Passeio Químico em Vouzela

[Tinha estado em Vouzela em 2020, altura em que pensei neste projeto e fiz algumas fotografias. Calhou ter estado há pouco na Vila e nas horas vagas completei-o]

Vouzela e a envolvência transmitem beleza e calma. O centro da vila é muito elegante com as suas ruas com piso de pedra e as casas bem cuidadas, muitas delas antigas e brasonadas. As paisagens são muito bonitas e há locais arqueológicos de vários tempos e de todos os tipos. No início de 2024, estava quase concluído o Centro de Ciência Viva, com entrada pela rua por detrás do antigo Mercado Municipal que foi desenhado por Raul Lino e que também estava em obras quando lá fui. O Centro de Ciência Viva vai incluir um borboletário e terá como temas principais a ecologia e a alimentação, se não me engano.  

O loendro, como é referido no guia, é um arbusto muito comum aqui. Trata-se de um rododendro (Rododendron ponticum), não da planta venenosa que é comum em todo o país e que é por vezes confundida com esta, tendo em alguns locais o mesmo nome: o oleandro (Nerium oleander). São bastante diferentes e só alguma falta de atenção aos pormenores os pode confundir na minha opinião. As moléculas emblemáticas das duas espécies são também muito diferentes, mas não vou falar mais deles pois não fui aos jardins de loendros que o meu guia indicava serem imperdíveis. 

Fui, no entanto, ao Museu Municipal. Este tem uma interessante exposição permanente sobre o ciclo do linho. Trata-se de uma fibra vegetal, usada desde tempos imemoriais, que se transforma no tecido por um conjunto de processos complexos e demorados, muitas vezes conhecidos como “tormentos do linho.” A fibra é essencialmente celulose (um arranjo insolúvel de moléculas de glicose ligadas umas às outras em fila), sendo esta retirada e separado das palhas dos caules das plantas secas, que são colhidas inteiras, por processos basicamente semelhantes em todo o mundo e bastante duros. As fibras são depois fiadas, lavadas repetidamente, sendo as meadas “coradas”. Esta última operação é usada para clarear os fios através da oxidação da matéria orgânica que lhe dá as cores mais escuras.
Para o efeito, era preparada uma solução com a cinza branca de madeira queimada (em geral de oliveira) e água, que dada a composição da cinza, é em termos químicos alcalina, tendo muitos sais de que se destaca o carbonato de potássio. As meadas eram cozidas no forno em panelas de ferro com cinza e sabão. O fio era seco, dobado, urdido e tecido. E, finalmente, a teia obtida era clareada com processos semelhantes aos anteriores com lavagens e solução de cinza. Todo o processo é demorado, envolve muitas pessoas, é muito duro e usa muita água e recursos. Nos anos 60-70 do século XX foi praticamente abandonado, mas volta agora como memória e atividade artesanal que é de novo valorizada.

Os pastéis de Vouzela são muito apreciados. Em termos de materiais são semelhantes aos de Tentúgal, mas não vou aqui tecer qualquer comentário sobre quais são melhores. Os de Vouzela são excelentes, basta dizer isso. Já escrevi longamente sobre a obtenção de massa finíssima de trigo antes e sobre o recheio de ovos moles. Quero apenas chamar a atenção para o facto de na farinha de trigo ser o glúten que permite a elasticidade da massa quando crua e as espessuras muito pequenas na massa pronta. Os pastéis de Vouzela são por fora de massa extremamente fina de trigo. O recheio dos pastéis é feito de ovos moles. Existem várias receitas, e, em particular, os pastéis de Vouzela estão envoltos em vários segredos, mas este é basicamente uma solução de gemas de ovo com uma calda de açúcar. A mistura das gemas com agitação, a temperatura a que esta está, a granularidade e quantidade do açúcar, assim como a concentração da calda, fazem com que os ovos moles fiquem com mais ou menor textura e fluidez. Podem também ser adicionadas algumas farinhas, nomeadamente de arroz, mas penso que na dos pastéis de Vouzela não. O recheio dos pastéis de Vouzela pareceu-me não ter nada mais do que ovos, açúcar e água. É bastante fluido e fino, mesmo depois de algum tempo sobre o fabrico, em todas as versões que provei, sendo nisto, em geral, diferente dos pastéis de Tentúgal e dos ovos moles de Aveiro que tradicionalmente são feitos com os mesmos materiais.   

As ruínas do couto mineiro da Bejanca estão em terrenos privados e não estão adaptadas para as visitas. Extraía-se volfrâmio (também conhecido por tungsténio, símbolo químico, W) e estanho (símbolo químico, Sn). O estanho já se extraía desde o tempo dos romanos. O volfrâmio só se tornou importante com a segunda guerra mundial para ser utilizado em ligas metálicas resistentes ao impacto. De 1939 a 1943, estas minas empregaram mais de 3000 pessoas de forma direta. Pode imaginar-se toda a economia que envolvia, assim como os tráficos paralelos, etc. Há várias terras com nomes que parecem alusivos às minas e aos minerais como "Carregal do Estanho" e "Caparrosa" (nome antigo de alguns sulfatos metálicos)   

Eu visitei o que penso serem as ruínas da mina de gestão alemã que antes do final da guerra fechou (aliás em Portugal todas estas foram fechadas nessa altura). Havia uma chaminé com a inscrição "Alexandre Bourdain, 1943" que não consegui ver que foi. Nos momentos mais altos de produção, Portugal produzia cerca de 60% de todo o volume de volfrâmio obtido na Europa. O nosso país está cheio de ruínas, histórias e museus alusivos a essa extração. Vale a pena lembrar o livro de Aquilino Ribeiro de 1943, chamado precisamente “Volfrâmio”, que relata algumas dessas histórias. 

Deve notar-se que o volfrâmio é um metal não radioativo que não tem nada que ver com o metal radioativo urânio (simbolo químico, U) que foi extraído nas minas da Urgeiriça, já aqui referidas. Chamo a atenção para isto, que me parecia muito simples, pois falei com uma pessoa que parecia confundir. 

Quando procurava as ruínas das antigas instalações mineiras, passei por um carro de recolha de lixo e locais de recolha seletiva. Não pude deixar de reparar no nome que estava no carro e nas roupas dos trabalhadores: PreZero. Trata-se de uma empresa do Grupo Schwarz do qual também fazem parte os supermercados Lidl. Curiosamente, a PreZeo faz também a recolha do lixo da cidade de Amesterdão, nos Países Baixos (sei isso porque estive lá há pouco tempo). Soube depois que a recolha do lixo é da responsabilidade da Associação de Municípios do Planalto Beirão da qual Vouzela faz parte. Penso que com esta empresa procuram tratar de forma mais sustentável e eficaz os seus resíduos, mas não tive tempo para investigar mais. Nós não prestamos muita atenção as serviços de recolha de resíduos, à água nas torneiras, aos esgotos, etc. mas, no caso dos resíduos, se falha a sua recolha damos rapidamente conta da sua acumulação. Vemos isso nos países em que essa recolha é deficiente. Podemos diminuir a nossa produção de resíduos, mas a recolha, separação e tratamento são sempre fundamentais.     

São Francisco Gil de Santarém (1185-1265) nasceu em Vouzela e morreu em Santarém.  Estudou medicina em Paris, onde se tornou dominicano. A sua vida e obras estão envolvidos em muitas lendas, em particular é associado a um pacto com o diabo em Toledo, sendo por isso considerado o “Fausto Português”. Curiosamente, escrevi já aqui sobre Toledo e Santarém, mas não fiz qualquer menção a Frei Gil por não ter dado importância à história para um passeio químico. Mas em Vouzela, dei, no entanto, conta da sua relevância. De facto, não tinha notado como a sua associação à medicina e procura de sabedoria o vai levar à alquimia, precursora da Química tal como a medicina antiga e a metalurgia. Não vi nenhum escrito de Frei Gil sobre a alquimia, mas acho que pode presumir-se que a estudou.     

Eça de Queirós começou a escrever um livro sobre a vida de São Frei Gil, mas não o terminou. O manuscrito termina quando Frei Gil se dirige para Toledo, aliciado por um cavaleiro desconhecido. Segundo o plano de Eça, Gil assinaria o pacto com o Demónio para assistir às aulas da Universidade das Artes Negras. Passaria a ter todos os gozos, mas depressa se cansaria. Teria aventuras, mas depressa se fartaria. Queria saber mistérios, mas o Diabo não lhos podia mostrar. Apaixonar-se-ia, mas afinal a mulher era a Morte. A seguir renegava a sua vida anterior, penitenciava-se, metia-se num convento e passaria a ajudar novos e velhos. Seria tão bom e paciente que o seu pacto seria revogado com interseção da Virgem Maria. Eça provavelmente quereria retratar um “Fausto Português”, um pouco ingenuo, bastante volúvel, contente consigo próprio e com uma segunda oportunidade bem sucedida, mediada pela Virgem Maria. Quase nada do que é o Fausto original e do que se passa na história de Goethe. Nesta, quando Fausto fica contente com as suas obras, o Diabo executa o contrato e leva a sua alma.

A capela de São Frei Gil é uma das últimas obras rococó em Portugal tendo no local, como relíquia, a queixada inferior do santo, diz o guia. Chamou-me a atenção a talha dourada, que, como já referi noutros passeios, consiste em folhas de ouro finíssimas (cerca de 0,0001 centímetros) que cobrem madeira. Sabendo que a densidade do ouro é de 19,4 gramas por mililitro, temos cerca menos de 20 gramas de ouro por metro quadrado (é fácil fazer a conta: 0,0001x100x100x19,4 gramas é o valor aproximado da massa num metro quadrado). 


Uma nota sobre a antiga escola Conde de Ferreira. Esta é uma das 120 que foram construídas em todo o país, patrocinadas pela sua ação benemérita. No entanto, há um lado negro nisto: foi o comércio de escravos que lhe trouxe riqueza. Estima-se a que o Conde de Ferreira esteve envolvido no comércio de cerca de 10 mil seres humanos. Não devemos esquecer isto, pois embora os factos tenham ocorridos há cerca de 200 anos, era uma atividade que parecia normal na altura e que ainda hoje tem reflexos. O Conde de Ferreira patrocinou também a construção do conhecido hospital psiquiátrico, que tem o seu nome, no Porto. De alguma forma, este acabou por ganhar a “aposta dos ricos” que é serem lembrados pela sua generosidade e não pelos seus atos menos dignos. Nada disto tem a ver com Vouzela, claro, mas foi aqui que me lembrei.

A antiga ponte ferroviária faz agora parte de um percurso pedonal, sendo a vista excelente. No seu final está uma antiga locomotiva a vapor. Sendo de ferro, precisa de manutenção frequente pois senão manifesta-se a oxidação do ferro. As máquinas a vapor eram muito pouco eficientes. Estima-se em 1%, atingindo agora as melhores turbinas de gás natural em ciclo combinado mais 60%, mas mesmo assim podemos fazer melhor em termos de eficiência energética. Podemos, por exemplo, aproveitar melhor e energia do sol. De facto, a energia que usamos num ano é cerca 5% da energia solar que incide sobre a terra num dia, ou seja em cada dia a energia que usamos é 0,014% da energia solar que incide sobre a terra.

Referências consultadas

Armando Carvalho (Coord.) Vouzela : Parque Natural Local Vouga-Caramulo. Foge Comigo, 2017.

Associação dos Arqueólogos Portugueses. Colóquio comemorativo de S. Francisco Gil de Santarém. Lisboa, 1991.

Eça de Queirós. S. Frei Gil. Colares Editora, 2002.

Manuela Barile (Coord.) Linho: Histórias ao Longo de um Fio. Edições Nodar, 2019.

Passeio Químico em Salamanca

Salamanca é uma cidade relativamente perto da fronteira com Portugal e já lá estive várias vezes, mas desta vez pensei mais nos aspetos químicos. Os monumentos e palácios da zona histórica, assim como as esculturas e relevos nas suas fachadas, são maravilhosos em si, mas começo por referir as pedras de que são feitos. Vários artigos que li referem arenitos dourados de Villamayor, localizada a cerca de seis quilómetros do centro da cidade. Estes arenitos têm composição variável mas nos artigos referiam cerca de 60 a 80% de quartzo, essencialmente SiO2, feldspato e uma quantidade variável de óxido de ferro III, Fe2O3, entre 0,7% e 2,3%. Como as esculturas são tão finas e detalhadas, o grão tem também de ser muito fino. E para o aspeto dourado é importante a presença do ferro que dá essa cor. Por outro lado, os arenitos são muito porosos e isso origina vários problemas de conservação como vários dos trabalhos de investigação que li indicavam. Muitos deles referiam estudos de consolidação com polímeros. Muitas vezes, o que parece que não se degrada envolve muito trabalho. 

Para que uma cidade antiga fosse viável, era necessário, além de água suficiente (neste caso providenciada pelo Rio Tormes), que estivessem disponíveis materiais de construção fáceis de usar relativamente perto. Nesse aspeto Salamanca é um lugar afortunado, pois as rochas permitiam todo o detalhe que se se observa. Nunca tinha pensado nisto desta forma, mas parece-me que faz sentido. A região de Segóvia e Ávila tem outros tipos de rochas dominantes nos edifícios: calcárias e dolomíticas. Podem parecer semelhantes, mas não são de todo. Obviamente um geólogo diria muito mais coisas, mas para um químico pode bastar saber que os arenitos envolvem essencialmente sílica enquanto que as rochas calcárias e dolomíticas, envolvem carbonatos, cálcio e magnésio.    

Os turistas concentram-se em procurar a imagem da “rã” na fachada da catedral e o “astronauta,” acrescentado num restauro, realizado já nas últimas décadas do século XX, na fachada da universidade. Nós não os procurámos, mas fizemos algumas visitas mais turísticas e subimos às torres das duas catedrais. Em Salamanca, a catedral velha e a catedral nova (que demorou vários séculos a ser construída) estão encaixadas e nessa visita pode observar-se como de facto estão unidas. Também nessa visita, pudemos ver as traves de madeira que foram colocadas após o terramoto de 1755, o qual causou vários problemas estruturais. 

Incidentalmente, reparámos que uma torre da universidade parecia inclinada e, talvez estivesse mesmo devido ao terramoto. Muito interessante eram as funções do sineiro das catedrais. Tinha materiais para fazer pequenas reparações, nomeadamente de pintura, reboco e limpeza. Numa vitrina podemos ver uma simulação dos pigmentos que usava e alguns das coisas que retirava. Na vitrina está arames, areia, anil (neste contexto deve ser azul ultramarino, um sulfossilicato de sódio e alumínio) e cal (imagino que seja cal apagada, Ca(OH)2). Noutra vitrina, havia uma exposição sobre o arquivo da catedral e como eram guardados os documentos. Estavam lá uma caixa de chumbo e o selo dos documento guardados. Notava-se algum esbranquiçado, nomeadamente no selo, provavelmente de óxidos deste metal.

De cima, pudemos ver com outros olhos os vitrais das catedrais, as pinturas e a cobertura com folha de ouro. Os vitrais eram obtidos com vidro colorido que era soprado (e por isso tem irregularidades) e era colocado em molduras de chumbo, metal que tinha a vantagem de ser relativamente mole. A cor tem origem em variados fenómenos óticos, tanto de através de pigmentos (caso do ferro II que dá uma cor verde, o ião cobre que dá uma cor azul clara, o ião cobalto que dá um cor azul escura, entre outros) ou, por exemplo, através de efeitos de difusão da luz devido ao tamanho das partículas (por exemplo, um vermelho intenso é devido a nanopartículas de ouro). Sobre a pinturas poderíamos alongar-nos muito, mas eu quero falar da folha de ouro. Esta pode ser obtida com espessuras de cerca de 0,0001 centímetros e adere fortemente às superfícies onde é aplicada devido às ligações intermoleculares. Sendo a densidade do ouro cerca de 19,4 gramas por centímetro cúbico, cada metro quadrado coberto tem cerca de 19 gramas de ouro.   

Uma coisa que me chamou sempre a atenção em Salamanca foram os escritos a vermelho escuro nas paredes. Em vários sítios referiam o sangue de boi das touradas usado em escritos antigos (no guia que tinha, o qual já tem mais de vinte anos, referiam também [1]). Isso sempre me pareceu problemático, mas achei que era aceitável se envolvesse o almagre, um óxido de ferro que é vermelho. Uma pesquisa mais profunda para este passeio, conduziu-me a outros estudos que afirmavam que nunca foi usado sangue de boi [2]. Que tal ideia remonta às comemorações dos setecentos anos da universidade entre 1953 e 1954. Servia, segundo o artigo, os interesses dos nacionalistas a ideia de virilidade que transmitia. Pela mesma razão, começou a ser a associado o “Victor,” um símbolo que contêm as letras deste nome, ao doutoramento (esse símbolo encontra-se amiúde associado aos doutoramentos Honoris Causa que são referidos nas paredes da universidade antiga). No entanto, os investigadores Ángel Weruaga Prieto e Rodríguez-San Pedro, referem que esse símbolo era usado para a hierarquia da universidade e não especificamente para o doutoramento [2]. É assim que agora se conta, mas é relevante saber que nem sempre foi assim.

Na visita que fizemos à universidade velha, pudemos ver algumas das suas salas, a capela e a biblioteca antiga (no caso da biblioteca, foi a primeira vez que a vi – no meu guia de 2000 [1] só havia uma imagem muito antiga, não estando provavelmente disponível o acesso a esta na altura em que foi escrito). Havia alguns objetos em exposição, nomeadamente um modelo anatómico muito interessante e um antigo laser de árgon, mas o enquadramento era confuso. Algumas das salas não tinham grande interesse e só se podia ver a biblioteca, que estava bastante escura, por uma espécie de aquário ao contrário. Na ocasião consegui tirar algumas fotografias dos letreiros das estantes. Foi particularmente interessante ver um letreiro com “Filosofia e História Natural” e outro com “Química Medicinal” (neste caso a fotografia ficou desfocada). A zona da Universidade nova não se visita em geral, mas os edifícios são também muito interessantes.  

Um dos escritores mais conhecidos associado a Salamanca é Miguel de Unamuno que foi reitor da sua universidade. Por acaso li recentemente um livro dele menos conhecido que podemos considerar de tese: “Amor e Pedagogia.”A casa-museu com o seu nome estava fechada e por isso não a pudemos visitar. Associa-se também a Salamanca a obra clássica da escrita Picaresca, o anónimo “Lazarilho de Tormes.”  Há  também uma simulação de loja massónica com os objetos que o governo franquista, inimigo desta organização, foi apreendendo. Mas não tivemos tempo de vistar desta vez. 

Referências

[1] Ricardo Garcia Herrero, Susana González. Salamanca : Vive y Descubre. Everest, 2000.  

[2] Francisco Gomes. Tampoco se hicieron con sangre de toro. El Norte de Castilla. 7 de agosto de 2016. https://www.elnortedecastilla.es/salamanca/201608/07/tampoco-hicieron-sangre-toro-20160807122453.html  (acedido 2 de janeiro de 2024). 

Passeios Químicos em Segóvia

Um dos guias que li frisava que Segóvia era a cidade com a localização mais espetacular de Espanha [1] (consultei também alguns dos guias editados pelo Município de Segóvia [2-6]). Rodeada pelos rios Eresma e Clemores era, segundo o guia, comparável a um navio com o Alcazár a servir de proa. Mas, Maria Zambrano (1904-1991), que viveu enquanto criança e jovem nesta cidade e dá nome ao campus universitário, polo da Universidade de Valadolid, refere que é a catedral que é o centro para onde tudo converge. Maria Zambrano, filósofa, discípula de Ortega y Gasset, exilou-se em 1939, na sequência de Guerra Civil de Espanha, e só voltou 45 anos depois.
Curiosamente, tinha lido recentemente a autobiografia [7] de uma outra exilada espanhola, Maria Casarès (1922-1985), que embora tenha voltado a Espanha, naturalizou-se francesa. A memória da Guerra Civil de Espanha é importante para o entendimento do passado e projeção do futuro. Muita literatura com base nesta é imortal: Por exemplo, “Por quem os sinos dobram”, de Hemingway, retrata o ataque falhado republicano a Segóvia em 1937, mas neste texto quero falar essencialmente de Química. E descobri muito mais desta Ciência do que esperava em Segóvia. 

O aqueduto de Segóvia foi construído pelos romanos no século I d.C. (obviamente pelo suor de muitas pessoas, em particular de escravos, não por um “diabinho,” nem pelos “romanos”) e foi usado para trazer água para a cidade até 1934 [8], mas isso tem que ser melhor explicado. Algumas fontes, nomeadamente a Wikipedia, indicavam o ano de 1973, o que me parecia muito recente, e o guia indicava ter sido usado até ao final do século XIX. No Centro Interpretativo do Aqueduto (na Casa da Moeda de que já falarei) fiz a pergunta diretamente e a resposta não é óbvia. O abastecimento de água à cidade foi regulado no século XIX, altura em que o aqueduto já perdia muita água (cerca de dois terços), mas continuou a ser usado, nomeadamente como “cano livre” para abastecer fontes e, de forma intermitente, foi usado até 1934, altura que em que foi definitivamente desativado para essa função. 
Há várias coisas que acabam por envolver Química no aqueduto. Uma delas são os filtros de areia que já eram usados no tempo dos romanos os quais eram uma das únicas formas de purificar a água antes de se generalizar o uso do cloro no século XIX. Depois o atrito, devido às energias intermoleculares de atração entre as  moléculas das pedras em contacto. Deve notar-se que não há qualquer argamassa entre as pedras (mas note-se que também a argamassa funciona devido a essa atração intermolecular), sendo a suas estabilização vertical devido a princípios físicos bem conhecidos, embora espetaculares, mas de facto, há também uma estabilização horizontal devido ao atrito. Finalmente, os materiais de que as pedras são feitas (o granito) veio da Serra de onde vem também a água. Esta teria de vir de um sítio mais elevado, claro.  

A catedral de Segóvia, datada de 1525 (mas demorou muito mais tempo a construir : o claustro gótico é de 1472), é a última catedral gótica de Espanha e foi construída para substituir a catedral antiga, parcialmente destruída em 1520, durante as revoltas que ocorreram por essa altura. Uma figura proeminente das revoltas nesta cidade foi Juan Bravo (a sua estátua está na Praça de San Martin) que foi decapitado junto com cerca de setenta revoltosos e ficou com o seu nome associado também a uma rua ali perto. Segundo Cees Nooteboom, no “Desvio a Santiago” [9], o catolicismo que esta catedral evoca já não é do Românico, nem em boa parte o do Gótico, mas uma religião castigadora e opressiva. (Este autor refere que a cidade tem a configuração de um punho e não de um barco, mas não vou discutir essa questão). 

Em Segóvia podemos encontra cerca de duas dezenas de igrejas românicas muito bonitas, mas vou continuar a referir a catedral, onde podemos visitar um conjunto de quadros notáveis e bem iluminados. Ficámos fascinados especialmente com uma virgem e menino muito brancos, quase a brilhar, atribuídos a Luis de Morales (c. 1510, c. 1586), conhecido como “El divino” [10]. A técnica deste pintor envolvia várias camadas que dão o aspeto diáfano caraterístico das suas pinturas, mas o que me fascinou foi o branco. No seu tempo, este era de carbonato de chumbo, o qual vai amarelecendo com o tempo. Parece óbvio que a pintura foi limpa e restaurada, mas o branco era muito intenso. Fiquei a meditar nisso e depois de algumas pesquisas fiquei a pensar que teria origem na base de madeira que era preparada com uma cobertura com carbonato, provavelmente de cálcio. 

Na elegante Praça de San Martin há vários edifícios interessantes. Uma igreja românica lindíssima por fora (Igreja de San Martin que não pudemos visitar por dentro por estar fechada), uma torre (Torreón de Lozola) e várias casas brasonadas. É aqui perto a antiga prisão real, agora transformada em biblioteca pública (que melhor uso haveria para este edifício?), tendo cá fora uma placa em ferro forjado a homenagear os  Segovianos que morreram a defender a liberdade. 

Mas o que me chamou mais à atenção foi uma fonte (que não deitava água, aliás não vimos nenhuma que deitasse, e julgo ter descoberto a razão): cujas figuras pareciam ser de chumbo e tenho quase a certeza de serem (será essa a razão para não deitarem água). Pode ver-se também nesta fonte um grampo metálico “chumbado”. Um pouco mais à frente (na direção do Alcazár), fica a casa do médico e Humanista Andrés Laguna (1499-1559) onde está instalado o Centro de Interpretação da Judiaria (fechado quando lá fomos – fechou às 14 horas!).   

Segóvia teve uma indústria têxtil pujante de que é ainda testemunha a Real Casa del Sello de Panos, atual sede de um organismo do governo de Segóvia, onde eram certificados os panos que eram fabricados nesta cidade. Em Portugal, os panos de Segóvia eram considerados de fraca qualidade e conhecidos pelo nome de Segóvia. Eram essencialmente de lã, segundo consegui perceber. 

Na Via de Roma, que vai dar ao aqueduto, entrada natural para quem vem de Valladolid, antiga estrada de Boceguillas, agora uma zona habitacional, havia um conjunto de fábricas: de loiça, farinhas e outras de que ainda restam algumas chaminés [11]. Estas fábricas, nomeadamente os moinhos de farinha, usavam a proximidade da água do Rio Eresma. Aqui perto há também a antiga chaminé da fábrica que era conhecido por Real Fábrica da Borra [12], a qual fabricava papel a partir de trapos.

Mais à frente fica a Real Casa da Moeda que também usava a força das águas para as suas prensas. Com o fim da sua atividade, este edifício foi adaptado para uma fábrica de farinha. Mais tarde foi recuperada pelo município e tem lá um museu e o centro de interpretação do aqueduto. Pode também visitar-se o seu jardim, mas não tivemos tempo para ir lá. Todas estas atividades envolvem de alguma forma a Química, mas não vou entrar em muitos detalhes. Não posso no entanto deixar de referir que o papel feito de trapos tem também celulose mas é mais resistente e ideal para fazer notas. Por outro lado a loiça, envolve o aquecimento a alta temperatura do barro que perde água e forma ligações irreversíveis, ficando rígido.   

Noutra entrada da cidade, vindo da autoestrada de Salamanca, ergue-se um edifício vermelho, enorme e com ar abandonado (não fiz fotografias). Depois de alguma pesquisa, encontrei que era a antiga fábrica de enchidos “El Acueducto” desativada em 2009 e desenhada pelo arquiteto de Navarra Curro Inza. O vermelho penso que pode ser de tijolos de barro.

Mas o melhor e o pior acabou por ficar quase para o fim: a Casa da Química (era assim que era indicada no mapa). Esta foi dirigida durante vários anos por Joseph Proust (1754-1826), químico francês que fugiu da Revolução Francesa e foi introdutor da Lei das Proporções Definidas, pelas datas enquanto estava aqui. Grande Surpresa! Os trabalhos de química estavam associados à Academia de Artilharia de Segóvia, que é a mais antiga em funcionamento em Espanha. A Casa da Química é ao lado do conhecido Alcazár que inspirou filmes da Disney e agora serve apenas de sua bilheteira, tendo apenas os seguintes dizeres do lado de fora “Real Laboratorio de Chimia.” 

Na cafetaria, ao lado, há quadros com gravuras de químicos e outros cientistas, mas pareceram-me numa visão rápida aleatórios e não vislumbrei a de Proust (estavam nas paredes ao lado das mesas onde havia clientes que não quis incomodar). Lembro-me de ter visto a gravura de Benjamin Franklin, que não era assim tão óbvia. Parece-me que poderia ter mais alguma informação e até algum material, mas as coisas turísticas são muitas vezes assim: inventa-se por vezes o que não é e esquece-se muitas vezes o que foi.   

Perto, na Granja de San Ildefonso, pode visitar-se a “Real Fabrica de Cristales” onde há uma fábrica e um museu do vidro. Neste último podem ver-se como eram obtidos os vidros. É especialmente interessante e pedagógico a explicação da forma como se fazia o vidro plano com vidro soprado. 

Nas oficinas podemos ver fazerem objetos de vidro soprado, nomeadamente jarras. Há também vários modelos de outra forma de produzir vidro plano envolvendo um cilindro metálico, mas não fiquei convencido pois a base é de madeira. É muito interessante as maquinarias que eram usadas para produzir tijolos, isoladores e copos de vidro. Nas oficinas vimos também um funcionário a fazer desenhos usando o esmeril (material muito duro, penso que de de óxido de alumínio). O vidro é muito resistente, mas pode ser atacado por ácido fluorídrico. É também muito perigoso para os seres vivos, não por ser muito forte, mas por corroer debaixo da pele de uma forma quase invisível e irreversível. Na exposição está uma máquina antiga para fazer desenhos industriais usando este ácido.  

Segóvia teve ainda outras indústrias ligadas à Química de que se destacam a do pez e das cordas. Da primeira ainda há alguns vestígios nos arredores da cidade de fornos onde era destilada a resina e obtido o pez. Nesta zona havia (e ainda há, parece-me) bastantes pinheiros.

Quando voltámos ao carro reparámos no telhado do parque de estacionamento feito com painéis solares para alimentar os carregadores dos carros elétricos. Estamos a acompanhar um desenvolvimento exponencial de tecnologias cada vez mais sustentáveis. Temos ainda de desenvolver, no entanto, materiais que sejam ainda mais sustentáveis e que não alimentem conflitos. E devemos estar cada vez mais atentos aos custos escondidos e futuros.

Referências

[1] Nick Inman (Ed.) Guia de Viagem: Espanha. Dorling Kindesley, 2015.

[2] Turismo de Segovia. Segovia : Patrimonio de la Humanidade, 2020.   

[3] Turismo de Segovia. El Bairro Judio de Segovia, s.d.   

[4] Turismo de Segovia. Real Casa da Moeda de Segovia, 2017.  

[5] Turismo de Segovia. Palavras y Libros : Segovia Literaria, 2007.  

[6] Turismo de Segovia. Casa-Museo de Antonio Machado en Segovia, 2016.  

[7] Maria Casaes. Résident privilégiée. Fayard, 1980. 

[8] Santiago Martinez Caballero. El Acueducto de Segovia : de Trajano al Siglo XXI. Ayntuamento       de Segovia, 2016. 

[9] Cees Nooteboom. El desvío a Santiago. Ediciones Siruela, 2010.   

[10] Há muitas páginas sobre este autor, assim como trabalhos escritos. Chamou-me a atenção esta ligação a Portugal: Manuela Goucha Soares. O que há de comum entre Isabel de Portugal e a Virgem Cigana? Expresso, 26 de setembro de 2016. https://expresso.pt/cultura/2016-12-26-O-que-ha-de-comum-entre-Isabel-de-Portugal-e-a-Virgem-Cigana- (acedido 1 de janeiro de 2024)

[11] Carlos Álvaro. Historia de una avenida. El Norte de Castilla, 1 de abril de 2013. https://www.elnortedecastilla.es/20130401/local/segovia/historia-avenida-201304011113.html (acedido 1 de Janeiro de 2024)

[12] La Fabrica da Borra. https://segoguiados.eu/la-fabrica-de-borra/ (acedido 1 de Janeiro de 2024)


Passeio Químico pela Casa de Egas Moniz e suas imediações

[Estive numas provas de doutoramento onde me chamaram a atenção para que em 2024 faz 150 anos de que António Egas Moniz (1874-1955) nasceu e 75 anos de que recebeu o Prémio Nobel da Fisiologia ou Medicina. Visitei, em Avanca, Estarreja, a Casa-Museu com o seu nome, nos fins da pandemia de Covid-19 e tirei várias fotografias. Como se pode ver ainda se usava máscara nos espaços públicos.]

Trata-se de uma casa bonita e muito elegante, com um grande jardim, dois andares e torreões. A "Casa do "Marinheiro", como foi chamada, era inicialmente relativamente modesta, mas adquiriu aquele aspecto imponente com o desenho do arquiteto Ernest Korrodi,  refere João Lobo Antunes, na biografia de Egas Moniz. A quinta é muito grande, e, citando de novo João Lobo Antunes, Moniz, com três sócios, criou nesta uma vacaria modelo. Na cozinha, por onde entramos, encontramos uma interessante imagem do que era uma casa burguesa rica tradicional. Estas não poderiam funcionar bem na ausência de vários empregados que faziam várias atividades: ir às compras, cozinhar, limpar e organizavam as coisas, em geral antecipando-se aos patrões que apenas davam ordens muito gerais. Na biografia de João Lobo Antunes, são referidos um feitor, três criados, uma cozinheira e um criado de mesa. Era um tempo em que todos os alimentos eram confecionados em casa, as conservas eram feitas em casa e os compostos conservantes eram comprados nas farmácias ou nas drogarias. 

O frigorífico, o microondas, ou a “Bimby” não existiam. O aço inoxidável não era usado, por ser muito caro o seu fabrico, sendo os talheres e as panelas de outros materiais. O lume era feito a lenha. O gás só se generalizou no século XX. Também eram raros - apareceram no século XX, mas só se generalizaram nos anos 1960 - os utensílios de plástico, e, só nas ultimas décadas se tornou comum o uso de utensílios de silicone. Muito se poderia falar das evoluções químicas relacionadas com a cozinha que podemos notar “brilharem pela ausência” numa cozinha tradicional, mas eu não entrei na Casa-Museu de Egas Moniz para falar muito disso.

Ainda no rés-do-chão, observamos vários dos documentos e condecorações relativos à vida de Egas Moniz. Depois subindo um andar, encontramos muitas das obras de arte que possuía. As pessoas têm em geral gostos bastante diferentes, e uma Casa-Museu acaba por satisfazer vários desses gostos. A mim as obras de arte interessam-me bastante e as mobílias e as loiças muito menos. Mas aqui o que queria mesmo ver estava relacionado com a psicocirurgia pela qual Egas Moniz recebeu o Premio Nobel da Fisiologia ou Medicina, em 1949. Há uma sala sobre isso e passei algum tempo a ver com atenção. (Mais pormenores sobre a a casa podem ser lidos na biografia escrita por João Lobo Antunes).

Por vezes ouve-se e lê-se que deveriam tirar o Premio Nobel a Egas Moniz - há até um movimento nesse sentido, se não me engano -,  pois a leucotomia é uma “prática bárbara.” Mas, se pensarmos bem, não faz sentido. Primeiro, devemos olhar para as coisas à luz do seu tempo e das suas circunstâncias. Segundo, há que distinguir a leucotomia pré-frontal (praticada por Egas Moniz) da lobotomia. São duas práticas médicas com resultados aparentemenete similares, mas bastante diferentes. A primeira envolvia um procedimento médico mais elaborado em termos cirúrgicos e o segunda foi popularizada por Walter J. Freeman (1895-1972) que chegou a fazê-la quase sem preparação através do globo ocular. 

Numa pesquisas que fiz há uns anos no Web of Science verifiquei que na literatura científica são poucos os artigos que referem as duas palavras em conjunto, sendo uns sobre a leucotomia e os outros sobre a leucotomia. Terceiro, e muito importante, nos anos 1930 não havia tratamentos medicamentosos eficazes para as doenças mentais. Isso só virá a surgir nos anos 1950 com a clorpromazina. A leucotomia parecia às pessoas daquele tempo uma opção boa para resolver problemas mentais que não tinham solução. Duas pessoas relevantes que  foram a mulher de Marcelo Caetano, já ele primeiro ministro, e Raul Proença, editor do Guia de Portugal e autor de muitos textos. Se em relação à primeira, vi poucas notícias, em relação ao segundo caso, li que Proença, amigo de Moniz, não achou grandes melhorias com o procedimento. Freeman tinha uma fé inabalável na técnica, mas outros eram céticos, como o médico Sobral Cid (1877-1941).

Egas Moniz foi também o autor da técnica de angiografia cerebral, que permitia a marcação dos vasos sanguíneos do cérebro. Há teorias de que fazia mais sentido ter-lhe dado o Premio Nobel por isso, e de facto foi proposto várias vezes por isso. Talvez fizesse sentido, mas as primeiras angiografias também “eram bárbaras.” Um dos agentes de contraste usados no início era o óxido de tório, ThO2, bastante tempo usado como agente de contraste em vários tipos de radiografias. Ora, este metal é radioativo, e não sabemos quantos casos de cancro a mais acabou por causar.

Em conclusão, há que analisar as coisas à luz do seu tempo. Hoje temos comissões de ética e consentimento informado, os investigadores estão muito mais alerta para as consequências dos seus atos, o público tem muito mais sensibilidade, etc., mas isso não existia, ou era menos importante, no tempo de Egas Moniz. Será anacrónico ver o passado com os olhos de hoje. Egas Moniz morreu em 1955, no mesmo ano de Einstein, e, por exemplo, a estrutura do DNA tinha acabado de ser descoberta e publicada em 1953 por Watson e Crick e o Homem ainda não tinha ido à Lua.

E porque passei tanto tempo a falar de práticas médicas, quando disse que ia falar de Química? Se pensarmos um pouco vemos como a Química e fundamental para o sucesso destas. A possibilidade de realizar operações cirúrgicas mais complexas envolve assepsia, anestesia, antibióticos e vários outros medicamentos desenvolvidos pela Química. E podíamos continuar por este caminho que é bastante óbvio, embora nem sempre seja reconhecido.  

Egas Moniz sofria de gota desde muito novo e ficou com as mãos deformadas, como podemos ver facilmente com base nas suas fotografias em que estas aparecem. Deveria ter bastantes dores e estava na prática impossibilitado de realizar cirurgias. Outra pessoa que ganhou o Premio Nobel, neste caso da Química, e que também tinha as mãos deformadas foi Dorothy Crowfoot Hodgkin. Hoje em dia há medicamentos para estas doenças que não havia no tempo de Moniz nem de Dorothy. Moniz, usava também um capachinho na cabeça, como também é visível nas fotos. E sobreviveu ao atentado a tiro realizado por um doente.

Era um escritor prolífero. Escreveu sobre coisas tão diversas como Arte e Literatura, em particular sobre José Malhoa e Júlio Dinis, e sobre a história das cartas de jogar, entre muitas outras coisas. Faz eco de muitos preconceitos na sua obra “A vida sexual” que só se podia comprar, disseram-me, com receita médica! 

Muitas vezes era demasiado confiante, como quando fez o diagnóstico de Mário de Sá Carneiro com base num poema que este publicou. Ou era demasiado do seu tempo, quando vai ser um dos médicos que corrobora o diagnóstico infame de “loucura lúcida” a Maria Adelaide Cunha que “fugiu” com o seu motorista, abandonando o marido que a fez internar, com a conivência de Moniz, Sobral Cid e Júlio de Matos, e lhe ficou com o “Diário de Notícias”.   

Perto da casa de Egas Museu fica uma instalação da Nestlé, e, na rotunda perto desta há uma homenagem à fábrica de processamento de leite. Trata-se de um conjunto de depósitos e tubos em aço inoxidável, característicos e facilmente reconhecíveis, das unidades de processamento de leite. Poucos sabem, mas foi através da iniciativa de Egas Moniz que chegaram a Portugal as papas lácteas. Moniz, com vários sócios, começou com uma fábrica de laticínios que mais tarde foi vendida a esta marca.  Mais uma vez, podemos achar que as farinhas lácteas não foram uma evolução em relação à amamentação natural, mas temos de ver as coisas à luz do seu tempo. Nessa altura, a amamentação natural era vista, nos meios cultos, como uma “coisa bárbara.” Quem podia tinha amas de leite e o uso de leite de animais não era seguro nem adequado. Estas papas vão permitir obter materiais estéreis e com composições adequadas. Hoje em dia podemos, se pudermos, passar sem elas, mas na altura foi um grande avanço.

Nunca é demais lembrar que, até perto dos anos 1960, era perigoso ser bebé, criança ou jovem (leia-se o livro de Annie Ernaux “Os anos”, por exemplo). A mortalidade infantil era muito alta, o que criou a falsa ideia de que a esperança de vida de todos era baixa. Não era assim: há nesta ideia uma falácia estatística. Para simplificar, pensemos que metade das crianças morria à nascença e todos os outros chegavam aos 100 anos, a média será de 50 anos para a esperança de vida. O maior aumento da esperança de vida foi conseguido com a diminuição da mortalidade infantil. E muitas crianças morriam de diarreias e doenças relacionadas com a alimentação e a higiene. Claro que o aumento da esperança de vida é hoje conseguida à conta de coisas mais subtis, mas mais do que aumento da esperança de vida, hoje em dia podemos falar de aumento da qualidade de vida (pelo menos no mundo ocidental) e para isso muito contribuiu a Química. 

Temos, entretanto, hoje, muitos outros desafios, como o do aumento do aquecimento global, mas não devemos esquecer que muitos problemas têm sido resolvidos e foi aumentada a sustentabilidade de muitas coisas.      

Bibliografia

João Lobo Antunes. Egas Moniz: uma biografia. Gradiva, 2010.

Sérgio P. J. Rodrigues. Química e Saúde Pública. Revista Multidisciplinar, 4 (2022). https://doi.org/10.23882/rmd.22087