[Descreve-se sucintamente uma Oficina de Formação para Professores que teve lugar no dia 10 de julho de 2025 no âmbito das Abordagens Interdisciplinares para a Docência na Universidade de Coimbra (AIDUC)]
Iniciámos o passeio no átrio da Física. Dei aos professores presentes na Ação de Formação duas latas (vazias) de água tónica para observarem. Alguns deles referiram pequenas diferenças nas cores e nos sons emitidos quando as latas eram apertadas, outros referiram as massas ligeiramente diferentes. Quando lhes perguntei hipóteses para a composição, referiram o alumínio, mas não tinham em geral ideia de qual fosse o outro material. Quando usei um iman para atrair a lata, todos os presentes concordaram que deveria ser uma liga de ferro. Claro que podemos fazer outros testes e verificações. Não tive tempo de o fazer, mas poderíamos determinar as massas das latas (12,372 g a lata que é essencialmente de alumínio e 23,111 g a que é essencialmente de ferro), assim como a sua área (237,49 centímetros quadrados) e, assim, estimar a espessuras das paredes, considerando as densidades do ferro (d=7,87 g/mL) e do alumínio (d=2,70 g/mL). As espessuras que obtive são respectivamente cerca de 0,19 mm para a lata de alumínio e 0,13 mm para a lata de ferro. Queria com isto chamar a atenção para a aprendizagem ativa e para o uso de materiais que se podem encontrar no dia-a-dia. E também para as questões económicas que envolvem todas as actividades. Hoje em dia é praticamente impossível encontrar latas de refrigerantes de ferro pois é mais económico fazê-las de alumínio, mas se houver desenvolvimentos tecnológicos que beneficiem o uso de ferro, ou até variações dos preços dos materiais, a situação pode inverter-se.Planeava falar dos alumínios anodizados das portas da Física e da Química, assim como dos vidros planos (desse aspecto falei mais tarde), mas a conversa derivou para um modelo da molécula da penicilina que lhes ia mostrar no átrio do Departamento de Química. Assim, no vão do Edifício da Física e da Química começamos a falar da penicilina e da sua descoberta. Foi referido, claro, Alexander Fleming e a “descoberta por acaso” da molécula, mas todos concordaram que não foi completamente por acaso, pois Fleming estava bem preparado e soube identificar a oportunidade. Chama-se a isso “serendipidade”, mas não me lembro de o ter referido no momento. Fleming havia estado como médico na Primeira Guerra Mundial e procurava ativamente um medicamento para as infecções. A maior descoberta de Fleming foi pensar que aquele material poderia ser um novo medicamento, mas não conseguiu isolá-lo. Quem fez isso foi Howard Florey e Ernst Chain, e as suas equipas, durante a Segunda Guerra Mundial. Nessa altura foi constituído um projeto secreto envolvendo cerca de três mil pessoas, com contribuições públicas e de empresas, para obter penicilina para os militares aliados. Este projeto tinha dois objetivos: fazer o isolamento da penicilina e produzi-la em grande quantidade, e produzir a molécula de forma sintética, também em grande quantidade. O primeiro objetivo foi cumprido ainda a tempo de contribuir para o esforço de guerra, mas o segundo teve de esperar pelo fim dos anos 1950.A penicilina é um bom exemplo de como funciona a ciência moderna. Envolve equipes, muitas vezes multidisciplinares, com homens e mulheres e precisa de financiamento. Embora as equipas de Florey e Chain tenham conseguido isolar a penicilina na Grã-Bretanha, a produção em massa só ocorreu nos Estados Unidos com as sugestões de uma das primeiras engenheira químicas americanas, Margaret Rousseau, e a contribuição de uma mulher que ficou conhecida como “Mary Mould” (Mary Steven) sobre a qual há pouca documentação. Embora, na altura, não tenha sido ainda, infelizmente, atingida a paridade de género, vemos que esta está em evolução. Entretanto, a estrutura química da penicilina vai ser identificada por Dorothy Hodgkin em 1945, abrindo o caminho para a síntese total por John Sheehan e a sua equipe, em 1957, abrindo caminho para o desenvolvimento de penicilinas semi-sintéticas. Eu tinha um modelo da benzilpenicilina e mostrei como era a estrutura da ampicilina e da amoxicilina. Hoje em dia a maior parte das moléculas usadas como medicamentos não são bioinspiradas mas o mundo natural continua a ser uma fonte provável de novos medicamentos e mecanismos de ação. Daqui fomos ver, no segundo piso, a obra de João Nascimento (1941-2013) sobre a História da Química. Esta esteve durante muito tempo arrumada, mas foi exposta este ano de 2025. Muitos dos professores lembravam-se dela, em particular do painel com o “Lavoisier decapitado”. Eu fiz um pequeno enquadramento em que referi que o artista havia sido contratado em 1973, para produzir obras para decorar o interior do edifício, mas só em 1975 entregou as oito obras encomendadas, assim como as suas memórias descritivas. Muito provavelmente Nascimento sentiu-se mais livre e pode incluir paineis mais provocadores como o do “Lavoisier decapitado”, apresentado no “momento mais dramático da sua vida”, segundo escreveu na memória descritiva, acrescentando a célebre frase atribuída a Lavoisier “nada se perde tudo de transforma”. O autor inscrevia-se numa corrente artística irónica que procurava criar efeitos de surpresa. Nestes paineis as molduras foram pintadas, algo que muito dos professores só agora se aperceberam agora pois puderam ver a obra de perto. Na Física está exposto um quadro que poderemos considerar ainda mais provocador onde está pintada a parte de trás de uma tela onde um artista faz anotações casuais e testes relativos ao tipo de tintas de acrílico usadas, na qual Nascimento pintou as madeiras e travões da tela. Ao mesmo tempo tem uma anotação sobre o número de mortos causados pelas explosões atómicas de Hiroshima e Nagasaki, pintando também uma gravura com um cogumelo atómico. As outras obras são também interessantes. Vimos a pintura de dimensões que está no primeiro piso e que é alusiva aos estados da matéria.Mas voltando à obra relacionada com a História da Química, a qual tem dois metros de altura por sete de largura, tendo sete paineis. Segundo a memória descritiva do autor, o primeiro painel faz alusão à “natureza sem Química”, outro ao início da ciência e outro ao “Químico Cético” de Robert Boyle. O maior dos paineis é do famigerado Lavoisier decapitado que tem uma guilhotina e sua cabeça cortada, com a pintura de bastante sangue. Outro painel é alusivo a Dalton, mas realça a descoberta por este autor do Daltonismo, em vez do desenvolvimento da moderna teoria atómica. Tudo isso deriva da liberdade artística do autor, como é óbvio. Nos restante dois paineis está representada a difração da luz, o que deve ter agradado bastante aos professores da altura, pois a espectroscopia sempre foi um campo forte na investigação no Departamento. Guardei para o fim o painel mais enigmático: a representação de Norbert Wiener e de um olho de mosca ampliado que parece um agregado de átomos. Não sabemos qual era a intenção do autor pois na memória descritiva é apenas descritivo, mas até poderia ter havido alguma confusão com um nome muito mais relevante da História da Química, Alfred Werner. Curiosamente, agora Wiener faz muito sentido dado ter teorizado a cibernética que está relacionada com a atual Inteligência Artificial (IA). Fomos ainda ver o anfiteatro com a tela da Tabela Periódica e passámos para o outro lado da rua, para observar um fresco na Faculdade de Medicina. Chamei a atenção para Bernardino António Gomes (1768-1823) e a descoberta da cinchonina que abriu o caminho para a descoberta da quinina por Pelletier e Caventou. Trata-se de uma descoberta importante para a ciência portuguesa que foi rapidamente anulada por polémicas. Referi depois, António Egas Moniz (1874-1955) o único Prémio Nobel português ligado à ciência. Escrevi sobre ele mais detalhadamente, mas por agora vale a pena referir que o procedimento cirúrgico chamava-se leucotomia pré-frontal e foi desenvolvido numa altura (anos 1930) em que não havia tratamentos eficazes para doenças mentais, os quais só virão a aparecer nos anos 1950. Referi ainda Garcia d’Orta e Amato Lusitano. Perto da outra porta da faculdade de medicina referi as moléculas termocrómicas da cor de uma caneca e o elemento gálio que tem um ponto de fusão de cerca de 30ºC (do qual tinha uma amostra que pude liquefazer).Fomos em seguida observar o painel alusivo à Física e Química na parede da Biblioteca Geral. Referi na altura a piada que a Química sofria de uma “tragédia ortográfica”: o “Q” ficava depois do “F” no dicionário, mas chamaram-e a atenção para o facto de “ser uma tragédia moderna” pois antigamente escrevia-se “Physca” e “Chymica”. Noutro ano formos por outros caminhos.
Daqui fomos para a Porta Férrea e para o interior do Pátio das Escolas onde discutimos a oxidação do ferro, a erosão das rochas, as cores muito brancas das paredes e os vidros antigos.
Estávamos a ficar sem tempo e fomos até à entrada do Jardim Botânico, onde recolhemos em solução aquosa um pó branco que estava nas paredes dos Arcos do Jardim. Com umas gotas de cloreto de bário forma-se um precipitado o que é uma boa indicação de ser um sulfato. É de facto, sulfato de cálcio, tendo o enxofre origem na atmosfera devido aos carros. Finalmente, referimos o eucalipto que cheira a limão e tinha amostras de citronelal (o composto responsável pelo cheiro) e de geraniol e eucaliptol, isómeros desse composto de fórmula C10H18O.Despedimos-nos com a certeza de haver muito mais coisas para observar, testar e explicar.