[Como tenho feito noutros anos, aproveitei as férias que fizemos no Sul de Itália, em particular na Puglia, para referir alguns aspetos químicos em que reparei. Fiz uma pesquisa inicial, mas fui complementando o passeio com outras reflexões que localmente fui fazendo. Não consegui colocar todas as fotografias que tinha para ilustrar este texto, nem sequer coloquei as melhores (acho eu), mas procurei colocar as que estavam mais relacionadas com o que escrevi.]Bari é para um químico italiano, um nome muito curioso, pois é a mesma palavra usada para o elemento químico 56, o bário. Chegamos a esta cidade ao fim do dia e havia muita animação na rua e um caos de estacionamento. Nas ruas junto ao mar, os carros estavam em segunda fila e havia carros estacionados por todo o centro histórico, com as as praças e ruas cheias de pessoas. Mas tudo isso se esfumou magicamente pela meia-noite, ficando a cidade muito calma.

Um dos aspetos que tinha investigado, foi o acidente com armas químicas que aconteceu em 1943, no porto de Bari, durante a Segunda Guerra Mundial. Um navio americano com gás mostarda foi bombardeado pelos alemães, originando cerca de cem vítimas devido ao gás. A incidente foi mantido secreto pois as armas químicas estavam proibidas durante a Guerra e os americanos disserem publicamente que só as usariam como retaliação em relação ao uso de armas químicas por parte dos alemães. Não procurei, nem encontrei, qualquer referência a isso, mas uma visita ao museu local mostrou-me, o que depois fui verificando: que quase não há referências à Segunda Guerra Mundial, mas há muitas (neste museu havia) à Primeira Guerra Mundial.

É costume evocar a ideia (estafada) da desorganização italiana e das diferenças entre o Norte e o Sul, que os “semáforos são obrigação em Milão, sugestão em Roma e decoração em Nápoles”, etc. Não é verdade, as pessoas são semelhantes à partida, simplesmente, o Sul tem estado na periferia e abandonado à sua sorte e aos seus problemas. No meio da beleza da paisagem, da tolice e do génio, iremos encontrar alguns problemas horríveis e muitas soluções fantásticas em que a generalidade dos turistas não repara (e eu estou a incluir-me nesse conjunto), mas também a generalidade dos italianos. Ao longo do passeio, irei referindo algumas ligadas à química em que reparei, mas tenho a consciência que há muitos mais em que não reparei.

De Bari seguimos para Polignano a Mare, Monopoli (sim, o nome é idêntico ao do jogo) e Alberobello. Há povoações muito bonitas, com praias fantásticas de águas muito azuis e mornas (a temperatura da água variava entre 25 e 27ºC). Fomos a uma praia no Polignano a Mar, julgo que Lama Monaquile, que é de rochas e tem uma ponte muito interessante. Foi aqui que reparei pela primeira vez nas rochas calcárias esburacadas e rendilhadas. Iremos encontrar esse efeito de várias maneiras ao longo da viagem.

Polignano a Mare é uma povoação típica desta parte do país, muito organizada no que concerne ao trânsito e estacionamento. Reparei no monumento relativo à Primeira Guerra Mundial, mas onde havia também uma placa relativa aos soldados mortos em missões de paz atuais, e numa caldeira que usa gás natural (essencialmente metano) para aquecer a água. Depois encontrei “Metano” escrito em bombas de gasolina. Depreendi que têm bastantes carros movidos a gás natural. A combustão do metano (CH4) liberta um pouco de menos de dióxido de carbono do que os combustíveis normais e é mais limpa, mas, além de continuar a produzir CO2, exige depósitos de gás que aceitem até cerca de 160 atmosferas.

Monopoli é uma povoação lindíssima, mas reparei em duas chaminés muito altas na zona portuária. O que eram? Verifiquei que era uma antiga fábrica de cimento abandonada que várias organizações têm tentado requalificar. E aproveito para fazer um aparte. Eu “não procuro só as coisas feias” como já fui acusado, mas não deixo de as ver. Eu reparo e valorizo muito as belas, mas entendo que as “menos belas” fazem parte da realidade humana e que, de certa forma, são também belas. Partilho do aforismo atribuído a John Constable de que “nunca vi uma coisa feia na minha vida” e concordo com o que é atribuído a Coco Chanel de que “nada é feio se estiver vivo”.
Alberobello é a famosa povoação dos
Trulli (
Trullo no singular) que são casas de pedra com telhado cónico, também de pedra, as quais eram originalmente construídas sem ligante entre as pedras, havendo várias versões, mais ou menos lendárias, sobre a sua origem. Muitas destas têm a ver, claro, com miséria e condições locais, mas também com a invenção humana. Uma coisa que me chamou a atenção foi as diferenças de cor entre telhados e as paredes exteriores. Como alguns telhados estavam ao alcance pude verificar que o tom mais escuro era devido aos fungos que crescem nas rochas e que, por outro lado, o branco das paredes se devia provavelmente a estas serem pintadas ou caiadas. É uma povoação cada vez mais turística, com exposições dos “verdadeiros trulli” (ver mais à frente), artesanato relacionado, etc.
Foi aqui que reparei numa planta que identifiquei como sendo alcaparras (
Capparis spinosa) cujos botões das flores são postos em vinagre e por vezes uso nos meus pratos. Nunca imaginei que era isso e que a planta era tão comum aqui, crescendo nos muros.
Entrei, por acaso, numa loja de vinhos que estava vazia e o dono achou que teria “capturado” um bom cliente e fechou a porta. Os vinhos eram caríssimos e senti que entrei numa “armadilha para turistas” mas acabei por provar um vinho (que nem achei grande coisa – tendo depois bebido num restaurante um de muito melhor qualidade) de uma casta de que nunca tinha ouvido falar: “Primitivo”.
Trata-se de uma casta tinta que dá origem a vinhos complexos e caraterísticos que podem ter graduações em etanol altas (vi num supermercado 15% - volume de etanol em volume de água) muito cultivada aqui e que tem a caraterística principal de amadurecer mais cedo (daí o nome). Depois reparei em extensões enormes de vinhas desta variedade, com uvas que já pareciam maduras. Como é conhecido, o vinho é obtido da fermentação da glicose das uvas, originando etanol, sendo parado o processo antes de atingir o seu fim que é a produção de ácido acético.
Dito assim, parece simples, mas a produção de vinho envolve muitos outros aspetos que já aflorei antes. A denominada graduação é uma percentagem de volume em volume de etanol em água. Eu costumo fazer com os alunos do primeiro ano uma aula antes da Festa das Latas em que estimamos as concentrações e discutimos, sem moralismos as questões da segurança, e outros aspetos científicos relacionados com o consumo de álcool (quem quiser saber mais pode
ler o artigo que escrevi sobre o assunto). Uma nota sobre o “Primitivo Branco”. No restaurante a que fomos, pedimos vinho a copo, e quem nos atendeu referiu essa possibilidade. Nós escolhemos um copo de “Primitivo” clássico e outro de “Primitivo Branco”. Entretanto, eu não encontrei nos supermercados a versão branco, tendo só encontrado o rosé. O branco só seria possível a partir de uvas tintas com aplicação de uma técnica de bica aberta. Nesta forma de fazer vinho, o sumo é separado das cascas que são a fonte das antocianinas responsáveis pela cor.
De Alberobello fomos dormir em Locorotondo, encantadora localidade com um centro histórico de forma muito redonda e com casas muito brancas. Notava-se que essa beleza e organização era conseguida com muita manutenção. A localidade é notável também pelo cultivo dos aspetos culturais e históricos. Trouxe de lá uma monografia local que tem um interessante artigo sobre o
Trullo de Marziolla, que é uma das mais antigas construções deste tipo, não tendo cimento a unir as pedras, e não sendo tão pronunciada a diferença entre as cores das paredes e telhado (nas fotografias que vi). Está situado numa propriedade privada e não fomos lá.

É notável a construção de muros e paredes de pedra que permite a condensação da água que está na atmosfera. Nas zonas secas isso é fundamental para as plantas e também para as pessoas. Nesta região há centenas de quilómetros de muros e parece tratar-se de uma técnica tradicional com muito interesse (mais à frente, ao referir Matera, chamo atenção para o facto de isso ser também reconhecido na atribuição do estatuto de Património da Humanidade). Ao meditar sobre isto, pergunto-me se não será esse fenómeno que torna as casas com paredes grossas de pedra mais frescas, da mesma forma que a água fica fresca nas bilhas de barro, em vez da usual explicação da capacidade térmica. Depois da condensação da água nas pedras, a sua lenta evaporação com o calor, pode contribuir para o arrefecimento, uma vez que a evaporação é um fenómeno endotérmico.

Estima-se que existam na Puglia cerca de 60 milhões de oliveiras, 15 milhões destas com mais mil anos, estando, atualmente, cerca de 10% doentes, atacadas por
Xyllela fastidiosa, a qual é uma bactéria que, não tendo impacto na qualidade do azeite, pode causar a morte da árvore. Este número impressionante de oliveiras reflete-se em extensões enormes com esta árvore. No século XIX, algumas pessoas ficaram muito ricas com a venda de azeite para iluminação a países como a Grã-Bretanha. Deve notar-se que antes do aparecimento do petróleo e da eletricidade e com o desenvolvimento de candeeiros que produziam muitas luz à custa do uso intensivo de óleo, provocou este aumento de procura muito grande. Paralelamente, desenvolveu-se a caça às baleias pelo óleo que se obtinha.
Não há tratamentos eficazes contra a
Xyllela fastidiosa, embora desde há vários anos sejam estudados métodos para a combater. Vi um trabalho que me pareceu muito interessante com óleos naturais. Os inseticidas, para o inseto vetor, são uma outra possibilidade, por vezes evocada, mas provavelmente pouco eficaz. Outra possibilidade é o cultivo de variedades ou híbridos mais resistentes, mas isso não resolve o problemas das oliveiras milenárias.

O alerta foi dado em 2013 e, em 2015, teve início um processo judicial insólito contra 10 cientistas acusados de “criar a doença”. Eu tinha nos meus arquivos vários artigos sobre esta questão (inclusive um artigo da revista Nature), datados de 2015, pois pareceu-me, na altura, muito importante e crítica a questão. Fui agora consultar esses artigos e ver o que aconteceu depois. Já em 2015, apontava-se para que a acusação fosse infundada e, mais do que isso, absurda, mas só em 2019 o caso foi arquivado. Segundo percebi, estava em causa um conjunto de questões, desde a doença ser, ou não, considerada endémica ou recente (sobre isso parecia que estava a ser chegado a acordo com os peritos da acusação em 2015).

Neste contexto, é preciso notar que uma doença ser considerada endémica e antiga ou recente tem efeitos completamente diferente, sendo que no segundo caso leva a restrições e quarentenas que teriam efeitos devastadores na economia da região. Por outro lado, havia na altura (e penso que ainda hoje) acusações de pressão imobiliária e a recusa intransigente do uso de inseticidas, etc. Sobre os trabalhos e resultados científicos que serviram de base ao processo, vale a pena refletir, mesmo sendo estes maioritariamente da área da Biologia. Os dados brutos analisados pelas diferentes equipas apontavam para várias sub-espécies e variedades da bactéria e foram muitas vezes interpretados de formas diferentes, corrigidas e alteradas as análises. É assim que funciona a ciência, mas chegar a tribunal é um caso extremo.

Da observação das oliveiras milenárias que há na região, fomos para Ostuni, conhecida como a cidade branca. A pressão turística é muito grande e eu espero que a Locorotondo, sendo muito mais cuidada, não lhe aconteça o mesmo. E isso é possível, com ganhos para todos, como referirei a propósito de Matera. A localidade é interessante, com vistas até ao mar nas quais se vêm os campos com oliveiras e vinhas, mas também indústrias. Via
Google Maps identifiquei uma de produção de plásticos e outra de processamento de azeite.
Fomos dormir a Lecce, cidade que é uma agradável surpresa. Trata-se de uma cidade cosmopolita muito bonita, com imensos atrativos. É especialmente, interessante a pedra branca esculpida pelo tempo que faz notáveis rendilhados para acrescentar aos já complexos, e barrocos, iniciais. Na
Basilica di Santa Croce, uma beleza incrível do barroco local, que tinha ar de ter sido restaurada recentemente, é feito uma notável integração desse efeito. Vale a pena ficar a olhar para os pormenores da sua fachada, onde se encontram aspetos que parecem hoje bastante bizarros,
explicados detalhadamente aqui.
A pedra era para mim um problema, pois parecia por vezes um calcário (essencialmente CaCO3) mole de grão grosso (um pouco como a pedra de Ançã, mas mais mole e granuloso) ou outras um arenito muito fino (essencialmente SiO2) e não tinha forma fácil de o testar (lembrei-me agora que com vinagre talvez o conseguisse). Mas, obviamente, a ciência é acumulativa e construída sobre o conhecimento já obtido e centenas ou milhares de pessoas já fizeram essa pergunta. Várias páginas indicaram-me que é sem sombra de dúvida um calcário, que ficou conhecido como o “mármore dos pobres”.
Outra coisa que me fascinou foram as pedras que pareciam novas, mas eram simplesmente as pedras antigas cobertas com um cimento de uma cor e uma textura, provavelmente feito de pó de rocha, que parecia ser uma rocha nova. E muitas vezes para a integração visual fosse mais harmoniosa eram picadas as aplicações novas.
Em Lecce reparei pela primeira vez noutro produto turístico: uma loiça em formato de balão, com um fio, que os vendedores associam a este objeto. Na minha opinião trata-se de uma ideia bastante paradoxal, pois a densidade da loiça (cerca 1.8 g/mL) é muito superior à do ar (cerca 1.4 g/L) e mesmo à da água (cerca de 1 g/mL). Mas a imaginação deve ser valorizada e, pensando bem, pode ser um paradoxo interessante, ter um balão que de maneira nenhuma se eleva nos ares sem a nossa ajuda. Mais à frente, no entanto, numa feira local vi queijo
Caciocavallo, que tem precisamente o mesmo formato, mas ao contrário: uma bolsa redonda pendurada por um fio. Não sei se há alguma relação, mas achei muito curioso.
Com sede em Lecce formos à
gruta da poesia, para onde, supostamente, poderíamos saltar (tínhamos visto muitas fotografias sobre isso). O meu filho mais novo, de forma sensata, perguntou “e como é que saímos de lá?”. Vimos que havia umas escadas de pedra, mas era proibido saltar. Acabámos por ir a um sítio ao lado (cerca de 200 metros) bastante parecido, onde, embora não se devesse saltar podia-se entrar, que tinha umas escadas de ferro. A água como de costume estava com uma excelente temperatura. A salinidade aqui é relativamente elevada (36-38 g de sais por quilograma de água do mar), sendo que o valor típico é de 35 g/kg, ou seja cerca de um quilograma de água da mar, tem 35 gramas de sais dissolvidos.

No mapa do local reparei que havia uma gruta denominada “da bauxite”, mas não fui lá. A bauxite é o mineral de onde se extrai a alumina (Al2O3) para obter alumínio por eletrólise deste material fundido. Mas para baixar a temperatura de fusão, usar-se o mineral criolite (Na3AlF6) que é extremamente raro e foi minerado até à extinção, em 1987, na Groenlândia. Este mineral continua a ser usado, mas é agora obtido de forma sintética a partir de fluoreto de cálcio (CaF), sulfato e cálcio (CaSO4) e hidróxido de alumínio (Al(OH)3).
Otranato foi outra encantadora povoação que visitámos e onde almoçamos. Foi aqui que mais uma vez alarguei os meus horizontes culinários com a sugestão de um
pesto de limão e laranja que dava um sabor delicioso à minha salada.
No porto, estava ancorado um navio que tinha escrito
Gold Energy, e que segundo o meu filho, era de nacionalidade norueguesa. Parecia-me um nativo de apoio às plataformas petrolíferas, e confirmei depois que era.

Em Galatina, visitámos a basílica de Santa Catarina de Alexandria. Trata-se de uma uma igreja do século XIV que está toda coberta de frescos. Como em toda a região, há muita influência dos Normandos, que em conjunto com as tradições locais, geram resultados muito interessantes. Mas o aspeto mais interessante, estava para vir. Em Galatina, quase por acaso, comprei um livro sobre as tradições da dança terapêutica após a picada de uma tarântula e percebi, finalmente, as pandeiretas, fitas, e outros objetos turísticos, que encontramos em todo o lado nesta região. Inicialmente, pensei que tratava de um dos fenómenos de alucinação coletiva que ficaram associados a danças sem parar. Não, era o caso. Trata-se de um fenómeno muito mais antigo e diferente. Num mundo rural incerto e perigoso, as picadas das tarântulas, que raramente são fatais, e as mordeduras de cobras, originavam fenómenos de torpor e dor intensa para os quais não havia tratamento.

Quase só restava a fé e a água benta que, desencadeando a libertação de endorfinas, servia de alívio e possibilidade de melhoria. Depois apareceu a música e os rituais. Os músicos procuravam o “tom certa da tarântula” com rápidas variações de ritmo, levando o paciente (quase sempre uma mulher jovem) a dançar, contribuindo assim, supostamente, para o alívio e a mais rápida recuperação, sendo por outro lado a cerimónia mágico-religiosa conduzidas por mulheres. O livro é interessante, também pelas fotografias.

Fizemos um pouco de praia na Torre de Santo Andrea, que tem uma excelente paisagem circundante e está muito organização em termos de estacionamento (pago, claro). Fomos de seguida à praia de Santo Isidro, que tem torres de ambos os lados (todas as praias que vimos aqui têm torres, e nalgumas vimos aquilo que pareciam bunkers, provavelmente ainda da Segunda Guerra Mundial), onde almoçamos. Seguimos em seguida para Porto Servaggio, que fica numa reserva natural. Vamos a pé cerca de dois quilómetros para chegar à praia pelo meio de pinhais cheios de cigarras a cantar, mas vale a pena.

A caminho de Nardò, onde íamos dormir, passámos por Brindisi, mas quase não parámos. Trata-se de uma cidade que parece pouco bonita, infelizmente, talvez em parte devido ao desenvolvimento industrial, em particular químico, e ao aeródromo militar. Falarei um pouco mais desta relação pouco virtuosa com a indústria mais abaixo, mas queria desde já referir esses aspetos. Pois deveria ser precisamente ao contrário. O desenvolvimento industrial deveria estar associada às mais belas paisagens artificiais e procurar a melhor qualidade do ar, água e solo, numa busca de sustentabilidade permanente e genuína (evitando o
greenwashing) para que a generalidade das pessoas se sentisse bem com ele, uma vez que muito produtos obtidos se tornaram necessários.
Daqui seguimos para Matera, tendo passado perto de Taranto (onde não parámos) que é uma cidade portuária. Notava-se da estrada que era também uma cidade muito industrial. Mas o que achámos mais impressionante foi uma cobertura metálica fechada e enorme. O que estaria debaixo? Depois de alguma pesquisa verificámos que cobria as escórias da antiga siderurgia e ocupava uma impressionante área equivalente a 56 campos de futebol (700 metros de comprimento por 254 metros de largura) com 77 metros de altura no ponto mais alto. Embora tivesse custado cerca de 370 milhões de euros, ajudou a resolver o problema das poeiras contaminadas que eram levadas pelo vento e pensa-se que será uma solução para outros lugares de mineração a céu aberto.

Em Matera sentia-se bastante serenidade e a cidade não era ferozmente turística como outras cidades que visitámos, mas por outro lado, eu senti-me bastante turista. A cidade ficou famosa por terem sido aqui filmados o “Evangelho Segundo São Mateus” de Pasolini e "A Paixão de Cristo"de Mel Gibson. Trata-se de uma das cidades mais antigas da humanidade ainda com pessoas, comparável com Aleppo e Jericó. O documentário, de 2019, “Mathera”, de Francesco Invernizzi, dá uma ideia do que os turistas não vêm ou nem reparam com atenção.

Os Sassi, as grutas mais famosas habitadas, eram habitações miseráveis com só uma porta onde vivia toda a família e os animais. Mas algumas dessas grutas tinham frescos com mais de mil anos. Nos anos 1950, todo o espaço antigo estava em ruínas e pensou-se acabar com ele, ou, então, cinicamente (como diz Raffaello de Ruggeri, na altura presidente da Câmara da Cidade), para "mostrar como se vivia antigamente". Mas não se evoluiu nesse sentido. Houve um movimento de recuperação, começaram a ser encontradas capelas em grutas com frescos e o lugar foi classificado como Património da Humanidade pela Unesco.
Eu tinha-me perguntado como obtinham a água, pois o rio ficava muito abaixo e o documentário é muito claro sobre isso. Uma das maravilhas de Matera é o seu extraordinário sistema hídrico que envolve cisternas para recolher a água da chuva e condensação e conduzi-la para as grutas e para chafarizes. A declaração da Unesco também valorizou isso.
Tivemos de voltar a Bari e dedidimos ir para Norte, para a Monte de Sant'Ângelo, onde fica um interessante santuário de São Miguel, numas grutas, respeitante a aparições do século V. Mas antes formos à praia! Na direção da praia de Punta Rosa, reparei numa grande fábrica de vidro plano na cidade de Manfredonia. Como já referi várias vezes, este material é solidificado sobre estanho liquido para obter vidro plano de grandes dimensões. Depois, na volta, ao descer da Floresta Umbra para a costa, reparei numa enorme pedreira a céu aberto. Alguma pesquisa, levou-me a encontrar outras industrias, mas não explorei muito o assunto.

Paradoxalmente, dada a riqueza que parece criar e a necessidade extrema de cuidados, depois de um acidente muito grave de 1976, Manfredonia apresenta atualmente uma paisagem urbana desqualificada (pelo menos na parte que eu vi). No acidente, uma quantidade estimada entre 12 e 39 toneladas de um aerossol de arsénio (segundo um trabalho que li, K3AsO3 e HAsO3), usado numa chaminé de produção de amoníaco, foi libertado para a atmosfera, caindo num espaço de 15 km2. Mesmo que o número fosse muito mais pequeno, tratar-se-ia igualmente de um acidente muito grave.

Morreram logo muitos animais e várias pessoas ficaram gravemente envenenadas. Segundo li, começou-se por desvalorizar e esconder o problema, houve algumas medidas de mitigação, como oxidar o arsénio para compostas mais insolúveis, mas, para uma comunidade que vivia essencialmente da agricultura e da pesca, foi devastador. Agora o local está indicado como sendo uma região de preocupação nacional, mas, sinceramente, não se nota. A circulação rápida pela cidade que fizemos revela um ambiente desqualificado, como já referi, com ruas esburacadas, prédios sujos, mal pintados e desorganizados, sinais e marcas e trânsito apagados, sem espaços verdes, etc. As praias são todas
Lido (que para quem não sabe são a versão paga de praia – não temos isso em Portugal) com estacionamento algo caótico. Ao lado fica uma zona húmida pantanosa que faz parte do Parque do Gargano e que bem poderia ser mais valorizada.

Este acidente tem, entretanto, sido muito estudado, tanto em termos da segurança e política industrial como epidemiológicos. O que salta à vista é o desconhecimento que ainda hoje temos do aconteceu realmente (três artigos científicos que consultei indicavam valores bastante diferentes das quantidades, assim como dos compostos envolvidos), assim como a ligeireza com que o problema foi tratado pelas autoridades. Não pode nem deve ser assim, como já referi. As cidades não têm de ser feias só porque são industriais, nem por serem industriais têm de ser feias. Muitos dos produtos são fundamentais para a nossa vida, mas isso não implica que sejam produzidos em condições insalubres. Os custos disto, são muito maiores do que os da segurança e da estética. Ao provocarem desconfiança justificada, quando se procura instalar uma mina ou fábrica perto de nós, estas acabam por ir parar ao locais mais pobres e com menor poder de revindicação, perpetuando a situação.
Gostaria de acabar com a
Floresta Umbra. Trata-se de uma floresta essencialmente de bétulas que tem na sua base alguns azevinhos, gilbardeiras e poucas mais espécies que conseguem resistir à sombra (daí o nome) causada por estas árvores. Havia um lago muito bonito, uma cerca com veados e um pequeno mercado de produtos locais (foi neste que vi o queijo). Uma boa parte das árvores estavam atacadas por trepadeiras que quase sempre levam à morte da árvore hospedeira, penso que por enterrarem fundo as suas raízes (a natureza não é boa em si: é como é). Por isso, muito troncos das trepadeiras estavam cortados (para mantermos o ambiente que queremos, temos de fazer algumas intervenções).

Quando chegámos, pelas dez horas da manhã, havia muito poucos carros. Entretanto, seguimos um percurso pedonal com cerca de sete a dez quilómetros, tendo só encontrado pelo caminho um casal com um cão. Mas, quando voltámos (fazendo outros sete a dez quilómetros, pelo menos), agora pela estrada, o local estava cheio de carros. Pelo caminho fui reparando que a maioria das rochas era de um material que parecia ter um interior de silex, mas tinha várias camadas e só as rochas partidas evidenciavam isso.
Há imensas coisas para fazer e ver na Puglia, mas sobretudo o que está bem ou mal faz-nos pensar em nós. Toda a viagem é também uma viagem interior, de alguma forma. Havia por vezes lixo a mais nas ruas e autoestradas. Mas estavam mais limpas as estradas de vegetação. Se, no primeiro caso, é uma questão de civismo e organização, no segundo também. Havia praias e locais lindíssimos que tinham ao lado a maior desorganização e estadas esburacadas e sujas para lá chegar, mas havia sítios extremamente organizados e limpos. Não é uma fatalidade, os sítios organizados e limpos, podem ultrapassar os lugares desorganizados e sujos, tanto no Sul de Itália, como em Portugal, com trabalho, dedicação, atenção e consistência. Se virmos imagens antigas da Suécia, Islândia, ou de outros lugares que hoje nos parecem paradisíacos, vemos que a mudança é possível.
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