Passeios químicos em Ovar


[Estive várias vezes em Ovar. A última, foi nas II Jornadas Dinisinas, para cujo convite pela Câmara Municipal de Ovar foi central uma visita que fiz ao Museu Júlio Dinis - Uma Casa Ovarense organizada pela Liga dos Amigos da Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra.]

Ovar é uma cidade cheia de atrativos e curiosidades, de que referirei aqui alguns, nos quais reparei e que têm a ver com a Química. Há com certeza outros a descobrir.  

Júlio Dinis (1839-1871) é o pseudónimo de Joaquim Guilherme Gomes Coelho, formado em Medicina e professor na Escola Médico-Cirúrgica. Não exerceu a profissão de médico, devido, em parte, à tuberculose de que sofria, mas segundo o professor Levi Guerra, ainda chegou a ter um consultório. O escritor esteve na casa, que é agora o Museu Júlio Dinis, a qual era de sua tia, cerca de quatro meses a repousar e a procurar melhorar da tuberculose, tendo escrito uma parte do seus romances "As Pupilas do Senhor Reitor" e “A Morgadinha dos Canaviais”, assim como outros trabalhos de que se destaca “O Canto da Sereia”. 

Eu escrevi um artigo para a Revista Dunas deste ano sobre Júlio Dinis e a Ciência do seu tempo, sendo que esta revista será apresentada em 8 de dezembro de 2025. Embora não seja só de Júlio Dinis de que quero falar, não posso deixar de referir o que escrevi no artigo: “num país essencialmente analfabeto, Júlio Dinis procurou educar a população, de uma forma bastante avançada para a época, através dos seus livros. De facto, ao longo de todo o século XIX, e mais tarde, iremos encontrar pessoas genuinamente preocupadas com a Educação em Portugal, mas não consideraram a atitude popular e pragmática que Júlio Dinis desenvolveu” e mais adiante “Júlio Dinis procurou estimular a Educação e o Desenvolvimento num país atrasado e não glorificar a vida campestre, como por vezes se pensa.”

Uma das coisas que me chamou a atenção na Casa-Museu foram os talheres que pareciam entre prateado e acobreado (aliás eram muito semelhantes aos que estão em exposição na cozinha da Casa-Museu Egas Moniz). Poderão ser de um material denominado “prata alemã.” Ora o que é essa prata alemã? Uma coisa é certa não tem na sua composição o metal prata. É cobre recoberto de zinco e níquel. Provavelmente ao longo o tempo, o zinco e o níquel foram-se misturando com o cobre ou oxidando (o zinco pois o níquel já tem uma camada de óxido estável na sua superfície), ou sendo removidos pelo uso, ficando os talheres mais amarelos. É preciso notar que século XIX e primeira metade do século XX, o aço inoxidável não existia. Na Casa-Museu Egas Moniz, há talheres de prata que deveriam ser usados na refeições dos patrões, mas nos dez ou onze meses em que os criados estavam sozinhos, deveriam usar os outros. 

Nesta casa da tia de Júlio Dinis cozinhava-se provavelmente usando panelas de ferro fundido de três pés na lareira e na casa de Egas Moniz há um fogão a lenha. O gás só se tornou preponderante depois da Segunda Guerra Mundial. Antes eram mais comuns o uso da lenha, diretamente ou em fogões, ou os fogões de petróleo. Nos jornais dos anos 1940 são costume os anúncios a estes fogões a petróleo nos quais a combustão é feita com o vapor combustível do composto e se aumenta a pressão com um pistão parecido com os bombas de ar das bicicletas. Hoje é comum o gás de botija que, embora seja designado "butano", tem cerca de um terço de propano, o gás natural que é essencialmente gás metano, e os discos elétricos e de indução eletromagnética.
Nos dois últimos casos o fogão funciona com eletricidade, sendo no primeiro uma resistência que aquece com a passagem de corrente elétrica e no segundo com a indução obtida com a passagem de uma corrente elétrica numa bobine abaixo do vidro de cobertura do fogão e uma panela de material ferromagnético, em geral aço. Deve notar-se que nem todo o aço é feromagnético e as composições usuais com 18% de crómio e 10% de níquel (corrijo) podem ou não ser (poderá testar-se com um íman). Depende da quantidade de ferrita que temos nos 72% de ferro. Uma das formas de aumentar a eficiência deste tipo de fogão é ter panelas mais magnéticas, mas mesmo assim a eficiência desta forma de aquecimento é relativamente alta, sendo de 80-90% comparada com os 60-70% do aquecimento elétrico normal e 40% do gás. Pode pensar-se que o gás é menos eficiente mas deve ter-se em conta como é obtida a energia elétrica (se for em turbinas de co-geração a gás natural, esta é de cerca de 60%). Poderia parecer também que nada disto tem a ver com Química, mas pense-se nas composições das panelas e dos bobines, a composição do gás e a sua combustão, entre muitas outras coisas.       

Ainda no Museu Júlio Dinis, podemos reparar nos vidros antigos das janelas. Como já referi várias vezes, ate cerca de 1950 os processos de produção de vidros planos faziam com que os vidros ficassem com imperfeições que são são bem visíveis. Depois desta data, os vidros planos comecaram a ser fabricados num processo que envolve estes solidificarem (o que acontece no intervalo entre 700 e 900ºC, dependente do tipo de vidro) em estanho líquido (ponto de fusão 232ºC) e assim ficarem com a superfície muito lisa e plana. 

Na casa pode também reparar-se que não havia água canalizada, sendo que a água tinha de se ir buscar a uma fonte. Mas, mais do que a comodidade, existiam outros problemas. De facto, nesta altura a água não era tratada nem analisada em relação a contaminações microbianas ou outras. Embora fossem usados alguns processos de filtração com areia e as águas correntes fossem melhor oxigenadas, havia uma elevada probabilidade de contaminações. Não esqueçamos que a água não tratada matou um rei português (D. Pedro V) e na primeira metade do século XX ainda eram comuns as epidemias de febre tifóide, cólera e outras. 

Até à segunda metade do século XIX, ainda não eram bem conhecidos os processos de contaminação biológica. A teoria dos germens desenvolvida por Pasteur estava a dar os seus primeiros passos no final da vida de Júlio Dinis. E no início do século XX ainda não tinham sido bem optimizadas as redes de abastecimento de água. 

Uma fonte do centro da cidade, e que era usada para abastecimento de água, é a Fonte de Neptuno. Nesta elegante fonte podem observar-se os canos de saída de água. Uma fonte mais moderna em que reparei estava situada junto ao Museu Júlio Dinis. Ao longo de toda a cidade à fontes que são agora essencialmente decorativas, mas no tempo de Júlio Dinis era nestas que a população se abastecia de água. Quando estive em Ovar a última vez, estava a chover muito e as fontes que se situavam abaixo do nível do solo estavam inundadas. 

Em Ovar há muita água quando chove. Pude observar, quando lá estive, o parque da cidade onde passa o Rio Cáster parcialmente inundado. Mas esse efeito foi previsto no desenho do parque para absorver a água do rio e não causar inundações na cidade. Muitas vezes não percebemos essas coisas, mas isso foi-me muito bem explicado pelo diretor do Museu Júlio Dinis, dr. António França.   

Ali perto, no Parque Cáster, estão as engraçadas e conhecidas estátuas alusivas ao Carnaval de Ovar da autoria de José Guimarães, em bronze e aço inoxidável. O bronze como já referi várias vezes é uma liga com cerca de 70% de cobre e 30% de estanho que é muito usado nestas estruturas públicas devido à sua resistência e bom envelhecimento durante o qual se forma na superfície uma camada cabonato básico de cobre que é verde escuro. O uso de aco inoxidável é interessante pois dá um aspeto espelhado, onde nos podemos ver. 
O Carnaval de Ovar é considerado o mais típico e o maior do país com milhares de foliões e participantes. Curiosamente, as cerimónias da posterior Semana Santa são também muito importantes, havendo na cidade várias capelas para isso. O Presidente da Câmara, dr. Domingos Silva, disse-me que a cidade fazia parte de uma rede ibérica de comemorações da semana santa. Não sendo um assunto de Química diretamente, vê-se facilmente que os dois aspetos estão relacionados entre si e com a religiosidade e extroversão das populações, assim com as suas relações antigas com o mar.  

Voltando ao Museu Júlio Dinis, outro aspeto a considerar é a iluminação. Esta era feita na casa essencialmente através de velas e candeeiros. Nas grandes cidades, como o Porto, já existiam estruturas de abastecimento de gás para iluminação na rua e nas casas ricas, mas não em cidades pequenas como Ovar. As velas poderiam ser de sebo que era de gordura animal, ou de estearina que implicava serem feitas retirando os componentes da gordura que são líquidos ficando a estearina. Eram velas mais claras e não tinham cheiro, mas mesmo assim eram muito pouco eficientes.
Uma vela típica tem uma potência total de cerca de 50 watts, o que seria razoável, mas o problema é que quase toda a potência e usada para aquecimento. Temos cerca de 0.05% de eficiência luminosa, sendo os restantes 99.95% perdidos como calor. Ao longo do século XX melhorou a eficiência luminosa, sendo que uma lâmpara incandescente têm cerca de 2%, uma lâmpada fluorescente cerca de 15% e uma lâmpada LED tem um máximo teórico de eficiência de 40%. Vê-se assim que ainda há espaço para melhorar a eficiência. Também em termos de sustentabilidade, há muito para dizer. Uma lâmpada LED pode durar 50 mil horas e uma vela típica cerca de seis horas. Assim, precisariamos de cerca de 8 mil velas ou cerca de 350 quilogramas de velas para ter o mesmo resultado que uma lâmpada LED, sendo que a luz gerada por uma vela será cerca de mil vezes inferior. No tempo de Júlio Dinis, o uso de petróleo  (querosene) em candeeiros estava a popularizar-se mas nos seus livros este só refere candeeiros de azeite que provavemente eram menos cheirosos e fumarentos.

Finalmente, gostaria de referir os esgotos. Não existiam em geral. Os dejetos juntavam-se provavelmente com os dos animais e eram curtidos (processo em que o estrume é fermentado com palha ou outros restos vegetais dando-se o seu aquecimento o que  leva à morte de muitos microorganismos). As pessoas tinham nos quartos uma “peniqueira” e um penico onde faziam as suas necessidades (agradeço a um participante do colóquio referir isso a partir de uma fotografia que apresentei). Esse costume (de ter penicos nos quartos) continuou mesmo muito depois de se generalizarem os esgotos e casas de banho, mas hoje é só uma memória. Antes do advento dos plásticos, esses penicos eram de faiança, porcelana ou esmaltados.  

Uma antiga fábrica de papel junto ao rio Cáster depois de ser requalificado o edifício é agora a Escola de Artes e Ofícios. O fabrico artesanal de papel é bastante antigo, mas na Europa tornou-se significativo quando foram trazidas da China o conhecimento do uso de fibras vegetais para fazer papel. Logo na entrada da Escola ainda se pode ver o moinho onde eram trituradas as fibras vegetais e obtida a pasta de celulose através de um moinho de galgas (com uma espécie de mós rotativas e fixas no meio, segundo percebi e se pode intuir pela fotografia que fiz). 

Junto à escola reparei num grampo de ferro segurando duas pedras que é chumbado, ou seja tem chumbo à sua volta no encaixe do ferro com a pedra. Como já referi várias vezes, o chumbo tem um ponto de fusão relativamente baixo (327.5ºC) e é muito maleável, sendo por isso ideial para esta função antiga.  

Na Escola de Artes e Ofícios foram feitas várias esposições sobre as artes tradicionais do concelho. A primeira foi sobre a cordoaria e abarcou desde os tempos antigos e a utilização de materiais naturais (o sisal, e o cânhamo) até à atualidade com a utilização de materiais artificiais (polipropileno, polietileno, poliéster e a poliamida mais conhecida – o nylon). Em relação à atualidade há que realçar que a maior empresa portuguesa de produção de cordas, a Cordex, está localizada no concelho.  

No que concerne à roupas tradicionais, no século XIX e inicio do século XX, como se pode constatar num catálogo editado pela Câmara Municipal de Ovar, não existiam polímeros artificiais como o poliéster e as poliamidas, tendo os tecidos basicamente duas origens: vegetal ou animal. No caso das origens vegetais eram comuns o algodão e o linho, cujo material básico é a celulose, e no caso de origem animal, a seda e a lâ, cujos materiais básicos são proteínias, em particular queratina na última.   

A cerâmica de consumo tem uma tradição antiga em Ovar, como se pode verificar no muito bom catálogo da exposição relativa à olaria no concelho. E no século vinte, teve algum impacto nacional o fabrico de vasos, na fábrica Regalado e de telhas noutras fábricas. Tanto os vasos como as telhas são objetos de barro vermelho cozido, mas há também referências ao fabrico de loiça negra, as quais são cozidas como as de barro vermelho, mas em condições de pouco oxigénio para que ocorra essa incorporação de matéria negra carbonácea. Já referi várias vezes nestes passeios químicos, mas a produção de loiça de barro (aliás como as de grés e de porcelana) envolve um processo irreversível de cozedura, no qual se liberta água e se formam ligações química que asseguram a rigidez do material. Este, finamente moído, pode ser reciclado e incorporado nas pastas de cozedura, mas não volta a ser o barro que foi. Também interessante é a porosidade, tanto dos vasos e bilhas, como telhas, que acaba por ser útil de várias formas. No caso das bilhas para guardar água, essa porosidade é muito útil pois permite a lenta evaporação da água, o que, sendo um processo endotérmico (com libertação de energia), faz com que baixe a temperatura e assim mantendo a aǵua “sempre fresca”.      

O azulejo tem também bastante tradição em Ovar, que foi classificada como Cidade-Museu do Azulejo, existindo uma publicação pela Câmara Municipal de um guia com um percurso recomendado. A Câmara de Ovar assume de tal forma essa classificação que usa no seu símbolo um motivo típico de azulejos locais. Tratam-se de azulejos semi-industriais datados do século XIX e início do século XX usando três técnicas essencialmente: estampilhagem, estampagem e relevo. Na primeira aplicava-se a estampilha já depois do vidrado, na segunda antes do vidrado transparente e a última pode ser obtida usando moldes de madeira. As três técnicas envolvem cm certeza mais problemas específicos, mas consigo pensar em dois bastante óbvios: na primeira técnica tinham de ser usadas tintas que aderissem bem ao vidrado e resistissem ao tempo e no segundo caso as tintas teriam de resistir ao aquecimento, tendo se ser de compostos inorgânicos, sendo o mais comum os sais de cobalto que originam os coloridos azuis dos azulejos. Eu não tive oportunidade de visitar a capela da Válega, mas do que vi em fotos são fascinantes os seus azulejos com muitas cores que tiveram origem na Fábrica Aleluia.

Outra arte tradicinal de Ovar, era (e ainda é, mas com outros sentidos de utilidade) a tanoaria. Nesta, que chegou a ser muito mais importante que a cordoaria, como me referiu o diretor do Museu Júlio Dinis, eram produzidas barricas que serviam inicialmente para guardar peixe salgado e só depois encontraram caminho para guardar vinho. Não vou falar muito tempo desta arte, mas há muito ciência nas escolhas das madeiras, no fabrico das aduaelas e depois no uso dos barris. É o líquido interior que ajuda a impermeabilizar o conjunto e no caso do vinho e aguardentes, há uma parte que se perde absorvida e evaporando-se pelas madeiras que ao mesmo tempo transmitem sabores complexos ao líquidos. Também seria assim, penso eu, no armazenamento do peixe salgado, em que a madeira acabava por poder contribuir para os compostos que davam o sabor. 

O pão-de-ló de Ovar é muito famoso. A descrição que dele é feita no livro de Luiz Dias é a seguinte: feito de ovos (especialmente gemas), açúcar e farinha, a sua estrutura é gradualmente composta, no seu todo, por uma massa muito fofa e leve, tendo na parte superior uma finíssima côdea, húmida e de cor levemente acastanhada, circundada por uma orla de massa cremosa de tom amarelo-ovo, toda ela com um magnífico e exótico aroma. Tanto os ovos, como a farinha são misturas muito complexas de materiais, mas curiosamente o açúcar, é essencialmente sacarose.
Lendo esta descrição que parece não ter nada a ver com Química, podemos facilmente referir os materiais, cores e estrururas (sacarose, côdeas, amarelo, misturas, e outras) e os processos. Quando as pessoas dizem (quase sem pensar) que "não tem químicos" referem-se às ideias de que "não tem químicos artificiais" ou "não tem químicos adiciinados", mas mesmo nesses caso há ambiguidades pois por exemplo o acúcar, sendo de origem natural, é obtido de "forma artificial" se consideramos o processamento. Na verdade, não há pão-de-ló sem processamento (os ovos têm de se misturar com a farinha e o açucar e têm de se levar ao formo, por exemplo). Mas que processamento bom! Tem boa Química, diriamos! 

O artista Emereciano, natural de Ovar, desenvolveu um estilo único e facilmente identificável. Queria referir dois aspetos em que a sua técnica e percurso se relacionam com a Química. Um mais direto que tem que ver com a tinta acrílica e outro, muito mais indireto e longínquo, mas que teve impacto, segundo o que este refere no catálogo, relevante na sua vida: a guerra de áfrica. Este texto já vai longo e não vou referir a química das tintas acrílicas nem a "má química" da guerra. Neste último caso, é bastante óbvio referir que são as más ações das pessoas e dos governantes que são responsáveis pela "maldade" e não os materiais ou os processos. 

Quando visitei a Museu Júlio Dinis com a Liga dos Amigos da Biblioteca Geral, estava lá uma exposição de Rosa Bela Cruz que usa uma técnica mista, mas tendo uma referência importante à pintura a óleo clássica. Também não vou referir a química envolvida na pintura a óleo, mas podemos ter a certeza que tem muita. Vou apenas referir que se a Ciência ajuda a explicar e criar a Arte, a Arte ajuda a gostar de Ciência, sendo ambas importantes para a nossa vida material e espiritual, dando a união harmoniosa das duas, a Cultura e a Alegria de Viver. 

Já depois de publicar a crónica acima, fiz alguma pesquisa sobre empresas relacionadas com a Química em Ovar. Temos bastante tendência para não pensar nas empresas que estão à nossa volta, também por estas não serem atualmente fumegantes, ruidosas e mal-cheirosas, e por cada vez mais usarem a linguagem das soluções em vez da linguagem dos produtos ou das matérias-primas, mas na verdade são estas empresas que desenvolvem muitos dos utensílios que usamos e que geram os empregos que as pessoas têm. 

Eu e uma das minhas cunhadas, Engenheira Química, numa fábrica perto de Ovar, por vezes filosofamos sobre a beleza quase escondida das instalações industriais que é infelizmente pouco conhecida. Eu tinha referido a Cordex acima, mas faz sentido referir, por exemplo, a Multicol que faz cordas finas usando polipropileno, assim como outras. Muitas das empresas desta região (mas de outras também) organizam-se em sistemas ecológicos que em vez de competirem. colaboram e diversificam. 
Não deixa de ser interessante que as empresas ligadas a produtos semelhantes ou complementares estejam muitas vezes localizadas perto. E, como referi acima, quase todas usarem a linguagem das soluções em vez da linguagem dos produtos. A Flex2000, por exemplo fabrica colções usando espumas de poliuretano, mas o que oferece são soluções de conforto, a Flexpur fabrica poliuretano, mas oferece conhecimento e soluções, EAB, fabrica espumas e solas de sapatos de látex, mas o que oferece é, mais uma vez, conforto, a Trimteck oferece soluções de fibras muito finas para o conforto e durabilidade na puericultura e na medicina e poderiamos referir outros exemplos. Estas empresas fabricas e usam poliureatano, polipropileno, polietileno, poliestireno, mas embora isso apareça na conversa o mais importante são as soluções e serviços que oferecem. As empresas ligadas ao papel, desde a pasta à embalagem, parecem também complentares e localizadas perto. Em Cortegaça encontramos a DS Smith, a PPS, Palm Packaging, entre outras. E mais uma vez o que oferecem são soluções. Na minha opinião, isto não é hipocrisia ou calculismo, mas uma verdadeira mudança de paradigma. A vantagem é óbvia, as desvantagens são a cada vez maior distância entre os consumidores e os produtores o que pode fazer com que se perca a noção das origens, dificuldades, necessidade e processos. Como eu já anteriormente referi a propósito do famoso poema de Sophia, O Rei de Ítaca

A civilização em que estamos é tão errada que, 
Nela o pensamento se desligou da mão

Ulisses rei de Ítaca carpinteirou seu barco
E gabava-se também de saber conduzir
Num campo a direito o sulco do arado

O “erro” da civilização não é tanto Ulisses já não saber fazer ou usar um arado, mas já não ter nenhuma ideia de onde vem, para que serve e como é feito um arado.

Referências

António Manuel França de Jesus. Ovar: memórias industriais de uma urbe. Tese de Mestrado, Universidade do Minho, 2011.

Atelier d’arquitetura J. A. Lopes da Costa. Casa-Museu Júlio Dinis. Caleidoscópio, 2015.

Câmara Municipal de Ovar. 1.7 Olaria de Ovar – Catálogo da Exposição, 2016.

Câmara Municipal de Ovar. 3.7 Olaria de Ovar – Catálogo da Exposição, 2018.

Câmara Municipal de Ovar. Vai Passear. Ovar, cidade-museu do azulejo. s.d.

Câmara Municipal de Ovar. O trajo popular no concelho de Ovar 1850-1910, 2024.

Emerenciano Rodrigues. Querer dizer: Emerenciano, 50 anos entre a pintura e a escrita – Catálogo da Exposição. Câmara Municipal de Ovar, 2024.

Fernando Andrezo, Pedro Brás Marques, João Carlos Pinto, Luis Rodrigues, José Santa Clara. Na Fábrica. Edição de Autor, 2019.

Júlio Dinis. O Canto da Sereia (ilustração de Pedro Podre e estudo de Ana Soares Ferreira). Caleidoscópio, 2021.

Luiz Duarte de Oliveira Dias. Pão de ló de Ovar: o mais antigo e acreditado. Edição de Autor, 2010.

Maria Isabel Moura Ferreira. Azulejos tradicionais de fachada em Ovar. Câmara Municipal de Ovar, 2018.

Região de Aveiro. Barco Moliceiro – uma herança da Ria de Aveiro (2ª edição), 2025.

Revista Dunas, anos 2018-2024

Rosa Bela Cruz. Um rosto nunca é apenas um rosto – Catálogo da Exposição. Câmara Municipal de Ovar, 2025.

Sérgio P. J. Rodrigues. Química e Saúde Pública: Elementos da História de uma relação fundamental. Revista Multidisciplinar 4(2), 57-74, (2022), https://doi.org/10.23882/rmd.22087


Passeios Químicos em Soure

[No dia 24 de novembro de 2025 realizei um Passeio Químico com alunos e professores na Escola Básica e Secundária Martinho Árias de Soure e antes reuni informação para um passeio químico nesta vila que escrevo aqui]

A entrada principal de Soure é feita por uma ponte com três secções na confluência dos rios Anços e Arunca, tendo uma elegante roda de tirar água em funcionamento. O castelo fica ao lado, e foi saqueado e destruído várias vezes pelos mouros no século XII, tendo sido doado aos Templários, primeiro por D. Teresa e depois por D. Afonso Henriques.

A água corria abundantemente e estava turva e castanha devido às partículas em suspensão. Como sabe o senso comum, quanto mais pequenas são as partículas mais tempo ficam em suspensão, sendo que abaixo de determinadas dimensões a emulsão pode ser estável. Isso acontece quando a repulsão entre as partículas compensa as suas atrações e não há formação de partículas de maiores dimensões (maiores do que cerca de um micrometro) que precipitariam por ação da gravidade, a qual se sobreporia à ação do movimento Browniano que as mantém em suspensão. Aqui estas questões não se aplicam, pois a água em movimento induz fenomenos de caos que mantém a turvação da água. Foi nisto que pensei quando cheguei e olhei para os rios, mesmo antes de entrar na vila.  

A cultura do arroz tem ainda um papel relevante com uma cooperativa de produtores e julgo que fábricas de descasque. O arroz nasce em terrenos alagados e o seu cultivo envolve muita água. Não sei como foi em Soure, mas perto de Coimbra a cultura do arroz enfrentou alguma resistência das populações locais, pois a presença de água estimulava a presença de mosquitos que transmitiam a malária, a qual era conhecida por paludismo ou febres intermitentes. Essa doença desapareceu nas zonas temperadas com a eliminação dos mosquitos mas era comum até à Segunda Guerra Mundial em toda a Europa, inclusive em cidades como Berlim. O grão de arroz é constituído essencialmente de amido, que é um polímero de glicose (na verdade há dois tipos de polímeros de glicose no amido: a amilose e a amilopectina). Não tendo glúten, que é uma mistura de proteínas que existe no trigo e noutros cereais, para algumas pessoas, alérgicas ou intolerantes ao glúten, é melhor. O cozimento do arroz é realizado para amolecer o grão que absorve água e neste processo fica mole e comestível. 

Na parte de trás da Escola Fica uma grande quinta que tem vacas, a Quinta das Nogueiras, que tem na entrada uma elegante estátua de uma rede grossa de aço inoxidável, representando um touro e uma imagem estilizada de uma nogueira do que me pareceu de bronze (mas será provavelmente de aço cor-ten). Também dignos de nota são os vidros laminados usados na vedação. Exteriormente, a construção envolve uma grande riqueza de materiais e processos, mas acontece o mesmo com as que parecem mais modestas. No que concerne às vacas parecem estar ali para a produção de carne, mas vou discutir a produção de leite. É paradoxal que só com a evolução da ciência e técnica é que se pode dar estrutura objetiva à ideia de "pureza". 

De facto, o leite não tem nada adicionado e pode ser verificada rigorosamente a sua composição. Embora continue a ser perigoso cosumir leite cru (ou seja sem ser pasteurizado e sem ser tirada gordura) e não o recomende, pois podem sempre existir contaminações, podemos hoje em dia com muito mais segurança que nos tempos antigos utilizá-lo. A pasteurização surgiu por 1870, mas só apareceu comercialmente, primeiro na Alemanha, em 1882, e no resto do mundo no séculos XX.

A Ultra High Pasteurization (UHT) apareceu em 1958 e o leite sem lactose nos anos 2000. Com a pasteurização e o rigoroso controle de qualidade, o leite, que era um meio privilegiado para a transmissão de várias infeções como a tuberculose e a febre tifoide, tornou-se muito mais seguro. Um aspeto interessante é os dos três tipos gordura no leite: gordo, meio-gordo e magro (estes nomes são bastante enganadores e há várias propostas para os mudar). As designações correspondem a limites mínimos de gordura, respetivamente 3%, 1.5% e 1%. Ora no leite, as proteínas estão dentro das partículas de gordura e baixar a percentagem de gordura origina baixa das percentagens de proteína.         

Diz Nelson Correia Borges que a vila foi muito renovada na segunda metade do século XVIII, época da qual há ainda casas com fachadas bem ordenadas, sendo os Paços do Conselho feitos em estilo neo-manuelino com cantarias de João Machado. S. Rijo venera-se na capela de S. Mateus, sendo a paga dos favores feita com prendas insólitas e irreverentes: espigas de milho roubadas no caminho, pulgas aprisionadas num canudo, uma cambalhota no adro da capela e até, pasme-se, mostrar o traseiro ao santo! Já tenho o livro há algum tempo e sempre achei bastante piada a este trecho e vontade de ir à romaria, mas nunca se propiciou. Há com certeza alguma química na irreverência saudável!

Ainda segundo este autor, a atual igreja de Santiago foi mandada construir por D. Manuel I, ainda antes de ser rei. Estava fechada quando lá fui e não entrei. Mas notei a bonita fonte em frente, onde se podem ver os efeitos dos sais presentes na água e os grampos usados para segurar as pedras (olhando melhor para a fotografia, podem não ser bem vísiveis). 

Na rua que conduz aos Paços do Conselho há um elegante monumento aos mortos da Primeira Guerra Mundial. Esta guerra que originou cerca de oito milhões de vítimas, foi a primeira em que se usaram gases químicos modernos os quais logo em seguida foram banidos. Estima-se que que tenha causado cerca de 180 mil vítimas, mas ficou no imaginário das pessoas como uma coisa muito bárbara, como se matar com bombas, balas e baionetas e de fome e doença não o fosse também. 

O que quero dizer com isto, é que as guerras são sempre más começando com a ideia de que o inimigo é fácil de vencer e culpado de tudo e mais alguma coisa e vai evoluindo até se aceitarem as coisas mais inaceitáveis. No final, resta um monte de escombros, uma grande extensão de terras inabitáveis e uma quantidade impressionante de vítimas. Ainda há terras que não podem ser cultivadas em França onde ficavam a maior parte das trincheiras da Primeira Guerra Mundial e ainda há lugares com bombas enterradas não rebentadas, com ossos humanos de vítimas das guerras, assim como minas em muitos lugares. Que é que a Química tem a ver com isto? Quase nada, mas tendo contribuído para a tecnologia militar muitas parece ser a culpada em vez dos verdadeiros culpados que são os serem humanos que comandaram isto.   

A antiga Fábrica de Fiação de Tecidos do Paleão, que macerava, fiava e tecia linho, agora fechada, era possuidora de uma das mais antigas e imponentes máquinas a vapor portuguesas. Esta é agora propriedade da Fundação Belmiro de Azevedo e pode ser vista no Norte Shopping. No início do seu uso, cada fábrica tinha em geral só uma máquina que através de correias de transmissão servia toda a fábrica para as operações necessárias. As máquinas a vapor, como o próprio nome indica, funcionavam com a pressão originada pelo vapor, o qual era aquecido com um combustível que poderia ser carvão ou lenha. Estas máquinas eram muito pouco eficientes e poluentes, sendo que a sua maior eficiência era obtida conseguindo aquecer o vapor a temperaturas mais altas, o que se poderia obter com maiores pressões, o que por seu lado causava outros problemas. A máquina a vapor foi desenvolvida por James Watt que terá ficado chocado com a menor eficiência das máquinas anteriores. 

Houve alguns contributos portugueses para as melhorias destas máquinas, nomeadamente de Bento de Moura Portugal (1706-1760) que foi preso no Forte da Junqueira a mando do Marquês de Pombal onde viria a morrer passados seis anos. Não foi preso devido aos desenvolvimentos propostos, mas antes pelas suas ideias religiosas e políticas, mas por aqui se vê como se tinha apreço pela liberdade de pensamento. Muitos outros fizeram propostas (estou-me a lembrar do visconde de Vilarinho de S. Romão), mas as contribuições portuguesas são praticamente insignificantes, penso eu, também por essa "mania" nacional de perseguir quem faz coisas diferentes.   

Mas embora tenha sido um revés importante o fecho da fábrica anterior, na zona Industrial de Soure podemos encontrar várias empresas relevantes, inclusive ligadas à química. A multinacional Exlabesa, líder mundial no fabrico de componentes industriais de alumínio, a Omya o maior produtor mundial de minerais essenciais e um distribuidor internacional de produtos especializados, e ainda a Reciclocentro, empresa de reciclagem de vários materiais.

Indústrias relevantes do concelho de Soure são também a exploração de minas de gesso e as pedreiras, mais para o lado do Rabaçal. A análise dos calcários de Tapeus referida por Carlos Lobato indica em geral mais de 95% de carbonato de cálcio, tendo uma amostra 97% e outra 99%.  

Na escola as grelhas de saneamento parecem ter (não vi) a conhecida frase “o mar começa aqui”, mas devemos meditar nisto de várias maneiras. Primeiro, que num sistema de saneamento bem planeado a circulação das águas pluviais não se mistura com as águas dos esgotos domésticos que podem ser em muito menos quantidade e têm de ser tratados. Segundo, isso faz com que essas águas tenham acesso muito mais fácil aos rios e mar e portanto devem ser usados de forma conveniente.    

Há também na escola, uma estrutura em forma de cegonha onde se podem colocar plásticos para reciclar. Como já referi noutros passeios, os plásticos permitem em geral maior sustentabilidade e a expansão das possibilidades, mas têm de ser usados com parcimonia e sensatez. A redução dos usos desnecessários e a reciclagem são fundamentais. 

Estas são algumas notas que posso ir atualizando, mas, por agora, parecem-me estar completas.

Bibliografia

Nelson Correia Borges. Coimbra e Região. Editorial Presença, 1987

Jorge Custódio. A máquina a vapor de Soure. Fundação Belmiro de Azevedo, 1998.

Fernando Macedo, Miguel Helfrich. Vila de Soure : um passeio. Edição de Autor, 2009.

Carlos Pires Lobato. Calcários de Tapeus – Soure : elementos técnicos para diagnóstico da cozedura em fornos de cal. Separata do Boletim de minas, 18(2), 1981. 

Isabel Morgado. Soure : uma mui antiga terra da Estremadura. Câmara Municipal de Soure, 1996.

Vera Lúcia Rodrigues. Retratos de Soure. Edições Colibri, 2025.

Russell W. Currier, John A. Widness. A Brief History of Milk Hygiene and Its Impact on Infant Mortality from 1875 to 1925 and Implications for Today: A Review. Journal of Food Protection, 81(10), 2018, 1713–1722. doi:10.4315/0362-028X.JFP-18-186

Passeio Químico em Grenoble, Annecy e Lyon

[Desloquei-me a Grenoble, durante um fim de semana, e com base no que vi e li, assim como nas fotografias e reflexões que fiz, escrevo o seguinte passeio]

Grenoble é uma cidade pequena e bonita, na base dos Alpes, com cerca de 160 mil habitantes, sendo que tem 60 mil estudantes e só um terço dos habitantes são da cidade. Tinha alguma curiosidade sobre que traços teria deixado na cidade François-Marie Raoult (1830-1901), autor da famosa lei que relaciona a pressão do vapor das soluções com a composição e a pressão do vapor do solvente puro, e que foi professor nesta cidade, onde também morreu. Quase nenhuns no espaço público, segundo percebi, para além do nome de uma rua. Mas não é o único químico da cidade a dar o nome a ruas. 

Há três nomes de químicos que dão nome a ruas: além de Raoult, Louis-Joseph Vicat (1786-1861) e Albert Recoura (1862-1945), genro de Raoult, com quem fez alguns trabalhos. Embora a cidade seja relativamente pequena, não procurei as ruas. Obtive esta informação na página online do Museu Stendhal (Henri-Marie Beyle, conhecido como Stendhal (1783-1842), era natural de Grenoble). Curiosamente, este museu, que tem muitas atividades na cidade, quase não é visível fisicamente, estando num andar e tendo de se tocar à campainha para abrirem a porta. Mas faz sentido pois trata-se de um apartamento, conhecido com o do “Docteur Gagnon”, avô de Stendhal. Um vez lá dentro (foram muito simpáticos comigo, mas eu tive pouco tempo para visitar pois cheguei a dez minuto do seu fecho) podemos ver várias coisas interessantes, inclusive a reconstituição da sua sala de História Natural.

Em 1818, Vicat fez estudos detalhados sobre a queima de vários tipos de rochas calcárias e das temperaturas ótimas para obter cimento de “presa” rápida, mas não patenteou a invenção. Isso foi feito, usando uma boa parte dos resultados de Vicat, em 1824, por Joseph Aspdin, que usou rochas diferentes, ficando o seu material conhecido pelo “cimento de Portland”. Vicat, com a escassez de rochas nobres, inventou um cimento que permitia moldar e obter ornamentos de forma muito mais económica. No número 6 da rua Félix-Poulenc, que foi a sede de uma empresa de cimentos, podem encontrar-se exemplos da utilização desse material na moldagem de imagens de elefantes. O edifício tem agora gabinetes médicos, tendo ao lado cadeias de lojas internacionais bem conhecidas.           

Recoura, além dos desenvolvimentos da lei de Rauolt, trabalhando com o sogro, é um nome relevante da química dos complexos. Substituiu Solvey na Academia das Ciências (que tem um número fixo de 150 membros e como se diz, em tom de brincadeira, 149 membros e um “morto” rotativo). Curiosamente, foi criada uma exceção para Antoine Lavoisier, que entrou como membro adicional. Recoura, segundo li num obituário, foi um digno sucessor de Raoult, embora não tão famoso, dir-se-ia (mas quem conhece também Raoult?). Em qualquer dos casos, encontrei várias citações ao seus trabalhos realizados no início do século XX.   

Pode pensar-se que não tem nada a ver com Química, mas Xavier Jouvin (1801-1844), outro notável empreendedor da cidade. Luveiro e inventor da ideia de calibre (no caso das luvas, o seu tamanho estandardizado), foi médico de formação e, devemos notar que o tratamento do couros tem muita Química envolvida.

Há muita indústria nos arredores da cidade, assim como nos arredores de Lyon, de que falarei mais tarde, mas não tive tempo de explorar esse caminho.  “Uma cidade de engenheiros, dizem os admiradores de Grenoble, assim como os seus detratores”, dizia-se num livro que li. 

À chegada a Grenoble, foi impossível não reparar nas cúpulas e instalação circular, com cerca de novecentos de diâmetro, das instalações do sincrotrão europeu que envolve cerca de vinte países e cerca de nove mil investigadores. Também não tive tempo de explorar esse aspeto nem para andar no famoso teleférico que aparece em algumas das fotografias que partilhei neste texto.  

Sendo uma cidade estudantil, tem obviamente muito animação, em particular junto ao rio. Mas no dia seguinte está tudo limpo (algo que não se vê em Coimbra). Na margem direita (na imagem) podem encontra-se colunas com "casas de banho" para homens (não representadas), algo que já não via há muito tempo, mas que havia em Coimbra quando aqui cheguei.

Os jogos olímpicos de inverno foram realizados na cidade em 1968. Há um bairro designado a Ilha Verde, onde são bem visíveis três torres de apartamentos, construídos nos anos 1960 em boa parte para alojar os participantes, rodeadas de muito verde e que é muito interessante. Hoje já não se pratica este tipo de arquitetura nas cidades, inspirado nas ideias de Le Corbusier. Os prédios são muito altos (cerca de trinta andares) e elegantes. De longe parecem ter paredes de betão à vista, mas mais perto vemos que são cobertos de “pastilha” que é uma espécie de azulejo minúsculo. 

Na cidade reparei na existência de muitas árvores de Gingko biloba, em particular num pequeno parque. Trata-se de uma árvores dióica (ou seja com machos e fêmeas separados) e cujas fêmeas dão uma amêndoas que ao apodrecer tem cheiros bastante desagradáveis de vomitado e de ácido butanóico. Em Coimbra não há fêmeas (o único exemplar que existia era junto ao Teatro Gil Vicente). Em Grenoble havia muitas fêmeas e as amêndoas estavam a ficar maduras, mas ainda não se notava o cheiro. Disse-me um botânico que plantar só machos não é suficiente para resolver o “problema” pois estas árvores podem mudar de sexo!

Annecy é lindíssima, sendo conhecida como a “Veneza dos Alpes”. Acho que é muito mais do que isso pois tem a sua própria individualidade. Num jardim podemos encontrar em destaque a estátua do químico Claude Louis Berthollet (1748-1822) que nasceu aqui perto. Este fez importantes contribuições para a química, descobrindo as propriedades descolorantes do cloro e e inventado a "lixívia". Foi diretor dos Gobelins, uma importante fábrica de tapeçarias de Paris e envolveu-se com Proust (autor da lei das proporções definidas)  numa importante discussão para a Química. Numa altura em que os conceitos de misturas e moléculas eram por vezes ainda mal definidos, defendeu o contrário desta lei que se verificou ser verdadeira para moléculas.        

Embora já nos tivesse chamado a atenção em Grenoble, no rio Isère e na fonte dos Dauphins, foi aqui que a questão da cor das águas nos chamou mais a atenção: azuis claras e turvas (mas uma turbação bonita) de cor turquesa com tons de branco por vezes, verdes e transparentes, muitas vezes. Do que li, isso tem a ver com os sedimentos solúveis dos calcários da região e com a presença de microalgas.  

Ficámos instalados em Grenoble na Praça de Notre-Dame perto da igreja e da Fontaine des Trois Ordres. Essa fonte intrigou-me pois as figuras verdes, que supostamente seriam de bronze, pareciam pintadas. 

Inicialmente pensei serem de calcário pintado, mas ao entrar dentro da fonte - que estava seca-, verifiquei serem metálicas, mas confirmei também que eram pintadas. Eu estava certo na hipótese de que foram fundidas durante a Segunda Guerra Mundial (durante a guerra, milhares de estátuas em França foram fundidas). Mas, li depois que foram reinstaladas em 1957. A minha hipótese é que tenha sido usado ferro fundido pintado que é muito mais barato do que o bronze que como se sabe é feito de uma liga de cobre e estanho.

A elegante fonte dos Dauphins, na praça Grennete, é também interessante por evocar a memória do abastecimento de água a Grenoble, diz o guia. Neste, refere-se que, a partir de 1880, passaram a obter a água potável extraída a trinta metros do fundo do rio Drac e que esta água filtrada era tão boa que não precisava de tratamento o que é raríssimo em grandes aglomerados, não sendo necessária água engarrafada. Nesse aspeto, o abastecimento de água é muito parecido com o de Coimbra, mas sabemos que as águas canalizadas devem ser tratadas com uma pequena quantidade de cloro para que, ao longo da rede, esta não possam ficar contaminadas. Mas isso é muito bom pois assim garante-se a segurança, coisa que não se podia fazer no século XIX. No caso das águas engarrafadas, não pode haver qualquer tratamento, sendo esta água recolhida das nascentes e sendo verificada regularmente a sua pureza bacteriológica. 

Lyon é uma cidade muito maior do que Grenoble (é a terceira cidade de França em tamanho), mas passámos lá pouco tempo. Planeava comprar um livro da mesma coleção dos passeios geológicos, mas era domingo e não encontrei nenhuma grande livraria aberta (a única que encontrei era muito dedicada a aspetos ambientais). Encontrei, no entanto, sobre o assunto um passeio audio, um folheto e algumas páginas da Internet. 

Na velha Lyon, é imperdível a catedral de Saint-Jean, em frente da qual fica a mais antiga praça da cidade. Agora cheia de turistas e de vendedores de objetos de porcelana, continua a ser muito bonita. Intrigou-me as esculturas finas na entrada que eram de uma rocha dourada a qual parecia ser uma dolomia (com cálcio e magnésio), mas todos os guias referiam que a fachada da catedral era de calcário (só com cálcio). Ora a minha geologia é falível e estes guias estavam certos com certeza. 

Mas olhando com mais atenção as fotografias parece que vemos claramente haver duas cores.  A maioria da fachada é feita de calcário de Lucenay, mas os arcos esculpidos das portas que parecem mais amarelos e de cor dourada podendo bem ser feitos de calcário dourado de Couzon, o qual é desta cor devido aos óxidos de ferro que têm. Lendo com atenção o guia (que não tenho) poderei confirmar, mas pareceu-me uma hipótese razoável.  Nesta catedral pode também ver-se um calendário astronómico geral de grandes dimensões, assim como vitrais e outros aspetos lindíssimos. 

Subimos no funicular até à Basílica de Notre-Dame de Fourviére. Trata-se de uma igreja construída no século XIX, no local onde se ergueu outra mais antiga. Trata-se de um templo muito bonito onde foram usados os mais variados materiais e apresentado as mais ricas obras de arte. São especialmente interessantes o uso de folha de ouro e de rochas com diferentes cores. Também não tivemos tempo de ir ao seu museu de Belas Artes que é um dos mais interessantes do país e de passar nos mais emblemáticos traboules (passagens “secretas” entre edifícios). 

Fomos, no entanto, ao bairro de Croix-Rousse ver o interessante mural de grandes dimensões dos Canuts. No caminho, passámos num jardim que tinha o nome de Rachel Carson, o que achei bastante curioso. Numa reflexão rápida que fiz mas que ainda me acompanha, pensado nesse jardim e nos livros que vi e comprei na livraria que referi acima, cada vez vez mais parecemos ter uma atitude perante o mundo que não parece sustentável mas que refere a sustentabilidade de forma intransigente. A frugalidade, a recusa do desperdício, a eficiência energética e a diversidade democrática  (que dão título a pequenos livro que comprei) serão sempre boas, mas a recusa (que diria ser irracional) de muitas coisas acho que não.

Lyon e Grenoble merecem visitas mais demoradas. Fica para próxima.  

Referências 

M. Andrieux. Albert Recoura (1862-1945). Annales de l’Université de Grenoble 21,1945, 27-30

R. H. Bogue. Portland Cement and the “Plastic” Concrete. Journal of Chemical Education 19, 1942, 36-42.

Luc Bolevy. Promenades géologiques à Lyon. Acessível em : https://www.lyonhistorique.fr/promenades-geologiques-lyon/ (acedido 20 de setembro de 2025)

Jacques Bouffette, Jérôme Nomade, Emmanuel Robert. Promenade géologique à Grenoble. Biotope Éditions, 2015.

Audrey Colonel. De l’inventeur héroïque aux innovations collectives : la ganterie grenobloise en quête perpétuelle du progrès (1830-1930). Technologie et innovation 7, 2022, 17p.  DOI : 10.21494/ISTE.OP.2021.0766

Philippe Gonnet. Grenoble – Déplacer les montagnes. Nevicata, 2019.

izi.Travel. Promenade géologique dans les rues du Vieux Lyon. Disponível em: https://izi.travel/fr/4868-promenade-geologique-dans-les-rues-du-vieux-lyon/fr (acedido 20 de setembro de 2025)

Yves-François Le Lay. Lyon, cité d’or? 2014. Acessível aqui: https://perso.ens-lyon.fr/yves-francois.le-lay/?p=612 (acedido 20 de setembro de 2025)

P.-E.B. Pourquoi l’eau du lac du Bourget est de nouveau turquoise, 2021. Acessível aqui: https://www.ledauphine.com/environnement/2021/06/18/pourquoi-l-eau-du-lac-du-bourget-est-de-nouveau-turquoise  (acedido 20 de setembro de 2025)