limões é o limoneno, mas o cheiro a limão é muito complexo, envolvendo outros compostos como o citral. Embora haja por vezes a ideia de que o cheiro de laranjas tem que ver com um isómero do limoneno (isso até foi referido na versão popular do Prémio Nobel da Química de 2021), tal não é verdade. Também as laranjas têm limoneno, mas a mistura tem outras moléculas, originado o odor que identificamos como de laranja. Qual é a lição disto? Deve verificar-se tudo. Embora haja algumas fontes que nos parecem mais seguras, mesmo essas podem estar erradas. E devemos corrigir os erros, claro, mas ter alguma tolerância. Aliás, usando uma citação bastante engraçada de uma citação so livro "Science with a Smile": ficamos muitas vezes surpreendidos por haver alunos que hoje não sabem o que mais tarde damos conta de que está incorreto. 

Como os monges eram eremitas não recebiam peregrinos nem tinham botica para o exterior, mas em situações de epidemias, podiam acolher e tratar doentes. Na igreja, numa sala no segundo piso estavam os noviços.  Como mostrou a guia, dessa sala podia assistir-se à missa, mas não ver o público que assistia à missa. Por outro lado, explicou a guia, os duques de Aveiro, donos dos terrenos, tinham acesso a uma janela de onde poderiam assistir à missa. 

A tinta branca em alguns dos edifícios é moderna, tendo o dióxido de titânio como pigmento. Esta tinta é também plástica e forma polímeros impermeáveis à água, originando assim deformações visíveis nas paredes. Faço notar que embora estas tintas tenham essa desvantagem, as tintas tradicionais têm muitos outros problemas. O pigmento branco poderia ser à base de carbonato básico de chumbo (alvaiade, que é venenoso e escurece por formação de sulfureto de chumbo), ou de cal (hidróxido de cálcio) que nesse último caso era absorvido pela parede (este efeito pode ver-se em várias partes). No último caso, as tintas de cal, tinham de ser aplicadas mais vezes, mas sendo permeáveis e não formando polímeros, não têm as clássicas "barrigas."      

Em várias paredes nota-se um corante vermelho que só uma análise confirmaria a composição, mas será provavelmente óxido de ferro (III). Há outras partes pintadas de amarelo, que na tinta tradicional envolve outro composto de ferro, o hidróxido de ferro (II). Os sais de ferro são muito versáteis. Podemos ter um verde de óxido de ferro (II) e até um escuro com óxido de ferro (II, III). 

O sistema hidráulico desenvolvido pelos monges é visível ao longo de todo o percurso e funciona por gravidade. Os canos antigos são feitos com telhas romanas e a água vai descendo das fontes situadas acima. A água, além de passar na cozinha vai ter a uma lavandaria onde os monges se purificavam com água corrente. No local onde era recolhida a água para o sistema hidráulico, havia formas de regular o caudal da água que desapareceram.

Salta à vista o que parece ser reciclagem de porcelanas, em arranjos artísticos, mas a guia explicou que eram porcelanas que ofereciam aos monges e que estes quebravam para esse efeito. Ao longo de todo o espaço nota-se a preocupação em ter uma arquitetura e decorações “pobres”.  

Em vários sítios, em particular nas escadas para o coro alto, notam-se as dolomias, rochas de cor creme, que são de carbonato de cálcio e magnésio. A estrutura cristalina era bem conhecida, mas só há pouco tempo foi desvendado o mecanismo da sua formação através da simulação computacional do crescimento dos cristais, tendo-se concluido que estes crescem lentamente, sendo feita a lavagem dos defeitos cristalinos (2).   

Na porta da capela e nas enxergas dos monges era usada cortiça. Este material isolava tanto do som como das condições climatéricas. A natureza é relativamente económica nas moléculas que fabrica, mas é muito imaginativa. A cortiça é essencialmente composta de suberina, lenhina e celulose. A suberina é um polímero natural com dois tipos de monómeros, uns aromáticos (compostos derivados do benzeno que têm anéis ciclicos de seis carbonos e seis hidrogénios) e outros alifáticos (compostos de cadeias lineares). Os compostos aromáticos aqui presentes são derivados do ácido cinâmico e os alifáticos são hidroxiacidos com dezoito carbonos. Já a lenhina é constituída por polímeros de vários monómeros, sendo na cortiça o mais comum o guaiacol. Há mais compostos, mas a seguir à suberina e lenhina, temos a celulose que é constituída de monómeros de glicose. É a organização espacial e emaranhado destes polímeros naturais  que origina a cortiça. 

Parece também um emaranhado de nomes, mas para realçar as semelhanças entre os compostos presentes em várias plantas, faço notar que o ácido cinâmico é muito parecido com o aldeído cinâmico que dá o aroma à canela, o guaiacol é o principal constituinte do cheiro a fumo e a glicose é o açúcar das uvas. O amido não existe na cortiça, mas só difere da celulose na forma como se ligam as moléculas de glicose, sendo que a celulose é insolúvel e o amido muito solúvel.  

Na capela pode também ver-se o que parece ser um grampo cravados na pedra usando chumbo que é um metal muito maleável e de baixo ponto de fusão que serve muito para esse efeito de "chumbar."  

Disse a guia, que os pratos dos monges eram feitos de conchas de vieira e os copos de cortiça e que a dieta destes consistia em legumes, peixe e ovos. Estes só tinham uma refeição por dia consumida em silêncio enquanto ouviam um monge a fazer leitura sagradas. A formação das vieiras, que são essencialmente carbonato de cálcio, é surpreendente. Tal como nas árvores cortadas, notam-se nestas linhas mais escuras correspondentes aos seu crescimento, podendo estimar-se os anos da sua vida e ter-se uma ideia das condições por que passaram. Podemos imaginar que os monges no seu silêncio, vida contemplativa e meditação puderam também observar isso. 

Agostinho da Cruz, nos seus sonetos refere essa contemplação minuciosa, mas num deles refere também os peixes que foram pescados e que vai assar (ruivos, salmonetes, carregadas, vesugos, choupas, tainhas e linguados), assim como as árvores e arbusto de que fará os espetos (medronho, aroeira e esteva). Embora estes peixes talvez fizessem parte da sua alimentação, não é claro quanto do poema é imaginação. Em particular, chamou-me a atenção a carregada que parece ter nome vulgar de peixe-remo ou regaleco (Regalecus glesne) que é um peixe das profundidades, bastante grande e, parece, que não muito saboroso. É curioso que a aplicação de inteligência artificial do Google, o Gemini, apresenta no resumo da pesquisa, algo baseado no que foi escrito no Instagram de uma peixaria: este peixe ser “mau para a cicatrização”. Mas essa afirmação não parece não ter base científica, aparecendo nesse texto outros peixes “maus para a cicatrização” como sejam o cação e a cavala. Nunca tal tinha ouvido ou lido! O que queria chamar a atenção com isto, é que não pode aceitar algo só porque está escrito ou foi dito. Deve verificar-se, tanto quanto for possível, e procurar a sua coerência. 

É interessante a imagem de Santa Maria Madalena em terracota, ou seja de argila cozida no forno. É o mesmo material de que são feitas as telhas. Estas eram (e ainda são) obtidas pela cozedura do barro, o qual nesse processo perde moléculas de água e fica rígido, formando-se ligações química adicionais. Continua, no entanto a ser poroso, deixando passar a humidade. Por esse razão não é boa ideia pintar as telhas com tintas poliméricas. A cor vermelha é devida aos óxidos de ferro. Há também em vários locais, em particular junto do refeitório e da cozinha, chão de ladrilhos de barro, obtidos pelo mesmo processo. 

Os materiais cerâmicos tradicionais podem ser separados em quatro grupos: terracota, obtida a partir da argila vermelha com impurezas, textura áspera e muito porosa, com a temperatura de forno entre 800-100 ºC ; faiança, obtida a partir de argila branca com algumas impurezas, textura áspera e porosa, com a temperatura de forno de 1050-1150ºC; grés, obtido com argila de grés cuja cor vai do branco cremoso ao marfim rosado com algumas impurezas e áspera, mas não porosa, com temperatura de forno entre 1100-1300ºC, resistindo ao risco do ferro e vitrificando; porcelana, com argila de porcelana que é composta de caulino, quarto e feldspato, sem óxido de ferro, densa e fina, não poroso, com temperatura de forno 1300-1400ºC, vitrificando.     

A cozinha não tem quase objetos, mas estão penduradas grelhas onde poderia ser assado peixe ou colocadas panelas sobre brasas. Para além disso, tem uma chaminé bastante alta que é visível do exterior e que está coberta por dentro de negro de fumo. Quanto mais alta a chaminé,  maior é a extração do ar. É muito curioso o fenómeno, mas apenas a presença da chaminé faz com que devido à diferença de pressão entre a base e o cimo se gere a extração do ar inferior. Sobre o fumo o que se acumula nas paredes interiores da chaminé, devemos lembrar que são séculos a cozinhar. Este tem uma grande composição de carbono e é basicamente carbono amorfo e hidrocarbonetos poliaromáticos (PAH). O depósito é combustível e para evitar fogos entre outros problemas havia no século a profissão de limpa-chaminés, tendo sido a origem da ligação entre fumo e cancro. Este pode ser usado como corante negro e é usado por exemplo na tinta-da-china. Para além disso, cada carro tem cerca de 200 g por pneu, ou seja cada carro transporta cerca de 1kg. 

É também interessante o relógio que funciona com base na gravidade, como se pode ver pelos pesos. Relacionada com a Química, queria chamar a atenção para o latão que parece ouro. Trata-se de uma liga de cobre e zinco, sendo os melhores resultados de "parecer ouro" obtidos com mais de 35%de zinco. Composições que tenham valores inferiores de zinco começam a dar uma tonalidade avermelhada ao material. Os pontos de fusão, à pressão atmosférica, do cobre e zinco são, respetivamente 1085ºC e 420ºC. O latão, sendo uma liga dos dos dois metais, tem em geral um intervalo de fusão que vai depender da sua composição entre 900ºC e 940ºC, podendo ser maior com ligas com mais percentagem de cobre. Neste caso não há abaixamento significativo do ponto de fusão da mistura devido a um ponto eutético, como no caso da solda de estanho e chumbo. De facto, o estanho tem ponto de fusão 232ºC e o chumbo 327ºC, fundindo a solda a 183ºC. 

Sebastião da Gama (1924-1952), conhecido como poeta da Arrábida, é uma figura que deve ser muita cara aos professores. O seu Diário, escrito enquanto estava a fazer estágio no ensino, cerca de 1947, e editado postumamente em 1958,  continua hoje a ser uma referência importante sobre os métodos pedagógicos centrados nos alunos e a entrega ao ensino. Este havia nascido em Azeitão e sofria de tuberculose, numa altura que esta doença não tinha tratamento, morrendo novo.

Numa palestra  para juízes, Laborinho Lúcio refere que não se espera nem o sacerdócio (o que acha ser demasiado) nem que estes sejam mercenários (o que considera ser muito pouco). Poderíamos dizer ao mesmo aos professores. Os exemplos dos monges da Arrábida e de Sebastião da Gama são  inspiradores pois muitas vezes a entrega conduz à liberdade e à realização, mas é preciso não esquecer o pragmatismo e a organização que nos fazem obter os melhores resultados. 

(1) Os químicos conhecem bem a diferença que faz uma letra. Citronelol é um álcool e citronelal um aldeído que provavelmente tem um odor mais adocicado.

(2)  Kim et al. (2023). Dissolution enables dolomite crystal growth near ambient conditions. Science, 382, Issue 6673, 915-920. DOI: 10.1126/science.adi3690

Referências

Ana Assis Pacheco, “Humilde e abreviada arquitectura”: os arrábidos e a materialização da Estrita Observância (1542-1698), Lusitania Sacra, 44, 111-136, 2021. 

José Tolentino Mendonça, A atualidade de Frei Agostinho da Cruz, Setúbal, 2020.

Eva Pascual. Conservar e Restaurar Cerâmica e Porcelana. Editorial Estampa, 2005.

Fundação do Oriente. Convento da Arrábida. 2025.

Paulo Pereira, Paula Benito. Convento da Arrábida: a porta do céu. Fundação do Oriente, 2006.