Passeio Químico pela Casa de Egas Moniz e suas imediações

[Estive numas provas de doutoramento onde me chamaram a atenção para que, em 2024, faz 150 anos de que António Egas Moniz (1874-1955) nasceu e 75 anos de que recebeu o Prémio Nobel da Fisiologia ou Medicina. Visitei, em Avanca, Estarreja, a Casa-Museu com o seu nome, nos fins da pandemia de Covid-19, e tirei várias fotografias. Como se pode ver ainda se usava máscara nos espaços públicos. Voltei lá em 23 de novembro de 2024 e pude rever alguns aspetos e posso agora mudar algumas fotografias]

Trata-se de uma casa bonita e muito elegante, com um grande jardim, dois andares e torreões. A "Casa do "Marinheiro", como foi chamada, era inicialmente relativamente modesta, mas adquiriu aquele aspecto imponente com o desenho do arquiteto Ernest Korrodi,  refere João Lobo Antunes, na biografia de Egas Moniz. A quinta é muito grande, e, citando de novo João Lobo Antunes, Moniz, com três sócios, criou nesta uma vacaria modelo. Na cozinha, por onde entramos (na visita que fiz em novembro de 2024 foi o local de saída), encontramos uma interessante imagem do que era uma casa burguesa rica tradicional. Estas não poderiam funcionar na ausência de vários empregados que faziam múltiplas atividades: ir às compras, cozinhar, limpar e que organizavam as coisas, em geral antecipando-se aos patrões, os quais apenas davam ordens muito gerais. Na biografia que escreveu João Lobo Antunes, são referidos um feitor, três criados, uma cozinheira e um criado de mesa (e estes tomavam conta da casa nos onze meses que o casal estava em Lisboa). Era um tempo em que todos os alimentos eram confecionados em casa, as conservas eram caseiras e os compostos conservantes eram comprados nas farmácias ou nas drogarias. 

O frigorífico, o microondas, ou a “Bimby” não existiam, claro. O aço inoxidável não era usado, por ser muito caro o seu fabrico, sendo os talheres e as panelas de outros materiais. O lume era feito a lenha. Fogão a gás só se tornou comum na segunda metade do século XX. Também eram raros - apareceram no século XX, mas só se generalizaram nos anos 1960 - os utensílios de plástico, e, só nas ultimas décadas do século XX se tornou comum o uso de utensílios de silicone. Muito se poderia falar das evoluções químicas relacionadas com a cozinha que podemos notar “brilharem pela ausência” numa cozinha tradicional, mas eu não entrei na Casa-Museu de Egas Moniz para falar muito disso.

Ainda no rés-do-chão, observamos vários dos documentos e condecorações relativos à vida de Egas Moniz. Depois, subindo um andar, encontramos muitas das obras de arte que este possuía. Os visitantes têm em geral gostos bastante diferentes, e uma Casa-Museu acaba por satisfazer vários desses gostos. A mim, as obras de arte interessam-me bastante, mas as mobílias e as loiças parecem-me muito menos apelativas. Mas aqui, na Casa Museu, o que queria mais ver, estava relacionado com a psicocirurgia pela qual Egas Moniz recebeu o Prémio Nobel da Fisiologia ou Medicina, em 1949. Há uma sala sobre esta cirurgia e passei algum tempo a ver com atenção o que estava lá. (Mais pormenores sobre a a casa podem ser lidos na biografia escrita por João Lobo Antunes e nas outras referências da bibliografia).

Por vezes ouve-se, e lê-se, que deveriam tirar o Prémio Nobel a Egas Moniz - havia até um movimento nesse sentido -,  pois a leucotomia é uma “prática bárbara.” Mas, se pensarmos bem, não faz sentido. Primeiro, devemos olhar para as coisas à luz do seu tempo e das suas circunstâncias, embora isso não nos ilibe das responsabilidades atuais, claro. Segundo, há que distinguir a leucotomia pré-frontal (praticada por Egas Moniz) da lobotomia. São duas práticas médicas com resultados aparentemente similares, mas bastante diferentes. A primeira, envolvia um procedimento médico elaborado, em termos cirúrgicos, e a segunda foi popularizada por Walter J. Freeman (1895-1972),  o qual chegou a fazê-la, quase sem preparação, através do globo ocular. 

Numas pesquisas que fiz há uns anos (e repeti de novo em novembro de 2024), na base dados Web of Science (WoS), verifiquei que na literatura científica são relativamente poucos os artigos científicos que referem as duas palavras em conjunto (menos de 5%), sendo uns sobre a leucotomia e os outros sobre a lobotomia. Terceiro, e muito importante, nos anos 1930 não havia tratamentos medicamentosos eficazes para as doenças mentais. Isso só virá a surgir nos anos 1950 com a clorpromazina. A leucotomia parecia, às pessoas daquele tempo, uma opção boa para resolver problemas mentais que não tinham solução ( está hoje em dia a ser revitalizada também devido a isso). Duas pessoas relevantes leucotomizadas foram, a mulher de Marcelo Caetano, Maria Teresa Caetano, já este era primeiro ministro, e Raul Proença, editor do Guia de Portugal e autor de muitos textos. Se em relação à primeira, vi poucas notícias, em relação ao segundo, li que Proença, (que pensava ser amigo de Moniz, mas soube depois, por um comunicação de Manuel Correia, não ser), não achou melhorias com o procedimento. Por outro lado, Freeman tinha uma fé inabalável na técnica da lobotomia, mas outros médicos eram céticos, como Sobral Cid (1877-1941).

Egas Moniz foi também um autor pioneiro da técnica de angiografia cerebral, que permitia a marcação dos vasos sanguíneos do cérebro. Há teorias de que faria mais sentido ter-lhe sido dado o Prémio Nobel por isso, e de facto foi proposto várias vezes para o prémio por essa técnica (uma delas, um ano depois do Nobel). Talvez fizesse sentido, mas as primeiras angiografias também “eram bárbaras.” Um dos agentes de contraste usados no seu início, depois do brometo de estrôncio usado no começo) era o torotraste, óxido de tório, ThO2, bastante tempo usado como agente de contraste em vários tipos de radiografias. Ora, o metal tório é radioativo, e não sabemos quantos casos de cancro a mais acabou por causar. Mas, só para percebermos como as coisas eram diferentes, basta recordar que a primazia do torotraste foi contestada por alguns médicos (que diziam ter usado primeiro).  

Em conclusão, há que analisar as coisas à luz do seu tempo. Hoje temos comissões de ética e consentimento informado, os investigadores estão muito mais alerta para as consequências dos seus atos, o público tem muito mais sensibilidade, etc., mas isso não existia, ou era considerado menos importante, no tempo de Egas Moniz. Em 1927, estávamos ainda longe do Código de Nuremberga, de 1947, e das Declarações de Génova, de 1948, e de Helsínquia, de 1964. Os testes clínicos controlados só serão regulamentados, primeiro nos EUA, em 1962, e mesmo a segurança médica só irá ser regulada pela FDA em 1938. Comissões de ética só irão aparecer mais tarde. Por exemplo, na Alemanha a primeira Comissão de Ética aparecerá em 1971 e, tanto, como eu consegui perceber, em 1974, nos EUA. Só existia o Juramento de Hipócrates e o bom senso (que é bastante falível). Mesmo assim, Moniz obtém o consentimento dos seus pacientes ou familiares e tem a intuição de que está a proceder de forma correta e a favor destes, procurando controlar, ainda que de forma incipiente, as suas experiências. É anacrónico ver o passado com os olhos de hoje, mas isso não nos iliba, como já referi, das responsabilidades atuais de reparação e mitigação, se for o caso. Egas Moniz morreu em 1955, no mesmo ano de Einstein, e, por exemplo, a estrutura do DNA tinha acabado de ser descoberta e publicada em 1953 por Watson e Crick e o Homem ainda não tinha ido à Lua.

E porque passei tanto tempo a falar de práticas médicas, quando disse que ia falar de Química? Se pensarmos um pouco, vemos como a Química é fundamental para o sucesso destas. A possibilidade de realizar operações cirúrgicas mais complexas envolve assepsia, anestesia, antibióticos e vários outros medicamentos desenvolvidos pela Química. E poderíamos continuar por este caminho que é bastante óbvio, embora nem sempre seja reconhecido.  

Egas Moniz sofria de gota desde muito novo (24 anos) e ficou com as mãos deformadas. Podemos reparar facilmente nas fotografias em que aparecem as suas mãos, mas também podemos ver que as suas orelhas têm deformações caraterísticas com os tofos com cristais de ácido úrico. E usava umas botas especiais para acomodar os tofos gotosos que tinha nas plantas dos pés. Deveria ter bastantes dores e estava, na prática, provavelmente, impossibilitado de realizar cirurgias minuciosas (para o efeito trabalhava em equipa com outros cirurgiões). Outra pessoa que ganhou o Prémio Nobel, neste caso da Química, e que também tinha as mãos deformadas foi Dorothy Crowfoot Hodgkin. Hoje em dia, há medicamentos para estas doenças que não havia no tempo de Moniz nem de Dorothy. Moniz, usava também um capachinho na cabeça, como também é visível nas fotos. Era, no entanto, muito resistente e sobreviveu ao atentado mortal a tiro realizado por um doente. Ele e a sua mulher, Elvira de Macedo Dias, não tiveram filhos. Os medicamentos que tomava para a doença podem ter causado esse resultado. Na altura usavam-se salicilatos e a colchicina, provocando ambos, em particular os primeiros, segundo li, diminuição da motilidade dos espermatozoides.   

Moniz era um escritor prolífero. Escreveu sobre coisas tão diversas como Arte e Literatura, em particular sobre José Malhoa e Júlio Dinís, e sobre a história das cartas de jogar. Faz eco de muitos preconceitos na sua obra “A vida sexual” que só se podia comprar (disseram-me) com receita médica! 

Muitas vezes, era demasiado confiante, como quando fez o diagnóstico de Mário de Sá Carneiro com base num poema que este publicou. Ou era demasiado "do seu tempo," quando vai ser um dos médicos que corrobora o diagnóstico infame de “loucura lúcida” a Maria Adelaide Cunha que “fugiu” com o seu motorista, abandonando o marido que a fez internar, com a conivência de Moniz, Sobral Cid e Júlio de Matos, e lhe ficou com o jornal “Diário de Notícias”.   

Perto da casa de Egas Museu, fica uma instalação da Nestlé, e, na rotunda perto desta, há uma homenagem à fábrica de processamento de leite. Trata-se de um conjunto de depósitos e tubos em aço inoxidável, característicos e facilmente reconhecíveis, das unidades de processamento de leite. Poucos sabem, mas foi através da iniciativa de Egas Moniz que chegaram a Portugal as papas lácteas. Moniz, com vários sócios, começou com uma fábrica de laticínios, que, mais tarde, foi vendida a esta marca.  Mais uma vez, podemos achar que as farinhas lácteas não foram uma evolução em relação à amamentação natural, mas temos de ver as coisas à luz do seu tempo. Nessa altura, a amamentação natural era vista, nos meios cultos, como uma “coisa bárbara.” Quem podia tinha amas de leite e o uso de leite de animais não era seguro nem adequado. Estas papas vão permitir obter materiais estéreis e com composições adequadas. Hoje em dia podemos, se o pudermos, passar sem elas, mas na altura foi um grande avanço.

Nunca é demais lembrar que, até perto dos anos 1960, era perigoso ser bebé, criança ou jovem (leia-se o livro de Annie Ernaux “Os anos”, por exemplo). A mortalidade infantil era muito alta, o que criou a falsa ideia de que a esperança de vida de todos era baixa. Não era assim: há nesta ideia uma falácia estatística. Para simplificar, pensemos que metade das crianças morria à nascença e as que não morriam chegavam aos 100 anos: a média da esperança de vida seria de 50 anos. O maior aumento da esperança de vida foi conseguido com a diminuição da mortalidade infantil. E muitas crianças morriam de diarreias e doenças relacionadas com a alimentação e a higiene. Claro que o aumento da esperança de vida é hoje conseguida à conta de coisas mais subtis, mas, mais do que o aumento da esperança de vida, hoje em dia podemos falar de aumento da qualidade de vida (pelo menos no mundo ocidental) para o qual muito contribuiu a Química. 

Temos, entretanto, hoje em dia, muitos outros desafios, como o aquecimento global, mas não devemos esquecer que muitos problemas têm sido resolvidos com mais Ciência e que foi aumentada a sustentabilidade de muitas coisas que nos rodeiam.

E Egas Moniz? A evolução do seu pensamento, atualização dos seus conhecimentos, gestão que fez da sua carreira e a sua curiosidade são notáveis. Quando jovem, parece que deu muita importância à vida estudantil, havendo uma placa que assinala a sua vida numa República Estudantil, na Rua de Tomar, em Coimbra. Bateu-se em duelo, gostava de jogar cartas e apreciava iguarias. Há ainda muita coisa para estudar e divulgar. Manuel Correia, no colóquio referido acima, falou dos diários que, não sendo inéditos, não estão ainda publicados, nos quais tem palavras violentas, mas justas, para com a ditadura e Oliveira Salazar. Escreveu o famoso livro sobre a vida sexual, onde distingue muito os papéis do homem e da mulher, mas muda bastante de ideias ao longo da vida.
Numa das últimas entrevistas que deu, ao lhe perguntarem sobre a "inferioridade" da mulher, responde que, se existisse, era devida à educação (estamos em 1955). Moniz pode ser um modelo para os jovens. Não precisa ser apresentado apenas como aquele senhor idoso de capachinho e polainas. Pode ser mostrado também como o jovem corajoso e garboso, como o homem das "duas culturas", que cultivava as relações humanas e gostava da vida, e claro, como o cientista inovador, incansável e pedagógico (a esse nível, as Confidências de um Investigador Científico, são notáveis). Muitas das suas ações e ideias estão hoje ultrapassadas, mas abriram caminhos e reflexões que nos permitem ter visões, esperanças e ações mais realistas e informadas.      

[A primeira versão foi escrita em 19 de dezembro de 2023, corrigi algumas gralhas em 29 de junho de 2024 e fiz pequenas alterações e acrescentos em 4 de outubro de 2024 e 22, 25 e 29 de novembro de 2024] 

Bibliografia

Ana Leonor Pereira, João Rui Pita (Eds). Egas Moniz em livre exame. Minerva, 2000.

João Lobo Antunes. Egas Moniz: uma biografia. Gradiva, 2010.

Manuel Correia. "Raul Proença". In Luzes e Sombras do Alienismo Português, 201-214. Porto, Portugal: Centro Hospitalar Conde de Ferreira, 2012.

Manuel Correia. Egas Moniz no seu labirinto. Imprensa da Universidade de Coimbra, 2013.

Sérgio P. J. Rodrigues. Química e Saúde Pública. Revista Multidisciplinar, 4(2):57-74 (2022). https://doi.org/10.23882/rmd.22087

Passeios químicos em Toledo


[Em dezembro de 2022 estive uns dias em Toledo, em Espanha. Escrevi na altura algumas notas, mas só agora estou a acabar o texto]

Toledo foi a capital do império espanhol até 1561, altura em que Filipe II mudou a sua corte para Madrid. Rodeada pelo rio Tejo tem muitas histórias para contar. Vou aqui concentrar-me essencialmente nas narrativas com ligação à química.

Atualmente, o seu principal artesanato é a produção de espadas e um tipo de arte manual conhecida como damascaria. Trata-se, neste último caso, de incrustação de materiais, como pedras preciosas e outros metais, em ouro. Este, embora seja um metal muito denso (um litro de ouro pesa mais de dezanove quilogramas) é muito maleável e, por isso, facilmente trabalhado. Uma localidade perto de Toledo, Oropesa, provavelmente ficou com este nome, como o próprio nome indica, devido a ser um local onde pesavam o ouro. Por outro lado, no caso das espadas, a incorporação de carbono no ferro e os tratamentos térmicos, dão origem a gumes muito resistentes e cortantes. 

Há um pequeno “museu” do queijo manchego na cidade, mas rapidamente notamos que é mais uma loja do que um museu. Em qualquer dos casos, visitei as suas salas e deu para perceber melhor o processo de produção deste queijo. Este é feito de leite de ovelhas de raça manchega com coalho e sujeito a um conjunto de regras bastantes estritas assim como a rotulagens diversas. O coalho é extraído dos estômagos dos cordeiros, onde há enzimas que agem sobre o leite, sendo também usado em muitos queijos em Portugal. Importantes para o resultado, é, na minha opinião, o corte da coalhada em pedaços muito pequenos e a prensagem para retirar o soro que dá ao queijo um aspeto homogéneo e compacto. 

Os moldes devem ter textura em zig-zag para imitar o antigo cincho de esparto (pode ver-se numa das fotografias) que ainda é usado nas produções mais artesanais. Tanto quanto sei, não há nenhum queijo em Portugal que tenha usado estes cinchos. O leite inteiro pode ter teores de gordura da ordem dos 3%, mas o queijo vai ter teores de mais de 50%. Curiosamente, vai assim ter muito maior teor de proteína pois estas estão associadas à gordura (esta envolve as proteínas). Então e a manteiga? Neste caso não se coalha o leite e portanto não são precipitadas as proteínas que estão envolvidas pelas gorduras, mas vai-se extraindo as gorduras que estão à superfície (as gorduras têm menor densidade), sem que nesse processo sejam arrastadas as proteínas. O leite usado pode ser cru ou pasteurizado. Se for leite cru, ou seja não pasteurizado, pode ser usada a designação de “artesanal”. E o que é pasteurizar? É aquecer a leite a cerca de 70ºC durante vários minutos, o que provoca, desta forma, a morte de uma boa parte das bactérias patogénicas (se estas estiverem presentes, o que  em geral não acontece, devido aos processos e higiene modernos).  

Para além de toda a história do local, há dois momentos que quero referir: as visitas de Marie Curie. Esta visitou pela primeira vez Toledo em 1919, na sequência do primeiro Congresso Nacional de Medicina Nuclear que se realizou em Madrid, tendo visitado a fábrica de armas de Toledo que esteve envolvida no esforço da Primeira Guerra Mundial e voltou depois, em 1931 e 1933, destas duas últimas vezes com a intervenção do médico, cientista e humanista Gregorio Marañón, Doutor Honoris de Causa pela Universidade de Coimbra. Numa foto que vi do primeiro congresso de medicina nucleal, esta está ao lado de Alexander Fleming, o que não deixa de ser curioso, dado a paixão dos espanhóis pelo médico e cientista, como já referi noutros passeios. E claro, em Toledo há também uma rua com o nome de Fleming. 

Outro momento que quero referir, este mais triste, foi o da Guerra Civil de Espanha. A cidade foi muito relevante durante esta guerra, sendo a nível simbólico muito importante para os nacionalistas de Francisco Franco. Talvez não seja assim por acaso que se situe aqui um dos maiores museus militares do país, situado no palácio, conhecido como Alcazar, que foi quase destruído durante a guerra e que domina toda a cidade. Quando lá estive, estava fechado. Havia no Alcazar uma exposição sobre os Lusíadas, mas não cheguei a ir lá.    

Outro aspeto muito interessante daqui é o facto de El Greco (1541-1614), nome pelo qual que ficou conhecido Domenikos Thetokopulos, ter vivido e trabalhado nesta cidade, tendo feito quadros que a representam, assim como realizado retratos de pessoas da época. Pode visitar-se um museu, que embora não tenha sido a sua casa - pensa-se que esta seria perto – reúne várias das suas obras. As obras de El Greco são facilmente identificáveis pelas formas esguias e distorcidas das pessoas e pelas cores intensas. Há uma procura de explicação com base no seu suposto astigmatismo, o que é conhecido em certos meios pela “falácia de El Greco”. De facto,  segundo esta corrente, mesmo que este tivesse um defeito de visão este repercutir-se-ia nas telas e molduras e, portanto, embora El Greco visse distorcido pintaria “corretamente”. Há também outras propostas de explicação que têm sido publicadas. Seja como for, El Greco é atualmente considerado percursor em muitos aspetos da arte moderna. 

Um aspeto que me chamou atenção nas pinturas de El Greco, foram as cores e os rostos. Muitos dos santos parecem ter todos a mesma cara! E é também curiosa a forma como El Greco usa as cores: para os motivos divinos usa cores brilhantes e intensas, mas para os motivos terrenos cores escuras. As suas cores são muito diversas como vou referir, mas há duas cores que são especialmente significativas: os vermelhos e os azuis. Tratam-se, segundo percebi, do uso de dois pigmentos naturais. Para o vermelho, a cochonilha, obtida de um inseto, e para o azul, o índigo, obtido de uma planta, que aqui na península era o pastel dos tintureiros. 

Muitos dos seus quadros foram sendo espalhados por vários locais. Chamou-me a atenção a enorme “Assunção da Virgem” que foi retirada do altar onde se encontrava cerca de 1830 e acabou por ir parar a Chicago, nos Estados Unidos. Agora podemos “apreciar” nesse altar uma cópia. Os restauros têm mostrado que as cores antigas (não só de El Greco) eram muito intensas, mas ao longo dos anos os vernizes foram amarelecendo e o pó e o fumo foram escurecendo os quadros. Operações de restauro e limpeza que retirem esses materiais devolvem uma riqueza de cores que muitas vezes nem suspeitávamos. Bastante impressionante é o “Enterro do Conde de Orgaz” que parecia ter sido pintado há muito pouco tempo. Vi depois que tinha sido restaurado. 

Num artigo que li que analisa o quadro “Batismo de Cristo” (1) nota-se desde logo o escurecimento dos brancos, mas todas as outras cores parecem quase inalteradas. A paleta do pintor tinha também pigmentos minerais, além dos orgânicos naturais já referidos. Tinha também alguns pigmentos sintéticos, mas de origem inorgânica. Os pigmentos usavam como base o vidro moído que lhes dava bastante brilho ou a resina. El Greco usava uma camada branca conhecida como imprimatura com várias combinações de vidro moído e branco de chumbo com gesso e um ligante (não percebi se era ovo ou óleo) que ajudava a fixar as cores e lhe dava profundidade e aumentava a saturação e a luminosidade. O branco de chumbo é um sal deste metal (2PbCO3.Pb(OH)2) que escurece por este formar sais negros de enxofre, originados pela presença de dióxido de enxofre na atmosfera. Os azuis são de índigo e lapis lazuli, os pretos de negro de carvão, os verdes de uma mistura de indígo, resinato de cobre (Cu(OH)2 com resina), e branco de chumbo, o vermelho é de cochonilha e o amarelo de chumbo-estanho (PbSn(1-x)SixO3). Há também umbra (Fe2O3 e MnO2), ocre amarelo (FeOOH) e realgar (As4S4 e As2S3). Independentemente de todos os aspetos técnicos, que acrescentam profundidade à análise, são muito belos os quadros.

Toledo é uma cidade muito antiga, em que as várias civilizações foram convivendo, nem sempre de forma harmoniosa. Podemos ver mesquitas e sinagogas que foram transformadas em igrejas, igrejas tão antigas que vão passando pelas várias civilizações que se fixaram aqui, ruas e edifícios muito antigos, ruas com numeração e nomes inusitados, etc. Chamou-me a atenção esta espécie de mania dos espanhóis em “prender” os seus santos, com grades que se fecham, ou estão fechadas.

Com toda esta riqueza cultural, os pratos típicos da cidade são também muito complexos, mas é especialmente conhecido o maçapão (do castelhano marzipan). Este doce de origem árabe tem como principais componentes a farinha de amêndoa, o açúcar e as claras de ovo que dão origem a uma pasta que pode ser moldada e permite fazer esculturas bastante detalhadas.

(1) S. Daniilia, K. S. Andrikopoulos, S. Sotiropoulou, I. Karapanagiotis, Analytical study into El Greco’s baptism of Christ: clues to the genius of his palette, Appl. Phys. A 90, 565–575 (2008)

Passeio Químico em Canas de Senhorim

[Fui em abril dar uma palestra na Escola de Canas de Senhorim e aproveitei para tirar algumas fotografias e refletir sobre esta povoação interessante, cheia de história e potencialidades, com alunos e professores muito motivados e algo abandonada pelos poderes nacionais e locais. Na altura comi num restaurante muito bom chamado “Zé Pataco”. Entretanto já lá voltei. O ficheiro, no entanto, ficou adormecido e só agora acordou.]

Canas de Senhorim é uma Vila muito antiga, onde estiveram instaladas muitas empresas, mas nunca lá tinha parado. Mas já antes tinha escrito sobre as minas da Urgeiriça que é em Canas de Senhorim (mas não o escrevi) e tinha reparada nas ruínas da Companhia Portuguesa de Fornos Elétricos (CPFE) que se veem da estrada. Tinha-me chamado a atenção em particular um edifício que tinha a palavra “azoto”, mas nunca tive tempo de parar. Em Canas de Senhorim há uma homenagem aos mineiros perto da escola. Trata-se de uma coluna com um relevo em bronze interessante mas de certa forma esquecido num jardim. Como toda a gente já reparou, o cobre (de que o bronze é o principal constituinte) das estátuas, relevos e coberturas começa por ser castanho mas adquire um aspeto verde devido aos óxidos deste metal. Pode também reparar-se noutros lugares, em que nada, quando os materiais são novos, indicia haver cobre, mas lentamente lá vão aparecendo as escorrências e coberturas verdes. Já me perguntei porque algumas coberturas e  estátuas não parece acontecer isso, mas suspeito que tem a ver com serem demasiado novas ou estarem cobertas de verniz. Ou podem ser de aço corten que se cobre com uma camada de óxido avermelhada que de longe pode parecer cobre.

Mas não nos percamos. Virei para a esquerda da estrada onde passo por vezes a caminho da Serra da Estrela. Logo na entrada da vila dei conta de uma fábrica abandonada (infelizmente em Canas há algumas fábricas assim) e reparei nuns dizeres apagados: “Quimigal”. Mais à frente encontrei letreiros novos da ADP (Adubos de Portugal). Para quem não sabe, a ADP é agora do grupo Fertiberia S. A., que está centrado em Espanha. Mas podemos ir ainda mais longe para tentar perceber esta trama. A origem é a CUF (Companhia União Fabril), que depois de nacionalizada ficou com o nome de Quimigal. Entretanto, o Grupo Mello, herdeiro da CUF, voltou a adquiri-la e separou os seus negócios químicos, a que deu o nome de Bondalti, dos negócios da saúde, onde usou o nome CUF, que agora toda a gente associa a hospitais. Entretanto a Bondalti trocou com o grupo espanhol várias fábricas. As de adubos ficaram para o grupo espanhol e as de hipoclorito e cloro para o grupo português. Julgo que estou a simplificar, mas também não tenho toda informação como é óbvio.

Na CPFE produziu-se, entre outras coisas, carbureto de cálcio que era usado nos gasómetros. Com a junção de água forma-se etileno que depois pode ser queimado, originando a iluminação característica. A reação química é a seguinte

CaC2+H2O → C2H2+CaO

Penso que nesta fábrica também se produziam equipamentos que precisavam de vidro (foi retirada uma grande quantidade deste material da antiga fábrica) e quartzo. Aliás o Museu do Quartzo não é longe, ficando perto de uma lagoa muito bonita que agora está no local onde era extraído o quartzo.  

Todas estas memórias de um tempo que já passou não precisam de ser feias ou estar mal cuidadas.  Podemos ter memórias industriais bem enquadradas e aproveitadas. Na Urgeiriça foi feito um hotel e ficam perto de Canas de Senhorim as termas das Caldas da Felgueira, que remontam ao início do século XIX. Não fui lá, mas lendo o seu sítio na Internet reparei em duas coisas: que a água emerge a 35ºC e que tem algum enxofre. Pode não ser a solução milagrosa para todos os achaques e para rejuvenescer, mas é com certeza benéfica para o corpo e para a mente. E a mente, em particular a memória, é fundamental.

Passeio químico em Sagres

[Em setembro, fiz parte de um congresso na Universidade de Algarve, em Faro, que organizou uma visita que nos levou até Sagres. Com base nas notas que tomei e nas fotografias que fiz, elaborei estas notas para um passeio químico. O texto ficou quase pronto na altura, mas só agora, lhe fiz uma revisão e o o torno público. Já tinha vários Passeios Químicos aqui no Algarve: Lagos, Portimão e Faro.]

O cabo de Sagres fica mais a sul em Portugal continental. Estava um pouco de nevoeiro, quando lá estivemos. O que é o nevoeiro? Gotas de água que estão juntas e fazem nuvens. Como o cabo é razoavelmente alto, a água evapora e condensa criando este nevoeiro. Ao mesmo tempo, estamos perto do mar e há muitos aerossóis com iões cloreto, que junto com a humidade, provoca a corrosão acelerada dos metais. Podemos observar as tampas de saneamento, os sinais de trânsito e muito outras coisas corroídas. Nestes locais, o zinco que protege o ferro, é oxidado rapidamente e desaparece, ficando o ferro oxidado. 

No caminho passámos por uma empresa uma cimenteira. A produção de cimento e a a construção são atividades que envolvem muita energia e a produção de dióxido de carbono (estima-se que 25% da produção mundial deste gás provenha destas atividades). No caso do cimento, a pedra é moída e aquecida a altas temperaturas ficando desidratada. Já referi o cimento várias vezes, em particular aquiO pó resultante da rocha, na presença de água volta a endurecer, mas há um aspeto único e que poderemos considerar fantástico. O endurecimento, “a presa”, acontece mesmo na presença de água. Por isso, podem ser feitas pontes e barragens com mais facilidade. Mas a longo prazo aparecem os problemas. 

O betão (cimento armado com pedras e estruturas de ferro no interior) começa a degradar-se e o ar e a água conseguem chegar ao ferro, oxidando-o. Por isso, neste momento pensa-se que as grandes estruturas de betão têm tempos de vida muito mais curtos do que se pensava. Por outro lado, a cal apagada (hidróxido de cálcio) embora demore muito tempo a endurecer e não o faça na presença de água, lentamente vai reagindo com o dióxido de carbono do ar e tornando-se carbonato de cálcio, a base das rochas calcárias. Para além disso, a cal permite a passagem de vapor de água e gases nas paredes, algo que o cimento não permite, e por isso é muito mais adequado para revestimentos de casas antigas. Em suma, a evolução do conhecimento tem permitido obter melhores materiais, otimizar e recuperar o uso de materiais antigos e perceber melhor as alterações de todos.

No meio do nevoeiro, vê-se a torre do farol de São Vicente que fica no antigo convento, o qual estava fechado quando lá fomos. Não é o farol que fica mais a sul de Portugal continental, cabendo ao farol da Ponta de Sagres, essa distinção, mas é, parece-me, o mais visível. Antigamente, as lâmpadas dos faróis eram muito pesadas e estes tinham de estar assentes em materiais que pudessem rodar facilmente. Usava-se mercúrio metálico que por ser líquido e mais denso do que o ferro facilitava essa rotação. Com as lâmpadas modernas mais leves e os motores, deixou de ser necessário o mercúrio, mas era uma parte integrante dos faróis no século XIX e início do século XX. Também hoje em dia, com os sistemas de geo-localização os faróis são menos importantes, mas continuam a ser relevantes. Não tem muito a ver com a química, mas é interessante saber como os faróis eram e são identificados. Cada um tem a sua “característica” que no caso deste farol é um relâmpago branco a cada cinco segundos. E este em particular tem um alcance de mais ou menos 59 quilómetros, o que faz deste farol um dos que em Portugal podem ser avistados a maior distância.  

Além dos metais das placas e vedações e metais que possam ter existido nos faróis, podemos encontrar muito metais nos bolsos das pessoas (nas moedas e nos telemóveis por exemplo): ouro, prata, cobre, tântalo, e muitos outros. Vim aqui, a um sítio tão belo, e falo dos bolsos das pessoas! Isso também é de maravilhar e tem pequenas surpresas. Por exemplo, as moedas de um a cinco cêntimos parecem de cobre, mas têm comportamento magnético. Porquê? Por que são de ferro recoberto com cobre. Se fossem todas de cobre, o valor facial, pelo menos as de um cêntimo, era inferior ao valor do metal e isso poderia fazer com as moedas fossem fundidas pelo cobre. E além dos bolsos, podemos reparar nas roupas. Quase todas têm algum tratamento químico, mesmo as de tecidos naturais. São os corantes, os detergentes, os branqueadores e muitas outras coisas. E os óculos, que são agora de plástico, os sapatos com solas sintéticas. É um nunca mais acabar de coisas que têm a ver com Química. 

As rochas é a vegetação são muito caraterísticas. É preciso cuidado onde se colocam os pés. As rochas calcárias estão todas rendilhadas devido à ação do dióxido de carbono ao longo dos anos, penso eu. Consultei várias páginas da Internet discutindo a flora presente no Cabo de Sagres, com muitas espécies (à primeira vista parece muito pobre em termos vegetais, mas não é). Não reparei em nenhuma que fosse mais relevante em termos químicos. De certeza que deve haver, mas eu não encontrei.

Ainda na zona do cabo de Sagres, fomos a um café que tinha uma espécie de museu com animais empalhados. O kitsh era muito evidente, mas não vou falar disso. Vou falar dos animais empalhados em si. Basicamente, estes são mesmo “empalhados,” pois as vísceras e a maioria do esqueleto é retirado ficando só a pele que é tratada, para se conservar, sendo o interior enchido em geral com… palha. No caso das cabeças, mandíbulas e outras partes mais complexas e detalhadas é mantido o esqueleto e para os olhos há muito tempo que se usa vidro pintado. Parecerem vivos e só uma ilusão, claro, e como os micro-organismos atacam as suas peles têm grandes quantidades de pesticidas, em particular arsénico, os mais antigos, sendo portanto desaconselhado tocar-lhes. E qual era o seu papel? Antes da generalização da fotografia a cores e dos filmes com altas resoluções, serviam para concentrar nos museus espécies que poderiam ser observados e estudadas. Hoje, isso já não é necessário. Estes animais empalhados são a memórias de um tempo em que eram fundamentais para o ensino e a investigação. Devido a essa memória devem ser preservados e até ter novas funções, mas não precisamos de ter novos. Como não faz sentido termos novas esculturas de marfim dos dentes e ossos de baleia, mas faz sentido manter a memória do tempo em que foram usadas para isso, mesmo criando polémica sobre esse uso ancestral.    

Gostei imenso de bolos e outras receitas usando alfarroba (Ceratonia siliqua). No Algarve, em alguns sítios chamam-lhe “ouro negro”. Gosto desse nome que deriva do facto de a farinha ter muitas aplicações e ser escura, e assim os bolos e todos os produtos de panificação que a usam ficarem escuros. Muitas das receitas envolvendo chocolate ficam muito bem com farinha de alfarroba. Esta tem além disso um uso mais generalizado na indústria alimentar onde dá origem ao espessante E410, mas é muito mais do que isso. Na Wikipedia é referido que a “dieta” de gafanhotos e mel de João Batista seria afinal de vagens de alfarroba e mel, mas as referências são algo frágeis, por isso continuo com dúvidas. Embora, como é uma planta bastante resistente à seca faça sentido.  

A guia turística tinha bastante sensibilidade e levou vagens de alfarrobeira e casca de sobreiro (cortiça não tratada), além de que referiu plantas e rochas comuns. Como falei com ela, e era esta a sua ideia, tem de haver uma oferta turística diferenciada para as pessoas interessadas em ciência e tecnologia. Mais ainda, essa oferta tem de ser criada, sem que seja procurada, pois as pessoas só procuram o que conhecem. Referiu-me as saídas de campo que organizam envolvendo a observação de pássaros ou as exploração das zonas entre-marés.  Pois, também poderá ser muito interessante, observar a química que pode ver nas ruas. Tenho aqui exemplos suficientes, acho eu, mas podemos sempre encontrar novos. 

Passeio químico nas salinas da Figueira da Foz [Chemical trail in Figueira da Foz salterns]

[Fui convidado para participar numa oficina relacionada com o projeto Quinta Ciência Viva do Sal e o espaço da Salina do Corredor da Cobra na Figueira da Foz. Tinha algumas fotografias antigas e com algumas novas que fiz no fim de semana passado elaborei um primeiro esboço de um passeio químico]

As salinas tradicionais são um local onde a solubilidade de sais, tratada nas Aprendizagens Essenciais (AE, o "programa") de Química do 11º ano, é muito importante. Como já referi, a propósito das salinas de Rio Maior, a água salgada sofre evaporação e vai ficando com maiores concentrações dos sais, os quais precipitam ao longo dos vários tanques pelas suas ordens de solubilidade. Nos primeiros tanques precipitam os hidróxidos de ferro, seguindo-se os carbonatos e os sulfatos, que ficando no "sal" dariam cor e mau sabor. No final ficam os cloretos e o ião sódio, mas também, em muito menor quantidade, outros iões negativos e positivos. Quando se atinge cerca de 36% (para temperaturas aproximadamente entre 0 e 20 ºC) [corrijo, ver (1)], em massa de cloreto de sódio por massa de solução, este começa a precipitar e forma-se o conhecido “sal”. Devemos notar aqui que não há nada "infinitamente" solúvel, mesmo as coisas que são muito solúveis como o "sal". 

Numa primeira fase, este forma-se "sal" à superfície, sendo prontamente recolhido e sendo denominado “flor de sal”. Tem, além de vários iões, uma quantidade razoável de água. Isso até é bom, pois quanto menos concentrado for o “sal” melhor será para a saúde. Além de água o “sal” tem vários outras moléculas de origem biológica que muitos consideram relevantes, mas a sua quantidade é muito pequena. Devemos notar duas coisas: primeiro, que a soma das concentrações dos iões negativos com a dos os iões positivos (multiplicadas pelas suas cargas) deve ser nula; já tinha referido isso no texto sobre Rio Maior, sendo conhecido por balanço de cargas; e segundo, que a precipitação e a cristalização são formas de purificação, por isso o “sal” fica bastante livre de impurezas e materiais que não seja o “sal.”  

Nas salinas, nos tanques mais remotos, notamos partes mais castanhas onde o ferro precipitou e mais cinzentas ou brancas onde julgo que precipitem os carbonatos e os sulfatos de cálcio e magnésio. Notam-se também zonas mais cinzentas nas águas. Na parte que nos interessa, encontramos montes de “sal” já purificados.

Também referi no texto de Rio Maior, que os cloretos formam iões e complexos muito solúveis com todos os metais, em particular com o ferro. Assim, os problemas de corrosão são críticos nas salinas, sendo os objetos tradicionais feitos de madeira. Hoje em dia é também usado aço inoxidável, mas mesmo esse acaba por ser atacado pelos cloretos.

Referi que o “sal” começa a precipitar a cerca de 36% (m/m) mas no mar a concentração de sais é já bastante alta: cerca de 3.5% (m/m). Ora, tendo o nosso corpo e o dos outros animais e plantas, concentrações de sais inferiores (nós temos cerca de 0.9% (/m)) beber água salgada não “mata a sede” antes a aumenta, pois beber água salgada aumenta a concentração de sais e as células vão libertar água para baixar a pressão osmótica exterior ao procurarem equilibras as pressões. De forma mais detalhada podemos notar que esta pressão é, numa boa aproximação, proporcional à concentração de sais e sendo assim as concentração de sais mais elevada no exterior as células vão libertar água para procurarem equilibrar a pressão. Mas há plantas que aprenderam a viver com essa questão, como a salicórnia, para além dos peixes de água salgada. A salicórnia, e outras plantas halófitas, desenvolveram mecanismos para enfrentar esta questão. Por exemplo, acumulando sais nas suas folhas podem obter água do solo se esta tiver uma concentração menor de sais, usando a pressão osmótica a seu favor. Por tudo isto se vê que os conhecimentos básicos são importantes para todos, em particular para os futuros biólogos. Uma curiosidade: a salicórnia, tão valorizada em Portugal parece ser uma praga nos Países Baixos.

A entrada de água nos tanques e controlada pela maré, penso eu. Além disso, o sal tradicionalmente era transportado de barco, os quais chegavam até perto do local através de canais. Quando visitei o local, estava maré baixa, e via-se um esqueleto de um antigo barco afundado. De um lado e do outro do caminho havia imenso funcho. É muito curioso como as plantas se organizam e colonizam os espaços fazendo "guerra química" umas às outras. No caso desta planta, os seus óleos são constituídos por um conjunto muito grande de moléculas das quais destaco a tujona, que está associada aos efeitos do absinto. 

Nestas zonas há uma grande concentração de aves marinhas de diferentes espécies que podem ser observadas e fotografadas. Não deixa de ser curioso que, um lugar que se pensa ser tão agreste, acabe por propiciar fontes de alimento e abrigo. 

Uma das coisas que me tinham chamado a atenção quando visitei o local foi a instalação fabril da efpbiotek. Na altura que estive lá, não investiguei mais mas fiquei com a ideia de que fariam refinamento de sal. Agora, através da Internet e e da página web da empresa pude fazê-lo e verifiquei que é muito mais do que isso. A sigla “efp” vem de Empresa Figueirense de Pescas, uma empresa que já existe deste o principio do século XX, desde 1912, mas agora acrescentou “biotek” e produzem cosméticos, medicamento, nutrientes e outras coisas a partir de produtos marinhos e de outros materiais. 

Segundo li nessas referências via Internet, a efpbiotek é lider na produção de esqualeno, C30H50, a partir de peixe e azeite. Trata-se de uma molécula antioxidante isoprenóide (os isoprenos são moléculas que pode ser consideradas “construídas” a partir do isopreno, C5H8) que está presente no óleo de fígado de bacalhau e é produzido e muito útil para os organismos superiores. Tem também outros produtos, como um equivalente da lonolina (o óleo que se pode extrair da lã de ovelha).  No local, o cheiro não é grande coisa, mas é muito localizado. Embora tenham muitas referências à sustentabilidade e eu acredite nelas (cada vez mais a indústria sabe que não pode agir de outra forma). 

[atualização depois de ter participado na oficina]

Na oficina estava bastante gente e aprendi muitas coisas. Foi unânime que era fundamental, para o sucesso do projeto,  envolver os parceiros locais de toda a zona do "salgado" (é assim que se referem a este sistema complexo de pessoas e atividades ligadas ao sal e ao mar). Não estava ninguém da efpbiotek (disseram-me que foram convidados mas que não puderam vir por dificuldades de agenda), mas pareceu-me que esta empresa será um parceiro importante a considerar e deverá insistir-se. Estavam produtores de sal da ilha da Morraceira e responsáveis da aquicultura da Figueira Fish e da produção de ostras na mesma ilha. Finalmente, estavam pessoas ligadas ao turismo de vários segmentos e bastantes investigadores e divulgadores de ciência.     

(1) Isto corresponde a cerca de 36 gramas por 100+36 g de solução, pois a solubilidade é muitas vezes apresentada como sendo a massa do soluto em gramas por 100 gramas de água (ou seja 36 g de NaCl por 100 g de água). Muitas vezes é usada a escala Baumé (é essa que está no Ecomuseu da Figueira da Foz, onde decorreu a oficina) que pode ser medida com base na densidade com aparelhos calibrados. Nessa escala, estes valores correspondem a cerca de 32 ºBe. Finalmente, podemos ter uma estimativa da massa por volume de solução se soubermos que a densidade desta solução é cerca de 1.3 g/mL, obtendo-se assim 20% (m/v). São bastantes valores, mas penso que o mais intuitivo é a massa do soluto que podemos dissolver numa determinada massa de água.  

[Verified semi-automatic translation]

[I was invited to participate in a workshop related to the Quinta Ciência Viva do Sal project and the Salina do Corredor da Cobra space in Figueira da Foz. I had some old photographs, and with some new ones that I took at the last weekend, I created a first draft of a chemical walk]

Traditional salterns are places where the solubility of salts, treated in the Apredizagens Essenciais (AE, the Learning Essentials, the syllabus in Portugal) of Year 11 of Chemistry, are very relevant. As I already mentioned, regarding the Rio Maior salterns, the salt water undergoes evaporation, ending up with greater concentrations of salts, which precipitate along the various tanks due to their solubility orders. In the first tanks, iron hydroxides, followed by carbonates and sulfates, which, remaining in the "salt", would give color and noxious flavors. In the end, there are the usual chlorides and sodium ions, but also, in much smaller quantities, other negative and positive ions. When it reaches around 26% (for temperatures approximately between 0 and 20 ºC) [correction, see (1)], in the mass of sodium chloride (NaCl) per mass of solution, it begins to precipitate, and the “salt” is formed. We should note here that nothing is "infinitely" soluble, including things that are very soluble like "salt".

In the first phase, “salt” forms on the surface, being promptly collected and a material called “flor de sal”. It has, in addition to several ions, a reasonable amount of water. This is, actually, a good thing, as the less concentrated the “salt” is, the better it will be for your health. In addition to water, “salt” has several other molecules of biological origin that many consider relevant, but their quantity is small. We must note two things: first, the sum of the concentrations of negative ions and positive ions (multiplied by their charges) must be null; This, known as charge balance, I had already mentioned in the text about Rio Maior; and second, that precipitation and crystallization are forms of purification, so the “salt” is in part free from impurities and materials other than “salt.” Nevertheless, rigorous analysis should be done.

In the salterns, in the most remote tanks, we noticed browner parts, where the iron precipitated, and grayer or whiter parts where, I think, calcium and magnesium carbonates and sulfates precipitate. Grayer areas can also be seen in the water. Nearer, we find piles of “salt” already purified.

I also mentioned in Rio Maior's text that chlorides form very soluble ions and complexes with metals, and in particular with iron. Therefore, corrosion problems are critical in salterns, with traditional objects being made of wood. Nowadays, stainless steel is also used, but even this ends up being attacked by chlorides.

I mentioned that the “salt” starts to precipitate at around 26% (m/m) but in the ocean, the concentration of salts is already quite high: around 3.5% (m/m). Now, since our body and that of other animals and plants have lower concentrations of salts (we have around 0.9% (/m)), drinking salt water does not “quench your thirst” but increases it, as drinking salt water increases the concentration of salts and the cells will release water to lower the external osmotic pressure as they seek to balance the osmotic pressures. We can note that this pressure is, in a good approximation, proportional to the concentration of salts, and, therefore, with a higher concentration of salts outside, the cells will release water to try to balance the pressure. However, some plants have learned to live with this issue, such as Salicornia, in addition to saltwater fish. Salicornia, and other halophyte plants, have developed mechanisms to address this issue. For example, by accumulating salts in their leaves they can obtain water from the soil if it has a lower concentration of salts, using osmotic pressure to their advantage. From all this, we can see that basic knowledge is relevant for everyone, particularly for future biologists. A curiosity: Salicornia, so highly valued in Portugal, appears to be a pest in the Netherlands.

The entry of water into the tanks is controlled by the tide, I think. Furthermore, salt was traditionally transported by boat, which arrived close to the site through canals. When I visited the site last week, it was low tide, and the skeleton of an old sunken boat was visible. On both sides of the path, there was a lot of fennel. It is very curious how the plants organize themselves and colonize spaces by carrying out "chemical warfare" on other species. In the case of this plant, its oils are made up of a very large set of molecules, including thujone, which is associated with the effects of absinthe.

In these areas, there is a large concentration of seabirds of different species that can be observed and photographed. Curiously, a place that is thought to be so harsh ends up providing sources of food and shelter.

One of the things that caught my attention when I visited the place was the efpbiotek manufacturing facility. The first time I was there I didn't investigate further, but I got the idea that it was a refining salt factory. Now, through the Internet and the company's website, I was able to do it, and I realized that it is much more than that. The acronym “efp” comes from Empresa Figueirense de Pescas, a company that existed since the beginning of the 20th century (1912) but now has added “biotek” to the name and produces cosmetics, medicines, nutrients and other things from marine products and other materials.

According to what I read in these references, efpbiotek is a leader in the production of squalene, C30H50, from fish and olive oil. It is an isoprenoid antioxidant molecule (isoprenes are molecules that can be considered “built” from isoprene, C5H8) present in cod liver oil and is produced and is very useful for higher organisms. It also has other products, such as an oil similar to lanolin (the oil that can be extracted from sheep's wool). At the location, the smell isn't a big deal, but it is very localized. Although they have many references to sustainability and I believe in them (increasingly, the industry knows that it cannot act otherwise), i need to know more.

[update after having participated in the workshop]

There were a lot of people in the workshop and I learned a lot of things. It was unanimous that it was essential, for the project's success, to involve local partners from the entire "salty" area (this is how they refer to this complex system of people and activities linked to salt and marine production). No one from efpbiotek was there (the organizers told me that it was invited, but couldn't come due to scheduling difficulties). Nevertheless, it seemed to me that this company would be a relevant partner to consider and should be insisted on. There were salt producers on the island of Morraceira a person from Figueira Fish (aquaculture) and another from the oyster production on the same island. Finally, there were people linked to tourism from various segments and many researchers and science communicators.

(1) This corresponds to about 36 grams per 100+36 g of solution, as solubility is often presented as the mass of the solute in grams per 100 grams of water (i.e. 36 g of NaCl per 100 g of water ). The Baumé scale is often used (this is the one in the Ecomuseum of Figueira da Foz, where the workshop took place) which can be measured based on density with calibrated devices. On this scale, these values ​​correspond to around 32 ºBe. Finally, we can estimate the mass per volume of solution if we know that the density of this solution is about 1.3 g/mL, thus obtaining 20% ​​(m/v). There are many values, but I think the most intuitive is the mass of the solute that we can dissolve in a given mass of water.

Passeios Químicos em Serralves

[Não me tinha ainda ocorrido falar sobre a Química da ida a Serralves, mas uma pessoa que conheço perguntou-me sobre ela. Aproveitei a ideia e vou falar sobre as últimas idas de que me lembro.]

O Parque de Serralves tem muitos interesses, desde o edifício do Museu à casa de Serralves no jardim, o jardim em si próprio, a Casa do Cinema Manoel de Oliveira, e, claro, as exposições e as muitas atividades que realizam. A última vez que lá estive, em julho deste ano, foi, como sempre, uma ótima experiência. Queria ver essencialmente a exposição do diálogo entre Alexander Calder e Juan Miró, mas gostei imenso da exposição de Jennifer Ollora e Guillermo Calzadilha e de Carla Filipe, entre outras. Gostei de várias coisas, mas vou primeiro falar do edifício do Museu e depois destas exposições. Daqui a uns meses haverá outras exposições e atividades e em qualquer delas haverá pontos de interesse científicos e químicos a considerar.  

Não podemos ficar indiferentes ao branco e aos grandes vidros planos do edifício desenhado por Álvaro Siza para o Museu. Os brancos são hoje em dia de dióxido de titânio e são ainda mais brilhantes do que os brancos de cal, hidróxido de cálcio. Cerca de 95% do titânio usado no mundo é nas tintas brancas que além de serem luminosas podem manter-se mais limpas devido à ação catalítica deste material. E os vidros planos sem imperfeições só se tornaram possíveis após os anos 1950, quando o vidro começou a ser arrefecido sobre estanho fundido. Os vidros aqui são enormes, duplos e provavelmente (não me lembro de ter reparado nisso) temperados. 

É fácil ver se um vidro é temperado com uns óculos de luz polarizada: os vidros parecem manchados, com estruturas regulares em geral. No caso dos carros, os vidros de trás aparecem, quando vistos com lentes polarizadas, como se fossem aos quadrados. Porquê? O processo de têmpera ao aquecer e arrefecer os vidros faz com que localmente o material tenha variações de índice de refração em relação aos outros locais que à luz polarizada torna visíveis. Uma aplicação moderna do dióxido de titânio é nos vidros que se limpam a si próprios. É também muito interessante o aço inoxidável que serve de moldura para os vidros. Como é bem conhecido, o aço inoxidável é de ferro mas tem uma percentagem bastante elevada de níquel e crómio. Muitos aços podem nem ter propriedades  magnéticas, o que é fácil de verificar com um íman. São só alguns dos pormenores que permitem um olhar sobre a parte mais científica dos materiais de que é feito o edifício.

A exposição de Ollara e Calzadilha estava no edifício do Museu. Chamaram-me logo a atenção os diálogos entre as flores no chão e entre as janelas e as flores (supostamente silvestres, mas também sintéticas) no relvado exterior, além da grande árvore negra que estava deitada numa sala. As mais de 50 mil flores são feitas de policloreto de vinilo (PVC) reciclado e pintado (vi no catálogo, mas confesso que pensei inicialmente serem verdadeiras flores). No caso da árvore fiquei a pensar de que seria feita. Li no catálogo que era de carvão moldado a partir de uma árvore derrubada por um raio. Os bons artistas trabalham com equipas de cientistas e técnicos que os ajudam nestas questões materiais. Não é só a análise das composições dos materiais e pigmentos, ou o desenvolvimento de materiais e o restauro de obras de arte que são importante em Arte, é também importante a participação no planeamento e na criação, onde a Ciência, a Técnica e a Química estão sempre presentes, mesmo que o artista faça eco da ideia de senso comum de que não tem “químicos.”

Embora mais ou menos esperada, foi muito interessante ver a concretização da imagem de uma bomba de gasolina “fossilizada.” Não poderia deixar de ser irónico que os materiais usados não fossem de pedra, mas polímeros, obtidos, provavelmente, do petróleo, mas não é assim. A escultura é de pedra calcária (li no guia). A boa arte explora as ironias, escapa às armadilhas, cria multiplicidades de sentido, abrindo as portas a novas ideias e experiências estéticas, muitas delas não pensadas pelo artista. Curiosa é também a utilização de um espectro, penso que na evocação do maior radiotelescópio de Arecibo em Esperança, Porto Rico, um transformador gigante, baterias, células fotovoltaicas e outros objetos com origem na Ciência e na Técnica em várias esculturas. Tudo isto acaba por provocar uma experiência estética e técnica que é muito interessante e se torna mais profunda quando se reflete e estuda.      

Surpreendeu-me também a exposição de Carla Filipe. Uma das coisas que na exposição anterior já me tinha maravilhado (assim como noutras que vi) foi o tamanho. Em Serralves pode ser explorado esse aspeto. E de entre as várias outras coisas que poderia referir, chamou-me a atenção em particular a evocação de algumas mulheres pioneiras ligadas à ciência e à medicina: Carolina Beatriz Ângelo e de Adelaide Cabete.

No edifício Arte Nova do jardim, a Casa de Serralves, estava a exposição de Calder e Miró. Para chegar lá passamos pelo parque que é também muito interessante e onde todas as árvores nos podem contar histórias químicas. Um dos espaço mais impressionantes é a alameda dos liquidâmbares, agora árvores muito grandes e criando sombra em toda a alameda. O outono nas folhas destas árvores é especialmente exuberante com estas a mostrarem todas as cores do verde ao castanho, passando pelo vermelho e o amarelo, e por vezes quase o azul, resultante das moléculas de antocianinas.

A Casa de Serralves tem muitos atrativos e caminhos a descobrir, mas queria chamar especial atenção para os espelhos antigos. Estes são feitos com metais sobre as superfícies de vidro que se vão oxidando, perdendo o espelho a sua capacidade de refletir bem. Num espaço de dezenas de anos os espelhos vão-se deteriorando.    

Não estava presente, mas há uma obra de Calder que me impressiona muito: a “Fonte de Mercúrio” (feita mesmo com o metal líquido), realizada para simbolizar a resistência ao franquismo e homenagear os mineiros de Almaden, cidade cercada na região de Espanha onde se situam essas minas de mercúrio. Foi exposta na Feira Mundial de 1937 em Paris, a céu aberto, em frente ao conhecido quadro Guernica, de Picasso. Atualmente, a “Fonte de Mercúrio” está na Fundação Joan Miró, em Barcelona, e é apresentada num ambiente estanque envidraçado pois há neste momento regras muito estritas em relação ao mercúrio que é muito tóxico.

Tinha antes estado em Serralves em junho de 2021 para ver uma grande exposição retrospetiva de Louise Bourgoise. No jardim estavam algumas das suas famosas aranhas. E no edifício estavam várias obras emblemáticas, como a “fillette” que se trata de um objeto que parece um osso de perna de porco (e que pode parecer outra coisa) mas não é de osso: é de poliuretano. Vários outras esculturas estavam também presentes, misturando materiais. Além de todos as interrogações que a arte pode desencadear e as sensações que pode provocar, é uma camada extra de maravilha poder reconhecer os materiais que são usados. Não vamos procurar a arte para estudar Ciências e Química, mas podemos juntar a arte à ciência e atingir outros níveies de sabedoria. 

Uns meses antes, tinha ido ver a grande exposição de Olafur Eliasson, conhecido artista dinamarquês-islandês. Na entrada estava um conjunto de árvores em vasos e mais adiante vários objetos em aço inoxidável. No jardim havia também objetos de aço inoxidável que eram bastante bonitos. Não havia, que eu tivesse dado conta, alguns dos objetos mais emblemáticos e conhecidos deste artista que são os vidros pintados com cores fortes e transparentes, que são usados em grandes objetos. Curiosamente fiz agora a associação de ideias que na Islândia gostam muito de cor. E para obter estas cores modernas são usados pigmentos sintéticos que acabam por ser mais seguros, em termos ambientais e de saúde, que muitos dos naturais.

Com esta grande exposição de Eliasson, estava uma exposição de Pedro Cabrita Reis. Nesta exposição objetos podemos ver noutros contextos materiais de construção que nos rodeiam: tijolos, fios elétricos e outros, tábuas, letreiros, e muitas outras coisas. Aqui está outro caminho da Arte: Valorizar materiais que muitas vezes nem reparamos.  

Estive em muitas exposições em Serralves. O bilhete é caro para o português médio, mas é grátis várias vezes por ano, em particular nas manhãs do primeiro domingo de cada mês. 

Visitei, numa dessas manhã, a famosa exposição de fotografias de Mapplelthorpe, em 2018. É surpreendente a qualidade das suas fotografias. Embora a fotografia em película, que tem toda uma química associada (os sais de prata sensíveis à luz, a revelação, os negativos, as películas e os papéis, entre outras coisas), estivesse já bastante bem estabelecida no seu tempo. *a fotografia analógica, seguiu-se a revolução da fotografia digital que, parecendo que não, não passa sem a Química. Devo referir, como escrevi na altura, que acabam por ser, muitas vezes, as exposições de artistas que eram menos familiares que mais nos surpreendem.

A Casa do Cinema Manoel de Oliveira é também um espaço interessante. O cinema começou por ser em parte, uma evolução da fotografia, começando as fitas por ser de celulóide um polímero muito inflamável.   

A Casa contou com várias peripécias antes de chegar aqui, incluído estar destinada a um edifício que foi construído para o efeito e depois vendido. Foi uma boa escolha, pois permitiu usufruir da experiência e das sinergias com a Fundação de Serralves. E já que falo de políticas de cultura vem a propósito referir coisas menos conhecidas sobre a quinta de Serralves. 

Por vezes diz-se que esta quinta foi “oferecida” pelos condes de Ribadave. Não é assim: esta foi vendida, mas foi um bom negócio para ambas partes. Acresce que a Fundação de Serralves, criada para gerir o espaço, teve desde o seu início obrigação de se financiar, numa ideia de sustentabilidade que se tem revelado também muito profícua. Vem a propósito referir que nem os reis “constroem” nem os ricos “dão.” Os primeiros mandam ou autorizam, por vezes, raras vezes, pagando. Os segundo, mesmo quando “oferecem,” estão em geral a fazer um negócio que se vai revelar muitas vezes vantajoso para todas as partes. Basta pensar em todas as fundações e ofertas ligadas a nomes: Guggenheim, Gulbenkian, Carnengie, Mellon, Frisk e muitos outros. A longo prazo, tudo tende para a entropia máxima, para a desordem e para a morte, que é também uma espécie de equilíbrio pouco desejado, mas, entretanto, podemos obter equilíbrios úteis em sistemas fechados e manter localmente a entropia baixa, criando ilhas de beleza e vida que podem durar muito tempo.